Para uma antropologia filosófica
Olavo de Carvalho A condi��o humana mais geral e permanente, a estrutura fixa por tr�s de toda varia��o local e hist�rica, pode-se resumir em seis interroga��es b�sicas, articuladas em tr�s eixos de polaridades, cujas tentativas de resposta, estas sim temporais e vari�veis, d�o as coordenadas da orienta��o do homem na exist�ncia. O primeiro eixo � "origem-fim". Ningu�m jamais soube onde e quando o conjunto da realidade come�ou nem como ou quando vai terminar. Pode-se arriscar uma teoria da eternidade do mundo, um mito cosmog�nico ou a imagem do "big bang", uma teologia da cria��o ou um atomismo materialista, cada qual com sua respectiva explica��o do fim. Nenhuma delas jamais obteve aceita��o universal. O que n�o se pode � ignorar a quest�o, pois dela depende o nosso senso de orienta��o no tempo, a possibilidade de conceber projetos e dar forma narrativa �s nossas experi�ncias. O segundo eixo � "natureza-sociedade". Todo homem vive entre dois campos da realidade, um anterior e independente da a��o humana, o outro criado por ela. A diferen�a e a articula��o desses campos aparecem no contraste entre o geometrismo da taba circular e o matagal informe, na oposi��o de L�vi-Strauss entre o cru e o cozido, no instinto de buscar a prote��o do grupo contra os animais e as intemp�ries ou, inversamente, no sonho rousseauniano de encontrar na natureza um abrigo contra os males do conv�vio social. A natureza pode aparecer como um pesadelo tem�vel ou como seio materno acolhedor. A sociedade pode ser lar ou pris�o, fraternidade ou guerra. Pode-se fazer da natureza uma esp�cie de ordem social, como na antiga cosmobiologia, ou naturalizar a sociedade, como na antropologia evolucionista. Mas essas tentativas s� revelam a impossibilidade, seja de explicar um dos termos pelo seu contr�rio, seja de articul�-los numa equa��o definitiva, seja de compreender um deles sem refer�ncia ao outro. O terceiro eixo � "iman�ncia-transcend�ncia". Cada ser humano sabe que ele pr�prio existe, que tem um "mundo" interior de experi�ncias, recorda��es, desejos, temores. Mas sabe tamb�m que esse po�o � sem fundo, que ningu�m pode compreender-se ou ignorar-se totalmente, que cada alma encontra dentro de si algo de estranho e atemorizante, que cada um se conhece e se desconhece quase tanto quanto aos demais. Buscamos na nossa intimidade o abrigo contra a maldade alheia, assim como buscamos no outro, no amigo, na esposa, a prote��o contra nossos fantasmas interiores. Cada um de n�s � pr�ximo e estranho a si mesmo. Por outro lado, para al�m de tudo o que se pode conhecer da realidade, para al�m de toda experi�ncia alcan��vel, cada homem e cada cultura pressente um fator "x", que, desde acima ou desde o fundo do fluxo dos acontecimentos, faz com que as coisas sejam o que s�o e n�o de outro modo. "Por que existe o ser e n�o antes o nada?": assim formulava Schelling a interroga��o suprema. Podemos tentar respond�-la pela concep��o de um absoluto metaf�sico, de uma divindade ordenadora ou de uma fant�stica auto-regula��o de coincid�ncias. Podemos at� expuls�-la da discuss�o p�blica, deixando-a � merc� do arb�trio privado, com a abjeta covardia intelectual do agnosticismo moderno. Mas mesmo ent�o sabemos que n�o escapamos dela. Entre a iman�ncia e a transcend�ncia, v�rias articula��es s�o poss�veis, mas nenhuma satisfat�ria. Podemos conceber o transcendente � imagem do nosso ser �ntimo, como divindade bondosa que nos compreende e nos ama -- mas isso far� ressaltar ainda mais o que a vida tem de estranheza fria e hostilidade demon�aca. Podemos imagin�-lo com os tra�os impessoais e mec�nicos de uma f�rmula matem�tica -- mas isso n�o nos impedir� de amaldi�oar ou bendizer o destino, subentendendo nele uma intencionalidade humana quando nos oprime ou nos reconforta. Cada um dos p�los � uma interroga��o, um misto de ignor�ncia e conhecimento, um foco de tens�es espirituais. Cada um articula-se com seu oposto, num m�tuo esclarecimento -- ou multiplica��o -- de tens�es. E no ponto de interse��o dos tr�s eixos, como no das tr�s dire��es do espa�o, fixado na estrutura da realidade como Cristo na cruz, est� o ser humano. Cren�as, cosmovis�es, doutrinas, diferem sobretudo pela hierarquia que estabelecem entre os seis fatores por meio de assimila��es e redu��es. Muitas culturas arcaicas privilegiavam o fator "origem", explicando sociedade e natureza por um mito cosmog�nico, ignorando a transcend�ncia e a iman�ncia. A escol�stica medieval remeteu-se � transcend�ncia, sonhando poder deduzir dela uma ordem intelectual completa e definitiva. A modernidade absorveu tudo na oposi��o natureza-sociedade, esperando n�o menos utopicamente reduzir os mist�rios da transcend�ncia e da iman�ncia, da origem e do fim, a quest�es de part�culas subat�micas, c�digo gen�tico e an�lise ling��stica. Preparou assim o advento das ideologias totalit�rias que fizeram da sociedade a raz�o �ltima da origem e do fim, colocando entre par�nteses a natureza, sufocando a iman�ncia e vedando o acesso � transcend�ncia. Cada um desses arranjos, mesmo o mais limitador, � leg�timo e funcional a t�tulo provis�rio, como experimento de sondagem numa certa dire��o que os interesses de um momento enfatizaram. Torna-se alienante e opressivo quando se cristaliza numa proibi��o de olhar para al�m da articula��o admitida. S� a abertura da alma para a simultaneidade dos seis p�los, com suas luzes e trevas, d� acesso � experi�ncia realista da condi��o humana e, portanto, � possibilidade da sabedoria. Todas as explica��es que, para enfatizar uma articula��o em particular, negam ou suprimem a estrutura do conjunto, s�o falsas ou est�reis. Filosofias como o marxismo, o positivismo, o pragmatismo, a escola anal�tica, o nietzscheanismo, o freudismo, o desconstrucionismo, -- todas aquelas, enfim, que ocupam o espa�o inteiro do ensino acad�mico neste pa�s -- s�o doen�as espirituais, obsess�es que nos encerram hipnoticamente no fasc�nio de uma resposta ao mesmo tempo que apagam o quadro de refer�ncias que d� sentido � pergunta. |