Dois brasileiros falando
Olavo de Carvalho
Leiam e comparem, por favor, estes dois par�grafos: 1) "O adolescente A. D., 14, que fugiu de casa para se juntar �s Farc, ficou decepcionado ao conhecer as a��es do grupo: "M�e, que decep��o. Pensei que fossem revolucion�rios, mas s�o de direita.�" (Folha de S. Paulo, 26 de agosto de 2003.) 2) "O presidente Luiz In�cio Lula da Silva disse ontem: �Todo mundo sabe que nunca aceitei o r�tulo de esquerda.�" (O Estado de S. Paulo, 27 de agosto de 2003.) O que esses dois brasileiros verbalizam n�o s�o idiossincrasias pessoais, n�o � aberra��o psicop�tica, n�o � desvio de linguagem. �, isto sim, cultura. Cultura, ao menos, no sentido em que a define a Constitui��o federal: "Express�o do modo de ser do nosso povo." Nenhum ser humano, por natureza ou inclina��o pessoal, sem a ajuda de todo um ambiente cultural, de todo um sistema de educa��o, de toda uma muta��o geral da linguagem p�blica, pode chegar a confundir-se t�o profundamente quanto ao sentido do que ele pr�prio diz, quanto o chegaram esse menino fuj�o e esse presidente evasivo. O mais lindo, no caso, � que ambas as falas se tornaram alvo de profusos coment�rios, subscritos pelos mais abalizados formadores de opini�o, sem que nenhum deles se desse conta da anomalia sem�ntica envolvida, ali�s id�ntica nos dois casos. Toda palavra tem denota��o e conota��o, ou sentido direto e sentido translato. Ela indica ou sinaliza alguma coisa, e ao mesmo tempo pode associar a essa coisa uma rea��o do falante, um valor, uma nuance subjetiva qualquer. "Cachorro", por exemplo, denota um certo bicho, mas, conotativamente, pode designar o carinho que se tem por um animal de estima��o ou o desprezo a um ser humano que age caninamente. As conota��es mudam, a denota��o permanece. A palavra "esquerda" significa um conjunto de movimentos e partidos pol�ticos, cujo conte�do ideol�gico pode ser um tanto dif�cil de definir, mas que permanecem, materialmente, distintos de seus contr�rios. Ao mesmo tempo, significa as rea��es de agrado ou desagrado que o falante expressa ante essas entidades. Se gosta delas, "esquerda" � uma virtude. Caso contr�rio, um v�cio. Os valores associados � palavra "esquerda", por�m, adquiriram, em rela��o a suas encarna��es materiais, uma esp�cie de autonomia metaf�sica. Ela pode significar o bem, a virtude, a paz e a justi�a, ou inversamente o crime, a anarquia, a revolu��o, de maneira totalmente independente de sua personifica��o hist�rico-pol�tica. A. D. v� nessa palavra o s�mbolo de tudo o que � bom e generoso. Logo, suprime de seu significado a mais t�pica -- e a mais tipicamente criminosa -- organiza��o esquerdista da Am�rica Latina. Lula quer cair fora da imagem de revolucion�rio e anarquista. Logo, recusa-se a ver algum esquerdismo na sua carreira de presidente de um partido esquerdista e dirigente m�ximo do �rg�o coordenador da esquerda latino-americana. As conota��es suprimiram as denota��es. A express�o dos sentimentos subjetivos prescinde de qualquer alus�o aos objetos correspondentes. Se, discutindo seu conte�do, ningu�m percebeu nada de estranho nas frases mesmas, � que falar assim j� se tornou normal e quase obrigat�rio no Brasil. Pouco importa o "de qu�" voc� est� falando. O que importa � o que voc� "sente". N�o existem mais coisas, fatos, situa��es. Existe somente o amar ou odiar, o desejar ou repelir, o agrad�vel ou o desagrad�vel. Ao ouvir o que dizem A. D. e o presidente, a galera reage exatamente como eles, gostando ou desgostando, sem nem de longe perguntar "de que". Porque falar "de" alguma coisa j� se tornou dispens�vel: tudo o que importa � expressar sentimentos, ainda que seja por alguma entidade et�rea, indefin�vel, autocontradit�ria e perfeitamente inexistente. A l�ngua portuguesa do Brasil, primeiro, suprimiu duas pessoas verbais, a segunda do singular e a do plural, obrigando-se a rodeios incrivelmente posti�os para separar interlocutor e assunto. Depois, aboliu a distin��o entre termo pr�prio e impr�prio, tornando-se incapaz de distinguir entre conceitos e figuras de linguagem. Por fim, eliminou as denota��es, fazendo com que a express�o dos sentimentos valha por si, sem precisar de objeto. Houve tempo em que a queda dos brasileiros na inconsci�ncia era motivo de riso. Depois, tornou-se alarmante. Hoje � uma trag�dia irrevers�vel, consolidada na regra ling��stica.
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