Guerra e império
Olavo de Carvalho Em 1995, expus em �O jardim das afli��es� a teoria de que o novo Imp�rio mundial que se formava de mistura com a globaliza��o econ�mica era um fen�meno bem diferente de tudo o que se conhecera at� ent�o como �imperialismo�. Malgrado elogios recebidos de cr�ticos nacionais e estrangeiros, o livro continuou marginal, jamais sendo citado nas discuss�es correntes, quer midi�ticas ou acad�micas. Cinco anos depois, o sr. Antonio Negri ganhou um dinheir�o e aplausos universais vendendo a mesma teoria em seu livro �Imp�rio�, escrito em parceria com Michael Hardt. A concord�ncia do sr. Negri comigo ia desde as origens do processo, que faz�amos remontar ao s�culo XVIII, at� � localiza��o expl�cita da sede do governo imperial, que ambos situ�vamos no edif�cio da ONU e n�o na Casa Branca. Entre esses dois extremos, concord�vamos tamb�m na defini��o do Imp�rio como um novo paradigma civilizacional e n�o apenas uma muta��o dos velhos imperialismos e colonialismos. Jamais me ocorreu que o sr. Negri, o qual nunca me viu mais gordo, tivesse me plagiado. Ele apenas tinha um c�rebro mais lento, o que n�o era culpa dele, e eu n�o tinha um lobby publicit�rio a meu servi�o, o que n�o era culpa minha. Outras diferen�as essenciais entre n�s eram as seguintes: 1) Eu n�o podia alegar entre meus m�ritos intelectuais a participa��o em nenhum homic�dio pol�tico, ao passo que o sr. Negri ostentava em seu curr�culo a gentil colabora��o com os assassinos de Aldo Moro, a qual, vamos e venhamos, � de um sex appeal irresist�vel para a imprensa dita cultural. 2) O sr. Negri descrevia como focos da rea��o libert�ria � ascens�o imperial precisamente alguns movimentos de massa nos quais eu enxergava a m�o inconfund�vel do pr�prio Imp�rio. 3) O sr. Negri, fiel ao cacoete marxista de explicar tudo pelo econ�mico, via o Imp�rio como superestrutura pol�tica do capitalismo globalizado e, assim, n�o podia sen�o acabar fazendo da ONU, ao menos implicitamente, uma ag�ncia a servi�o do capitalismo. Como o grosso do capital est� nos EUA, o resultado era que o belo diagn�stico diferencial entre imperialismo e Imp�rio acabava por se dissolver a si mesmo e desmascarar-se como nada mais que um novo pretexto para descer o pau nos EUA. Nada a discutir no concernente ao primeiro ponto, onde a superioridade do sr. Negri � imbat�vel. Quanto ao segundo, a gigantesca mobiliza��o mundial �pacifista� em prol de Saddam Hussein mostrou com eloq��ncia global que os movimentos de massa nos quais o sr. Negri via uma �alternativa ut�pica� ao Imp�rio da ONU (e seu parceiro Hardt ainda insiste nisso, com cega teimosia, na �Folha de S. Paulo� do dia 19) s�o tent�culos da pr�pria ONU, empenhados em estrangular as �ltimas e �nicas soberanias nacionais capazes de lhe criar problemas: a americana, a inglesa e a israelense. Por fim, os acontecimentos das �ltimas semanas (na verdade, dos �ltimos anos, isto �, desde a confer�ncia de Durban) provaram claramente de que lado est� a ONU. Mais ainda, mostraram de que lado est�o os pr�prios neoglobalistas americanos, incluindo a grande m�dia: todos a servi�o da ONU e contra seu pr�prio pa�s. Tal como expliquei em �O jardim das afli��es�, h� dentro dos EUA um conflito de base entre for�as imperiais e nacionais, ou entre os adeptos da ONU e os da na��o americana, estes alinhados com Israel, aqueles com a revolu��o mundial que hoje irmana comunistas, neonazistas, radicais isl�micos e variados interesses antiamericanos de ocasi�o num pacto global de apoio � tirania genocida do Iraque e, de modo geral, a tudo o que n�o presta no mundo. Enfim, o que sobra de aproveit�vel no livro do sr. Negri s�o aquelas partes em que ele coincide com o meu. Tudo o mais � propaganda imperial camuflada em �utopia alternativa�. Um ponto que n�o abordei no meu livro e que seria demasiado longo discutir aqui �: como o Isl� revolucion�rio se tornou a boca de funil para onde escoam todas as correntes antiamericanas e antidemocr�ticas? Resumindo brutalmente, com a promessa de um dia voltar ao assunto, digo que: 1) O radicalismo isl�mico, obra de intelectuais mu�ulmanos de forma��o europ�ia, e que remonta � d�cada de 30, est� para o Isl� tradicional como a �teologia da liberta��o� est� para o cristianismo. Ele esvazia a tradi��o isl�mica de seu conte�do espiritual e o transmuta na f�rmula ideol�gica da revolu��o mundial. (O presidente Bush, que nossos intelectuais semi-analfabetos fingem desprezar como um caipir�o, compreendeu perfeitamente esse ponto e por isso recusou com veem�ncia a proposta indecente de dar � guerra contra o terrorismo a conota��o de uma cruzada antiisl�mica.) 2) Essa f�rmula, por seu car�ter universalista e seu invej�vel requinte dial�tico (afinal, um de seus criadores � Roger Garaudy, fino estudioso de Hegel), engloba e transcende todas as correntes anticapitalistas e antidemocr�ticas do s�culo XX, desde o nazismo puro e grosso � passando por suas vers�es mais refinadas, como o anti-humanismo de Martin Heidegger, o desconstrucionismo de Paul de Man, o niilismo de Foucault � at� as diversas vers�es do comunismo: stalinista, mao�sta, trotskista, gramsciana etc. Conforme j� profetizava seu pioneiro Said Qutub, o destino da revolu��o isl�mica � absorver e superar � hegelianamente � todas as revolu��es. Da� o aparente milagre da solidariedade entre esquerdistas e neonazistas nos protestos anti-Bush e nas intrigas antiisraelenses da ONU. � claro que, ao embarcar numa luta de vida e morte contra a revolu��o mundial � e, por tabela, contra o neoglobalismo da ONU �, a pr�pria na��o americana se investe de responsabilidades imperiais. O que poder� vir a ser um Imp�rio americano propriamente dito, nascido sobre os escombros do projeto revolucion�rio e o virtual cad�ver da ONU, � algo que s� come�ar� a se esclarecer daqui por diante. Nem eu nem o sr. Antonio Negri sabemos nada a respeito, e a� surge a quarta e �ltima diferen�a entre n�s: ele acha que sabe.
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