Os ricos em fuga
Olavo de Carvalho O destino de cada na��o depende de muitos fatores, mas um deles � a exist�ncia � ou n�o � de indiv�duos que se sintam respons�veis, de maneira direta e pessoal, por esse destino. Juntos ou separados, tais indiv�duos formam uma esp�cie de aristocracia, que n�o se confunde com a nobreza heredit�ria, com a grande burguesia ou com a classe letrada. Ao contr�rio. Muitas vezes prov�m dos meios populares, mas seu senso de responsabilidade e iniciativa acaba por lev�-los a uma posi��o de lideran�a da qual emergem, com o tempo, aquelas tr�s classes privilegiadas. A aristocracia europ�ia nasceu todinha dos talentos militares espont�neos que, ante a passividade geral da sociedade em decomposi��o ap�s o fim do Imp�rio Romano, se ergueram contra os b�rbaros invasores, organizaram a defesa e restauraram o senso de ordem, de lei, de civiliza��o. Seus privil�gios originaram-se do simples reconhecimento das comunidades, que deram terras, dinheiro, cargos p�blicos e direitos especiais �queles que as salvaram do perigo. De modo an�logo, a elite comunista que governa a China at� hoje conquistou seu lugar pelo of�cio das armas, provando sua disposi��o e capacidade de defender o pa�s contra a invas�o japonesa melhor do que podia faz�-lo o velho governo constitu�do; terminada a guerra, a China tinha uma nova classe dominante. Os exemplos poderiam multiplicar-se ad infinitum: as classes que ascendem ao dom�nio das sociedades n�o surgem do nada, nem da explora��o: surgem da capacidade de liderar o conjunto, de propor metas e estrat�gias, de guiar e organizar o povo para a realiza��o de valores que s�o reconhecidos por todos. Nem sempre, � claro, a nova classe se constitui no campo da guerra. Os desbravadores de territ�rio, os pioneiros da t�cnica e da ind�stria, os s�bios, os educadores morais e intelectuais da multid�o � s�o outros tantos exemplos de l�deres que o pr�prio povo eleva espontaneamente � condi��o de classe privilegiada, por gratid�o e respeito, quando n�o pelo simples efeito natural, quase aerodin�mico, que eleva mais alto os que voam na frente. Mas tamb�m � certo que, consolidados os privil�gios, nem sempre os valores e virtudes que os geraram se transmitem �s gera��es subseq�entes. Com o tempo, os herdeiros acabam por imaginar que sua posi��o na sociedade � uma esp�cie de direito natural ou divino, eterno e incondicionado; que seu �nico dever � desfrutar de seus privil�gios ou ampli�-los per fas et per nefas, ainda que em preju�zo da sociedade que os elevou ao poder e � gl�ria. Ent�o seus interesses entram em choque com os da maioria. A luta de classes n�o � a for�a causal constante que move a sociedade, mas � o efeito inevit�vel do decl�nio da pr�pria classe dominante. Por isso mesmo � ut�pico acreditar que o �direito de propriedade� possa ser defendido incondicionalmente, a despeito da temperatura moral da �poca; pois o direito de um n�o � sen�o a obriga��o de outro para com ele � e a obriga��o da maioria para com as elites, que deriva temporalmente e depende logicamente da obriga��o destas para com ela, n�o poderia subsistir por muito tempo � autodemiss�o moral das classes superiores. Por fim, � claro que, entre os dois momentos acima apontados, o da ascens�o criadora e o da expans�o predat�ria, arrivistas e oportunistas de toda sorte embarcam como passageiros clandestinos na classe dominante em forma��o, apressando o decl�nio de seu �mpeto origin�rio, a deteriora��o de suas virtudes e a dissolu��o de seu senso de responsabilidade. Dito isso, a aplica��o desse crit�rio para a obten��o de um diagn�stico moral das classes superiores no Brasil de hoje pode ser feita da maneira mais f�cil, mediante a simples coleta de um dado que � vis�vel � literalmente � com os olhos da cara. Percorra o leitor as ruas centrais de qualquer grande cidade brasileira, aquelas mesmas ruas onde pouco tempo atr�s se instalavam orgulhosamente os escrit�rios das melhores empresas: ver� uma multid�o de placas de �Vende-se� e �Aluga-se� em im�veis abandonados, deteriorados, cobertos de inscri��es no hediondo alfabeto dos grafiteiros. Panorama id�ntico observa-se nos bairros residenciais que dez ou quinze anos atr�s eram considerados elegantes. E mesmo os condom�nios fechados s�o progressivamente abandonados por outros mais long�nquos, cada vez mais long�nquos. O territ�rio conquistado num esfor�o secular de constru��o e civiliza��o � transferido da classe alta para a m�dia, desta para os trabalhadores, destes para a multid�o dos biscateiros, prostitutas e prostitutos, mendigos, assaltantes, batedores de carteiras e passadores de drogas. A fei�ra, a viol�ncia e o caos se expandem em c�rculos conc�ntricos, � medida que a elite foge. Foge deixando atr�s de si um rastro de mis�ria, abandono, decomposi��o. Mais que um s�mbolo, o abandono do espa�o geogr�fico � um sintoma objetivo da demiss�o das classes superiores. Aqueles que, diante do perigo e da dificuldade, abandonam suas pr�prias casas, com muito mais presteza abandonar�o seus deveres e suas responsabilidades, cada qual cuidando apenas da pr�pria sobreviv�ncia, num geral e obsceno �salve-se quem puder�. Esse processo � psicologicamente compreens�vel, mas moralmente injustific�vel. Como admitir que aqueles a quem o curso da Hist�ria reservou as melhores por��es do territ�rio n�o sejam sequer capazes de unir-se para defend�-lo? N�o sabem que, ao fugir da luta, n�o beneficiam de maneira alguma o povo, mas simplesmente o deixam � merc� dos piores e dos mais violentos? N�o s�o nem capazes de perceber que, se os ricos se deixam dominar pelo medo e fogem, muito mais terr�vel ser� o medo que se apossar� das almas dos pobres quando, junto com os s�mbolos vis�veis da ordem, a pr�pria ordem tiver desaparecido? N�o sabem que o territ�rio abandonado n�o fica para o povo, mas para uma nova classe dominante, arrebanhada �s pressas entre arrivistas descarados e brutais? E n�o sabem que o abandono do territ�rio f�sico � apenas o prel�dio de um geral abandono do pa�s? PS.: No Rio Grande, o cientista pol�tico Jos� Giusti Tavares, autor do belo livro �Totalitarismo tardio � o caso do PT�, est� sendo processado por ter dito que �o PT n�o � um partido constitucional, � um partido revolucion�rio que realmente aposta na luta armada e n�o aposta em governar� � uma verdade �bvia que eu mesmo venho reiterando h� uma d�cada, em artigos e at� em livros, sem que ningu�m tenha tido jamais a imensa cara de pau de me processar por isso. � �bvio que o PT n�o aposta somente na luta armada (nem o prof. Giusti jamais pensou uma coisa dessas), mas, como � da tradi��o leninista, aposta sempre nos dois cavalos do p�reo revolucion�rio: de um lado, apoio discreto �s Farc e ao treinamento guerrilheiro do MST; de outro, um discurso democr�tico e legalista para fins analg�sicos.
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