Tudo dominado
Olavo de Carvalho
Alguns advers�rios do governo v�em na queda da popularidade do presidente da Rep�blica um auspicioso sinal de que o eleitorado vai se libertando da ilus�o esquerdista. Mas isso sim � que � ilus�o. A for�a de uma corrente pol�tica n�o se mede pelo prest�gio de um de seus membros, mas pela somat�ria dos seus meios de a��o, comparados aos do antagonista. O mais decisivo � a predisposi��o do p�blico para aceitar o discurso de um dos lados. Hoje em dia, a credibilidade a priori da fala esquerdista � t�o hegem�nica que qualquer argumento contra, j� n�o digo para ser aceito, mas simplesmente para ser compreendido, tem de se traduzir nos termos dela, esvaziando-se de toda energia pr�pria. A esquerda tem o monop�lio do ide�rio nacional, da linguagem dos debates p�blicos, dos crit�rios de julgamento do bem e do mal. Isso equivale, em pol�tica, ao dom�nio do espa�o a�reo em estrat�gia militar. O inimigo pode criar focos de resist�ncia limitados e pontuais, mas o conjunto, o esquema geral, est� sob controle. Como diriam os evang�licos, est� tudo dominado. Um dos sinais mais inequ�vocos � o direito adquirido que qualquer esquerdista tem de ser interpretado sempre da maneira mais ben�vola, enquanto toda palavra que venha da direita �, infalivelmente, ouvida com mal�cia. Imaginem o que aconteceria se um l�der dos fazendeiros, somando os militantes do MST, dissesse: "Vamos nos organizar e acabar com todos eles." Quem, na m�dia ou na classe pol�tica, hesitaria em ver nisso um apelo ao genoc�dio? Mas, quando o sr. Stedile anuncia seu prop�sito de reunir um ex�rcito de 23 milh�es de militantes para "acabar com todos os fazendeiros", o dr. Marcio Thomaz Bastos, com a cara mais bisonha do mundo, pontifica que o movimento chefiado por esse indiv�duo "n�o � caso de pol�cia". O presidente do PT, Jos� Geno�no, mais calmante que um Dienpax na veia, filosofa que a tomada de propriedades pela for�a "� coisa da vida". E o bispo Casald�liga, levando sua caricatura simiesca da f� crist� �s �ltimas conseq��ncias, condena como "satanismo" a resist�ncia �s invas�es. Voc�s lembram o que a m�dia fez com o ex-governador Maluf quando, numa frase desastrada, disse "Estupra mas n�o mata"? � claro. Um direitista, ou qualquer um assim rotulado, n�o tem direito sequer a um lapsus linguae, por mais patente e boboca que seja. Mas quando o sr. Stedile conta as cabe�as de seus advers�rios e promete cortar todas, � o pr�prio ministro da Justi�a quem vem correndo diluir o conte�do de suas palavras, para que n�o manchem a reputa��o de um "movimento social", coisa inocente e c�ndida por defini��o. Como "acabar" com 27 mil cidad�os, sen�o matando-os ou aterrorizando-os? Se essa amea�a n�o � caso de pol�cia, confesso que ficarei inibido de apelar ao socorro policial na eventualidade de algum desafeto meu, reunindo mil parceiros armados de foices, fac�es, rev�lveres e carabinas, prometer "acabar" comigo. Mil contra um, antigamente, era covardia, era massacre. Hoje � "movimento social". E "honni soit qui mal y pense". Afinal, os revisionistas do Holocausto tamb�m n�o alegavam que Hitler jamais amea�ara "matar" os judeus, apenas "acabar" com eles? Foram os p�rfidos sionistas que, retrospectivamente, atribu�ram m�s inten��es �quele doce de criatura. Hegemonia ling��stica � isso: basta mudar o nome de um crime, e ele deixa de ser crime. Passa a ser uma "coisa da vida", se n�o a express�o da vontade divina, que s� "satanistas" ousariam contrariar. Mas as massas de camponeses sob o comando de Mao Ts�-tung n�o eram um "movimento social"? N�o eram "movimentos sociais" as hordas de p�s-rapados que, com estandartes nazistas, marchavam pelas ruas de Berlim exigindo "acabar" com os ricos e os comunistas? N�o s�o "movimentos sociais" as tropas de invasores que, no Zimb�bue, j� "acabaram" com mais de mil fazendeiros? N�o � "movimento social" a narcoguerrilha colombiana, que d� emprego a milhares de plantadores pobres? Segundo o nosso governo, as Farc s�o uma organiza��o t�o respeit�vel quanto o governo da Col�mbia. Se, portanto, com a melhor das inten��es sociais, elas injetam no mercado nacional duzentas toneladas de coca�na por ano, isso � ou n�o � um caso de pol�cia? � crime ou "coisa da vida"? Perguntem ao ministro da Justi�a, perguntem a Jos� Geno�no, perguntem a Dom Pedro Casald�liga. A l�ngua portuguesa do Brasil, aviltada pelo abuso sem�ntico institucionalizado, j� n�o serve para a gente se explicar sobre o que quer que seja: serve s� para papaguear chav�es esquerdistas. Por isso � que os fazendeiros se enganam tragicamente quando pensam que, com guardas armados, podem resistir �s invas�es. N�o se vence, com balas, a for�a da hegemonia, o poder hipn�tico de sedu��es verbais que, ao longo de d�cadas de "revolu��o cultural", enfeiti�aram a alma da sociedade. N�o se vence, com resist�ncias locais e avulsas, uma estrat�gia abrangente e complexa que muito antes de dominar o Estado j� dominava todas as consci�ncias. Por isso tamb�m se enganam aqueles que, escandalizados com a mar� montante das invas�es e da viol�ncia em geral, cobram do governo que "tome uma atitude", que "cumpra sua fun��o". Ele j� tomou essa atitude, j� cumpre essa fun��o. Todo partido revolucion�rio que, por meio do voto, sobe ao poder numa democracia constitucional, s� pode ter uma dentre duas fun��es: ou assume a condu��o do processo revolucion�rio, como fizeram Allende e Jo�o Goulart, arriscando-se a terminar como eles, ou, ao contr�rio, fica na retaguarda, acalmando os investidores internacionais, anestesiando a opini�o p�blica e montando um simulacro de normalidade enquanto deixa �s organiza��es militantes a incumb�ncia de, com sua discreta ajuda, tomar a dianteira e apoderar-se de todos os meios de a��o, isolando e paralisando o advers�rio. Esta �ltima alternativa � complexa e delicada, mas indolor: as �nicas armas de que um governo precisa para ser bem sucedido nela s�o anest�sicos, sopor�feros, tranq�ilizantes, eufemismos, evasivas e desconversas. E no manejo desse arsenal o governo Lula � formidavelmente bom. |