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 A morte do pato 

Olavo de Carvalho
 O Globo , 9 de março de 2002 



A opera��o policial que � por coincid�ncia, segundo o sr. ministro da Justi�a, por mera coincid�ncia � levantou suspeitas quanto � idoneidade do casal Sarney no preciso momento em que a ascens�o de Roseana come�ava a amea�ar tanto Serra quanto Lula serviu no m�nimo para mostrar que as fac��es aparentemente inimigas que sustentam esses dois candidatos est�o firmemente unidas no prop�sito de n�o permitir que nunca, nunca mais, um concorrente estranho � comum origem ideol�gica de tucanos e petistas venha a p�r em risco a hegemonia esquerdista sobre a vida p�blica nacional.

Separados por diferen�as menores, o esquerdismo �modernizado� de FH-Serra e o esquerdismo mais tradicional da oposi��o petista est�o juntos na luta pela sua meta priorit�ria comum, acalentada desde as primeiras leituras de Antonio Gramsci nos c�rculos esquerdistas dos anos 60, que � a de fazer com que todo o espa�o dos debates nacionais venha a ser monopolizado pelo debate interno da esquerda, sem lugar nem chance para mais ningu�m, usando o pr�prio arcabou�o formal do pluralismo democr�tico como meio de impor a toda a na��o o mais imbecilizante unanimismo ideol�gico.

Seguindo estritamente a li��o de Gramsci, essa estrat�gia foi aplicada primeiro nas �reas circundantes � cultura, educa��o, m�dia, sindicalismo � sem afetar diretamente a pol�tica partid�ria e o Congresso. Enquanto em toda parte a liberdade de expor id�ias antiesquerdistas diminu�a semana ap�s semana, o lado �oficial� da pol�tica conservava a apar�ncia de diversidade pluralista necess�ria a desencorajar toda cr�tica mais aprofundada do estado de coisas.

Por�m era fatal que, mais cedo ou mais tarde, implantada a hegemonia em todos os setores circunvizinhos, chegasse a hora de imp�-la tamb�m na esfera pol�tica stricto sensu. A remo��o da candidatura Roseana far� do pr�ximo pleito uma c�pia exata das elei��es estudantis dos anos 60, moldadas segundo a defini��o marxista da democracia como �centralismo democr�tico�, isto �, como livre enfrentamento entre fac��es unidas por princ�pios ideol�gicos imunes a qualquer disputa.

Certos acontecimentos significativos, como a f�cil destrui��o pol�tica do governador Antonio Carlos Magalh�es ou a subida ao Minist�rio da Justi�a de um terrorista impenitente como o sr. Nunes Ferreira, j� deveriam ter bastado para mostrar que a presen�a de uns quantos liberais e conservadores no governo foi apenas uma concess�o provis�ria, destinada a ganhar tempo para a consolida��o de la�os estrat�gicos fundados em lealdades hist�ricas bem mais profundas, de acordo com a f�rmula da �virada � esquerda� oferecida ao presidente da Rep�blica, uns anos atr�s, pelo seu mestre Alain Touraine.

Mas ganhar tempo n�o era tudo. O PFL tamb�m foi mantido na alian�a governista para ser usado como bode expiat�rio dos erros de um governo que, permanecendo socialista em ess�ncia, se deixava identificar como �neoliberal� precisamente para esse fim.

Sob a fachada neoliberal, o governo p�de sustentar com verbas p�blicas o crescimento da maior organiza��o revolucion�ria de massas que j� existiu neste pa�s, o MST � organiza��o ostensivamente dedicada a treinamento de guerrilhas � sem que ningu�m se lembrasse de acus�-lo de esquerdismo por isso, precisamente porque a participa��o do PFL no Minist�rio inibia toda cr�tica �de direita�. Enquanto isso, os ataques vindos da esquerda tinham por alvo justamente o pretenso �neoliberalismo�, acertando n�o o governo como um todo, mas sobretudo sua ala pefelista. Para tornar as coisas ainda mais c�nicas, esses ataques visavam principalmente as privatiza��es, mas, como estas personificavam estereotipicamente a identidade �neoliberal� do governo, ningu�m prestava aten��o ao detalhe de que serviam para favorecer, junto com os t�o odiados compradores estrangeiros, o pr�prio MST. Este, de fato, foi recebendo terras e mais terras que, em vez de serem desapropriadas mediante pr�via e justa indeniza��o, como exige o texto constitucional, eram pagas com T�tulos da D�vida Agr�ria, pap�is de valor duvidoso postos em seguida no mercado e aceitos pelo governo para o pagamento da compra de estatais. � esquerda foi concedido, assim, o invej�vel e duplo privil�gio de poder, ao mesmo tempo, beneficiar-se do desmanche do Estado e conden�-lo na m�dia com aquela ret�rica da indigna��o canina que se tornou, na com�dia do auto-engano nacional, o emblema convencional da honestidade e da pureza.

Durante todo esse tempo, a direita liberal deixou-se usar como instrumento da sua pr�pria destrui��o. N�o apenas ofereceu-se gentilmente para o papel do saco de pancadas, mas deixou-se hipnotizar, enfeiti�ar e dominar pelo discurso ideol�gico esquerdista ao ponto de o pr�prio pai da candidata pefelista, o ex-presidente Jos� Sarney, tornar-se autor de um projeto de quotas raciais que estatui como lei alguns dos mais insanos preconceitos �politicamente corretos� j� desmoralizados pela experi�ncia da affirmative action em v�rios estados americanos. Com essa longa carreira de subservi�ncia oportunista e suicida, n�o era de espantar que mais dia menos dia o partido mais representativo da cren�a liberal fosse submetido a algo como a suprema humilha��o que acaba de cair sobre sua candidata presidencial.

S� n�o direi que a curta e feliz exist�ncia da esperan�a chamada Roseana foi o canto de cisne da direita liberal para n�o ser acusado de elevar, na escala est�tica das esp�cies animais, uma fac��o pol�tica que se deixou assar como um pato. Parafraseando Tennyson, direi apenas que, ap�s muitos ver�es, tamb�m os patos morrem.

Talvez o assalto oficial � reputa��o de Roseana, com todo o cinismo das coincid�ncias inverossimilmente oportunas, sirva tamb�m para alertar os liberais para o fato de que h� doze anos as iniciativas policiais da inquisi��o ��tica� se voltam sempre contra eles e jamais contra socialistas, comunistas e afins, mesmo quando suspeit�ssimos de cumplicidade com a narcoguerrilha das Farc. Diria o ministro da Justi�a que � tudo coincid�ncia, pura coincid�ncia, e pode at� ser que, por coincid�ncia, haja algu�m que acredite no ministro. Afinal, quem acredite na exist�ncia de neoliberalismo tucano pode acreditar em qualquer coisa.

Subir ao governo com FH pareceu � direita liberal, na �poca, um grande feito de esperteza pragm�tica. Mas que � a esperteza pragm�tica sen�o ingenuidade de caipiras, quando comparada a essa j�ia de sutileza, de hipocrisia e de fingimento que � a estrat�gia gramsciana de transi��o gradual e indolor para o socialismo, estrat�gia da qual se confessam seguidores e adeptos tanto o presidente da Rep�blica quanto seus aparentes advers�rios da esquerda tradicional?

Quando haver�o nossos liberais de compreender que uma estrat�gia socialista abrangente n�o pode ser enfrentada no varejo, por improvisos eleitorais de �ltima hora, mas requer toda uma estrat�gia tamb�m abrangente, inacess�vel � estreiteza mental de pragmatistas caipiras?