A História segundo Godot
Olavo de Carvalho
Entre intelectuais de forma��o marxista, � end�mica a dificuldade de raciocinar desde os fatos, desde a experi�ncia direta, sem o apelo a todo um esquadr�o de premissas dogm�ticas, de pressupostos indeclarados, cujo poder de validar conclus�es depende por inteiro da cumplicidade de um p�blico ling�isticamente intoxicado. A f� comum, a rede de cren�as semiconscientes cristalizada num extenso rol de cacoetes verbais coletivos, tem o dom de infundir credibilidade em afirmativas que, examinadas com um pouquinho, s� um pouquinho de senso cr�tico, se revelam absolutamente insustent�veis. A express�o "capitalismo tardio", por exemplo, � usada a torto e a direito para dar a entender algo que se toma por abundantemente conhecido e demonstrado. Acabo de rel�-la, pela milion�sima vez, na entrevista de Roberto Schwarz � revista Cult, onde ele a repete com a mesma candura bisonha de gera��es e gera��es de marxistas. A refer�ncia cronol�gica do adjetivo � claramente absurda. Ela d� a entender que o capitalismo tem um prazo fixo de exist�ncia hist�rica, j� vencido, sendo toda a exist�ncia posterior desse sistema um acidente protelat�rio que, no fundo, n�o altera em nada o cronograma infal�vel da profecia socialista. Em quase metade do planeta, o que acabou foi o socialismo, enquanto o capitalismo continua se expandindo, indiferente �s profecias. Mas basta pronunciar a jaculat�ria "capitalismo tardio", e num instante as doses respectivas de realidade e fantasia se invertem: os fatos tornam-se evanescentes, a hip�tese messi�nica adquire a presen�a real, f�sica, de um fato consumado. � um ritual de magia te�rgica, a evoca��o de uma miragem que, pelo poder da f�, se torna mais real do que o mundo presente. Credo quia absurdum est. Mais que um ato de f�, � um dist�rbio psic�tico da percep��o de tempo. Na vis�o crist� da Hist�ria, o tempo e a eternidade se articulavam numa rela��o tal que nela a eternidade podia localizar-se, sem contradi��o, "acima" de todos os tempos, "em" cada um deles ou "depois" da consuma��o deles, conforme fosse concebida em sua tripla natureza de supratempo, de perman�ncia imut�vel ou de moldura metaf�sica dos tempos. Na historiologia marxista, essas caracter�sticas s�o projetadas sobre uma determinada fra��o do tempo, a �poca do socialismo, que, encarregada de personificar a meta a que conduzem as �pocas anteriores, se investe, por impregna��o sem�ntica, dos outros dois atributos da eternidade: torna-se a chave da cronologia e o ponto fixo por cima de todos os tempos, o supra-fato permanente do qual os fatos da Hist�ria s�o meras apar�ncias ou camuflagens provis�rias. A psicose marxista faz de um futuro conjetural a suprema realidade incumbida n�o s� de medir o avan�o dos tempos, mas de conferir ou negar realidade a cada um conforme se aproxime ou se afaste da expectativa projetada para al�m deles. O futuro deixa de ser contingente, tornando-se necess�rio, enquanto o passado deixa de ser fato irrevers�vel para tornar-se hip�tese contingente que o futuro h� de validar ou impugnar, n�o quando e se esse futuro vier a se realizar, mas desde j�. Embora nenhum te�rico socialista possa dizer quando o tal socialismo vir� a imperar no mundo, a dura��o maior ou menor do capitalismo � antecipadamente medida na escala do esperado advento do seu sucessor, o Godot da cronologia hist�rica, transfigurado em papel-t�tulo do "Exterminador do Futuro". N�o uso o termo "psicose" � toa. Confiram em qualquer tratado de psicopatologia (por exemplo, Gabriel Deshaies, Psychopathologie G�n�rale, Paris, P. U. F.), e ver�o que a estrutura do tempo no marxismo � id�ntica � da temporalidade m�rbida nos del�rios de um paran�ico: aquilo que n�o aconteceu, que simplesmente se sup�e venha a acontecer, torna-se o crit�rio da realidade do acontecido. A credibilidade das conclus�es extra�das de premissas assim formadas n�o depende, � claro, de nenhuma persuas�o racional, mas da impregna��o na expectativa messi�nica subentendida, que a intensidade emocional do senso de participa��o no empenho de realiz�-la transformar� no equivalente on�rico de uma evid�ncia autoprobante. Na linguagem dos marxistas, s�o milhares as express�es desse tipo, compacta��es de pressupostos insensatos que, jamais analisados ou conscientizados, funcionam como v�rus de computador, corrompendo e viciando a intelig�ncia para que jamais atine com as verdades mais �bvias. A mente formada nesse molde � capaz de prod�gios de automistifica��o que o cidad�o comum nem imagina, mas que acabam por infect�-lo justamente porque ele d� ouvidos aos intelectuais marxistas como se estes fossem pessoas normais e sinceras, sem suspeitar que est� naquele mesmo momento sendo v�tima de um ataque mortal ao seu cr�dulo e indefeso HD. � s� a deformidade cong�nita da mente marxista que pode explicar os abismos de baixeza em que mesmo os melhores pensadores dessa escola mergulhavam sem o menor sinal de algum abalo de consci�ncia. O pr�prio Karl Marx, que escreveu p�ginas candentes contra os burgueses que abusavam das prolet�rias, nunca permitiu que o filho que tivera com a empregada se sentasse � mesa com a fam�lia. Max Horkheimer, no famoso instituto de Frankfurt, reduzia seus colaboradores � mis�ria para assegurar a si mesmo ganhos dignos de um rei. Adorno, o sensibil�ssimo Adorno, filho de um pr�spero comerciante de vinhos, conspirava para tomar o emprego de Herbert Marcuse, que n�o tinha onde cair morto. Essas condutas, entre os mais c�lebres intelectuais marxistas, s�o a regra e n�o exce��es. Mais que vulgar hipocrisia, elas revelam uma lacuna de consci�ncia, um hiato entre a intelig�ncia teorizante e a vida real. Se querem a explica��o do estado ca�tico e tempestuoso da vida brasileira hoje, basta ter em conta a influ�ncia dominante e avassaladora que o marxismo, sem que se lhe opusesse uma s� gota de contraveneno, veio exercendo na forma��o universit�ria das nossas elites intelectuais e pol�ticas desde pelo menos a d�cada de 80. Marxistas s�o, por defini��o, pessoas desorientadas e confusas, ansiosas para arrastar os outros na voragem da sua confus�o. |