Vítimas e vítimas
Olavo de Carvalho Um dos tra�os mais salientes e escandalosos da vida brasileira hoje em dia � a diferen�a de estatuto social entre dois grupos de "v�timas": as "v�timas da ditadura" e as "v�timas do terrorismo". Em ambos os casos, a express�o engloba n�o somente pessoas que sofreram danos diretos por parte de seus respectivos algozes, mas tamb�m seus familiares e descendentes, herdeiros das l�grimas, das dores e do preju�zo. Mas toda semelhan�a termina a�. No resto, o contraste � brutal. Enquanto os membros do primeiro grupo se deleitam e se lambuzam num festival de belas indeniza��es estatais e desagravos sem fim nos jornais e na TV, sem contentar-se com isso mas antes enfezando-se e choramingando cada vez mais � medida que seus egos feridos recebem novas e novas satisfa��es, os do segundo se afundam cada vez mais num sil�ncio contrito e amedrontado, como se em vez de v�timas fossem criminosos. Ningu�m os indeniza, ningu�m os consola, ningu�m sequer se lembra deles. E h� decerto uma boa raz�o para isso: eles s�o a prova viva de que os do outro grupo n�o s�o inocentes perseguidos, mas c�mplices de crimes hediondos, cujo troco receberam e jamais se conformaram em receber, acreditando-se at� hoje merecedores de pr�mio e n�o de castigo pelos seq�estros, homic�dios e atentados que praticaram. De fato, o regime de 1964 n�o cometeu viol�ncia f�sica contra quem quer que fosse, limitando-se a demitir funcion�rios e a cassar mandatos de pol�ticos acusados de corrup��o ou de cumplicidade na agress�o armada que, desde 1962, a ditadura cubana vinha fomentando e subsidiando no Brasil. A viol�ncia come�ou do outro lado. Quando o governo come�ou a reagir em 1968, organizando a m�quina repressiva que terminaria por estrangular a guerrilha rural e urbana, seus inimigos j� tinham realizado 84 atentados a bomba e n�o poderiam esperar que tanta gentileza continuasse indefinidamente sem resposta � altura. No c�mputo final, houve mais ou menos 300 mortos entre os esquerdistas, 200 entre os agentes do governo, nenhum dos lados podendo, razoavelmente, alegar que s� levou pancadas sem dar nenhuma. E restar� sempre aos adeptos do regime militar a alega��o ver�dica de que sua viol�ncia foi inteiramente reativa, e ali�s moderad�ssima quando se compara a vasta despropor��o de for�as com a pequena diferen�a do n�mero de v�timas. Os homens do governo poderiam ter matado a esquerda inteira: limitaram-se a matar o suficiente para n�o morrer. � absolutamente inaceit�vel o argumento que procura falsear esse equil�brio alegando que havia uma diferen�a de valor moral entre os motivos de um lado e do outro, que uns defendiam uma ditadura e outros lutavam pela democracia. Pois estes �ltimos tinham sua central de comando e sua base de opera��es em Cuba, uma tirania sangrenta que, �quela altura, j� havia matado 14 mil civis desarmados. N�o h� sinceridade nem moral em sujeitos que, a pretexto de lutar contra uma ditadura, se aliam a outra mil vezes mais repressiva e at� genocida. Na melhor e mais branda das hip�teses, isto �, descontando-se as raz�es subjetivas de parte a parte, mortos s�o mortos e mereceriam um tratamento igualmente respeitoso, v�timas s�o v�timas e mereceriam iguais desagravos, danos s�o danos e mereceriam iguais repara��es. O ex�lio, o ostracismo deprimente em que a m�dia e o governo colocaram as v�timas do terrorismo � a prova da total falta de sinceridade, da monstruosa desonestidade das nossas elites falantes e dominantes. Neste mesmo momento, h� centenas de fam�lias que, amedrontadas pelo assalto publicit�rio � imagem de seus mortos, choram em segredo, com medo de revelar uma hist�ria que, em circunst�ncias normais, lhes seria motivo de orgulho. Enquanto o governo n�o tirar essa gente do dep�sito de lixo em que a escondeu, enquanto a esquerda nacional n�o admitir seus crimes em vez de jogar sobre seus advers�rios o monop�lio do mal, tudo neste pa�s ser� fingimento, mentira, hipocrisia e pecado. Os homens de farda, entre os quais o terrorismo colheu a maior parte de suas v�timas, s�o os primeiros que t�m o dever de jamais se conformar com a segunda morte que o establishment brasileiro imp�s a pessoas cujo �nico crime foi o cumprimento do dever. E n�o h� maneira mais nobre de comemorar a data de Caxias do que cada um perguntar a si mesmo, no fundo da sua consci�ncia: o que o patrono do nosso Ex�rcito faria diante de uma situa��o dessas? Ajudaria a encobrir, com sorrisos lisonjeiros, um passado que n�o pode nunca acabar de passar? Ou levantaria sua voz, dia ap�s dia, no mais justo dos protestos, at� que o �ltimo descendente da �ltima v�tima recebesse tratamento digno? |