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Literatura do baixo ventre

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 03 de julho de 2003

 

Nas suas Mem�rias, de 1994, Adolfo Bioy Casares deixou este depoimento sobre sua colabora��o com Jorge Lu�s Borges:

"As primeiras coisas v�m primeiro, e as segundas podem-se esquecer: a prioridade era a literatura, a adequa��o liter�ria, a filosofia, a verdade... Para os dois, o mais importante era compreender... Ent�o n�o se tratava dele nem de mim, de quem havia falado, mas de haver entendido a verdade de algo."

No mesmo sentido, j� havia anotado em Di�rio e Fantasia:

"A intelig�ncia trabalha como uma esp�cie de �tica. N�o permite concess�es, n�o tolera ruindades."

Quantos escritores brasileiros das �ltimas tr�s ou quatro d�cadas poderiam repetir essas palavras com igual sinceridade?

Para come�ar, n�o acreditam em "verdade". Livram-se dela com dois ou tr�s chav�es relativistas ou desconstrucionistas, e n�o pensam mais nisso. Quanto � sinceridade, imaginam que consista em detalhes de fisiologia sexual.

A grande literatura nasce da s�ntese do fervor, da devo��o, da sinceridade moral, com a eleva��o da intelig�ncia e a amplitude da vis�o do mundo. Entre as d�cadas de 20 e 60 as letras brasileiras quase alcan�aram o ponto de fus�o em que a mistura desses elementos produziria a "high seriousness" exigida por Mathew Arnold. Mas, depois, a mistura desandou. Voltamos miseravelmente � escrita dos samoiedas, os literatos da Bruzundanga, assim descritos por Lima Barreto em 1922:

"N�o h� na maioria daquela gente uma profundeza de sentimento que a impila a ir ao �mago das coisas que fingem amar, de decifr�-las pelo amor sincero em que as t�m, de quer�-las totalmente, de absorv�-las. S� querem a apar�ncia das coisas... A gl�ria das letras, s� a tem quem a elas se d� inteiramente; nelas, como no amor, s� � amado quem se esquece de si inteiramente e se entrega com f� cega. Os samoiedas contentam-se com as apar�ncias liter�rias e a banal simula��o de notoriedade, umas vezes por incapacidade de intelig�ncia, em outras por instru��o insuficiente ou viciada, quase sempre, por�m, por falta de verdadeiro talento po�tico, de sinceridade..."

A sinceridade mede-se pelo esfor�o. Antes de acertar definitivamente a m�o com La Invenci�n de Morel (1940), Bioy escreveu, dos vinte aos vinte e seis anos, uma infinidade de contos e romances muito ruins. Mas n�o foi tempo perdido:

"Naquele per�odo de cria��o cont�nua e desafortunada, li e estudei muito. Li literatura espanhola, com a inten��o de abarc�-la na diversidade dos seus g�neros, desde os come�os at� o presente, sem limitar-me aos autores e livros mais conhecidos; literatura argentina, sem excluir formas populares, como as letras de tango e milonga, que selecionava em El Alma que Canta e em El Canta Claro, para uma prov�vel antologia; literatura francesa, inglesa, norte-americana e russa; algo da alem�, da italiana, da portuguesa (desde logo, E�a de Queiroz); literatura grega e latina, algo da chinesa, da japonesa, da persa. Teorias liter�rias. Versifica��o, sintaxe, gram�tica. The Art of Writing de Stevenson, Dealing with Words de Vernon Lee. Filosofia, l�gica, l�gica simb�lica. Introdu��es �s ci�ncias, classifica��es das ci�ncias, introdu��o �s matem�ticas. A B�blia. Santo Agostinho. Padres da Igreja. A relatividade. A quarta dimens�o. Teorias biol�gicas."

Basta ler esse par�grafo para perceber instantaneamente o que h� de errado com a cultura nacional. O romancista argentino -- como ali�s em seu tempo o pobre Lima Barreto, espremendo o or�amento raqu�tico para comprar livros de filosofia e ci�ncia -- estudou mais durante esses seis anos do que o fez ao longo da vida inteira qualquer dos escritores nacionais que o nosso p�blico de hoje aplaude. Quantos dentre eles chegam a ter ao menos o interesse, por vago e pregui�oso que seja, de estender sua vis�o das coisas por um dom�nio t�o amplo de conhecimentos? Nenhum chega mesmo a conceber a possibilidade de faz�-lo, e, se lhe insinuamos que haveria nisso alguma conveni�ncia, a resposta quase infal�vel � um par de olhos arregalados seguidos de uma desconversa mordaz. Estudo s�rio � para professores, e mesmo assim olhe l�! Modera��o nisso. Nada al�m do exigido pelo curr�culo. Literato brasileiro que se preza tem o esfor�o intelectual na conta de pedantismo reacion�rio e, segundo afirma um deles com orgulho, "escreve com o baixo ventre".