O pai dos burros
Olavo de Carvalho
O Dicion�rio Houaiss define "socialismo" como "conjunto de doutrinas (a) de fundo humanit�rio que visam reformar a sociedade capitalista (b) para diminuir um pouco de suas desigualdades; conjunto de doutrinas que, (c) tendo por objetivo o bem comum, (d) preconizam uma reforma radical da organiza��o social, mediante a supress�o das classes e a coletiviza��o dos meios de produ��o e de distribui��o". As caracter�sticas a� assinaladas s�o quatro. S� a �ltima � um tra�o definit�rio: as outras tr�s s�o virtudes autoproclamadas que o socialismo emprega na sua propaganda, mas que n�o o definem de maneira alguma. N�o o definem, acima de tudo, porque n�o lhe s�o pr�prias, mas comuns a pelo menos dois de seus concorrentes: o liberalismo e a doutrina social da Igreja. Nada mais expressivo do humanitarismo do que os primeiros passos com que o capitalismo emergente no s�culo XIX marcou, por atos e n�o por promessas, seu ingresso na hist�ria do mundo: o governo constitucional, os tribunais livres, a liberdade de imprensa. Para diminuir as desigualdades, o socialismo nunca fez -- ali�s nem imaginou -- nada de compar�vel � aboli��o da escravatura e das servid�es territoriais, � universaliza��o do trabalho livre e � supress�o dos privil�gios de casta, tr�s realiza��es tipicamente capitalistas. Por fim, muito antes da difus�o das id�ias socialistas o conceito de "bem comum", que remonta a Arist�teles e a Sto. Tom�s, j� estava integrado na doutrina social da Igreja, que dele deduzia, precisamente, a necessidade da propriedade privada dos meios de produ��o em vez de sua concentra��o em m�os de uma burocracia estatal onipotente. Sobra, portanto, para definir o socialismo, s� a coletiviza��o dos meios de produ��o. J� que o Houaiss n�o diz o que ela �, digo-o eu: � suprimir a exist�ncia do poder econ�mico independente, concentrando todas as riquezas e o seu controle nas m�os dos que t�m o poder pol�tico. Tal �, rigorosamente, a defini��o do socialismo: a unifica��o de poder econ�mico e pol�tico. No capitalismo h� uma classe burguesa, dona dos meios de produ��o, e uma classe pol�tica que ora se alia com ela, ora lhe faz oposi��o (como j� se v� pelo simples fato de serem t�o numerosos os pol�ticos socialistas). H� ricos fora da pol�tica e pol�ticos sem poder econ�mico. No socialismo n�o h� uma coisa nem outra: quem tem o poder pol�tico tem o econ�mico, e quem n�o tem este nem aquele n�o tem nada. Por isso, enquanto cada cidad�o das rep�blicas socialistas na d�cada de 80 comia menos prote�nas que um s�dito do tzar, cada membro da nomenklatura sovi�tica possu�a uma casa de campo do tamanho do Museu da Rep�blica e os chazinhos �ntimos que a sra. Brejnev dava para suas amigas �s quintas-feiras eram abrilhantados por nada menos que a Sinf�nica de Moucou. Por isso surgiram tantos milion�rios das cinzas de um regime em que, nominalmente, ningu�m tinha riqueza pessoal. Isso era absolutamente inevit�vel, sendo o socialismo o que �. Que tantas pessoas tenham chegado a imaginar que o socialismo fosse um bom modo de reduzir as desigualdades, eis um daqueles grandes mist�rios da alma humana que nem o pr�prio Dr. Freud jamais ousou sondar. Calemo-nos portanto diante da majestas imbecilitatis, e voltemos ao dicion�rio. Uma boa defini��o deve dizer o essencial do seu objeto e nada al�m dele. O Houaiss omite a defini��o do socialismo e o adorna de qualidades que n�o s�o dele. Mill�r Fernandes dizia que Antonio Houaiss conhecia todas as palavra do idioma, s� lhe faltando saber junt�-las. Aqui, ao contr�rio, ele as juntou muito bem, mas s� para separ�-las infinitamente da realidade a que fingem aludir. Que o verbete assim redigido acabasse sendo usado na propaganda do Partido Socialista Brasileiro na TV, nada mais natural. O pr�prio Houaiss era membro desse Partido. As sucessivas edi��es do seu dicion�rio constituem, portanto, uma esp�cie de milit�ncia de al�m-t�mulo. Em seu cl�ssico Tratado da Desinforma��o, Vladimir Volkoff assinala que, desde a d�cada de 30, a KGB j� real�ava a import�ncia dos dicion�rios como instrumentos de domina��o cultural, deformando a linguagem para embotar as consci�ncias. � assim que esses grossos repert�rios de palavras v�o merecendo cada vez mais a denomina��o de "pais dos burros": pois geram leitores que pensam como seus autores. |