Simulação geral
Olavo de Carvalho
Andei discutindo outro dia no meu blog umas idéias que talvez valha a pena resumir aqui. É que se tornou impossível examinar este país sob a ótica da filosofia política, a qual pressupõe, nos agentes do processo histórico, um mínimo indispensável de consistência, de realidade, de substancialidade. No Brasil de hoje tudo é simulação, e o único enfoque viável para estudar um caso desses é o da psicopatologia social, porque aí todas as conexões observáveis entre pensamento e realidade, entre vida interior e conduta exterior, são mesmo convencionais e fantasiosas.
A estrutura típica da ação humana, nesse quadro, é a de um engano mútuo fundado num duplo auto-engano, multiplicando-se num efeito em espelho até a total impossibilidade de controlar - ou até de narrar - o fluxo dos acontecimentos. Tudo começa com uma mentira consciente, mas que já não se reconhece como tal na prole inumerável das mentiras auxiliares produzidas automaticamente para sustentá-la. Nesse jogo de esconde-esconde, qualquer discussão de idéias, doutrinas ou programas nunca é o que parece, mas também não é o que os produtores da comédia desejariam que parecesse, uma vez que eles não têm domínio suficiente da realidade para projetar um efeito previsível e acabam sendo eles próprios arrastados na dança de fantasmagorias que encenaram. É a apoteose da macaquice, que termina por macaquear-se a si mesma, na ilusão suprema de poder restabelecer contato com a realidade por meio de uma macaqueação de segundo grau.
Expondo essas idéias, recebi do embaixador Meira Penna, por
intermédio de um artigo seu, a sugestão de que o
estado de coisas talvez se devesse ao fato de que o Brasil, por
falta de saber para onde ir, está copiando meio às
tontas o modelo chinês de esquizofrenia política: um
Estado, dois regimes. Com a ressalva de que o nosso modelo parece
menos chinês do que venezuelano - capitalismo para fora,
socialismo para dentro -, a duplicidade é um fato. Só
não sei se ela é causa ou resultado. Afinal,
não é este o país em que todo mundo insiste em
continuar esquerdista, como se isso fosse uma questão de
honra, ao mesmo tempo que admite que a esquerda não tem
projeto nenhum para a sociedade, como se a honra consistisse em
não largar a rapadura quando se confessa já não
ter dentes para roê-la? Não é este o país
que admite sua impotência ante meros assaltantes de rua e ao
mesmo tempo sonha em dar uma surra nos marines na selva
amazônica (com o agravante de que lá não
há marine nenhum e sim um punhado de guerrilheiros das Farc)?
Não é este o país que sai alardeando
fórmulas para acabar com a fome no mundo antes mesmo de
tê-las experimentado com algum sucesso em seu próprio
território? Não é a duplicidade de regime que
está nos enlouquecendo: vamos entrando num regime duplo
porque estamos malucos faz tempo. |