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L�ngua dupla e estrat�gia

Olavo de Carvalho
O Globo, 2 de fevereiro de 2002

 

Os “lugares-comuns” foram assim nomeados pelos ret�ricos greco-romanos, que os comparavam a dep�sitos p�blicos de lixo mental, onde o mais pobre dos argumentadores poderia sempre encontrar alguma ferramenta usada que o tirasse do aperto no confronto desvantajoso com o advers�rio mais s�bio. Cada vez que algu�m lan�a m�o de um desses utens�lios para dar impress�o de pensamento quando n�o pensou coisa nenhuma, todo mundo sai perdendo: o idioma � lesado, a intelig�ncia aviltada, a opini�o p�blica ludibriada. No entanto, longe de mim desprezar a for�a dessas velhas armas.

A pot�ncia inesgot�vel de lugares-comuns, clich�s ou frases feitas assemelha-se � do moto-perp�tuo: quanto mais gastos tanto mais persuasivos; quanto mais deslocados do assunto tanto mais eficazes. Sua maior virtude reside precisamente em desviar a discuss�o de um tema dif�cil e mal conhecido para o terreno firme das banalidades costumeiras, onde as conclus�es se produzem com o automatismo f�cil das secre��es org�nicas. O pre�o, evidentemente, � escapar por completo da quest�o em debate -- mas que importa isso a quem quer apenas dar boa impress�o?

N�o h� hoje em dia lugar-comum mais comum do que descartar in limine qualquer alega��o contra o esquerdismo sob o pretexto de que ela nasce do “�dio”. Mais tipicamente: do �dio “visceral”. Voc� diz que os comunistas promoveram os maiores genoc�dios da Hist�ria? � “�dio visceral”. Voc� afirma que eles criaram o Gulag e o Laogai, redes de campos de concentra��o que superaram as mais macabras ambi��es dos nazistas? “�dio visceral”. Voc� se queixa de que eles bloqueiam a divulga��o de seus crimes? “�dio visceral”. Depois de eles repetirem isso umas centenas de vezes, voc� ficar� parecendo mais mau do que aqueles que mataram cem milh�es de seres humanos, prenderam outros tantos e hoje pro�bem voc� de tocar no assunto. Pensando bem, voc� � que � um genocida, um tirano, um monstro. Eles mataram apenas uns quantos milh�es de pessoas, conservando mediante prod�gios de inventividade l�gica uma linda auto-imagem de almas santas e bem-intencionadas. A� vem voc� e, impiedosamente, rasga essa auto-imagem. Voc� � muito malvado, rapaz. Voc� n�o tem amor no cora��o.

O mais curioso � que essa rotula��o venha justamente de adeptos, simpatizantes e colaboradores passivos de uma ideologia que, em fam�lia, jamais escondeu a motiva��o �ltima que a movia. Ainda ressoa nesta p�gina o conselho de G�rki, escritor oficial da revolu��o russa, citado aqui na semana passada, que ensinava aos militantes a repulsa f�sica ao inimigo. Talvez o leitor recorde tamb�m a observa��o de Brecht, de que, se os acusados dos Processos de Moscou eram inocentes, tanto mais mereciam ser fuzilados pelo bem do socialismo. Talvez conhe�a a declara��o de Eldridge Cleaver, de que estuprar mulheres brancas � um m�rito revolucion�rio. E talvez n�o tenha sumido da sua mem�ria a f�rmula de Che Guevara, que aconselhava “o �dio intransigente ao inimigo, �dio que impulsiona al�m das limita��es naturais do ser humano e converte o guerrilheiro numa eficiente e fria m�quina de matar”. Mas, naturalmente, nenhum desses cavalheiros disse ou praticou essas coisas por �dio. Odiento � voc�, que sai contando para todo mundo que eles as disseram e praticaram.

� com base na peculiar l�gica comunista dessa conclus�o que, por exemplo, o F�rum Social Mundial pode ostentar a bandeira da “paz”, entendendo por paz a suspens�o das a��es americanas no Afeganist�o, que mataram umas centenas de pessoas, mas n�o a da ocupa��o chinesa no Tibete, que j� matou mais de um milh�o.

Quando Orwell disse que os comunistas inventaram um novo idioma no qual amor � �dio, paz � guerra, sim � n�o e n�o � sim, ele n�o exagerou em nada.

Duplicidade, diversionismo, camuflagem s�o o cerne mesmo da alma comunista. E quem quer que, discutindo com comunistas ou similares, atenha-se ao conte�do literal de seu discurso, sem perceber que ele se destina apenas a encobrir a l�gica profunda de suas a��es, estar� sendo feito de ot�rio. Diga francamente o caro leitor: se um visitante, imbu�do da manifesta inten��o de seduzir sua esposa, come�a a freq�entar sua casa sob o pretexto de jogar cartas, voc� acha que o melhor que tem a fazer com o intruso � empenhar-se em ganhar o jogo?

Assim procede quem, diante de organiza��es pol�ticas envolvidas at� a goela num movimento revolucion�rio continental associado ao narcotr�fico, discuta com elas programas de governo e rem�dios para os problemas nacionais, ajudando-as a fingir uma atmosfera democr�tica de paz e normalidade.

Para o revolucion�rio, todo discurso p�blico, sobretudo eleitoral, � apenas utens�lio. Utens�lio t�o provis�rio, t�o descart�vel quanto uma tira de papel higi�nico ou uma camisinha. A conquista definitiva do poder, o controle absoluto do Estado, a destrui��o completa das oposi��es — tais s�o, hoje como sempre, os �nicos objetivos daqueles que se dizem esquerdistas de um novo tipo, convertidos � democracia, mas continuam c�mplices do regime de Fidel Castro e usam, como se fossem instrumentos leg�timos do processo democr�tico, as mesmas armas comunistas de sempre: incentivar e legitimar a viol�ncia das massas (denunciando histericamente a rea��o dos agredidos), desmantelar desde dentro e desde cima o aparato militar, policial e judici�rio, manipular e alterar o sentido das leis, controlar os meios de informa��o, o ensino, as fontes de energia e a rede vi�ria, fomentar o banditismo e depois culpar por ele a sociedade capitalista.

Discutir economia e administra��o com esses farsantes � cair num jogo sujo, � desempenhar na pantomima precisamente o papel que eles reservaram para suas futuras v�timas. S� o que cabe � desmascarar, por tr�s de suas alega��es variadas, artificiosas e desnorteantes, a const�ncia e a l�gica implac�vel da sua estrat�gia de conquista.

Pelas mesmas raz�es, � in�til tentar combat�-los com acusa��es de corrup��o banal, id�nticas �quelas com que eles destroem facilmente as reputa��es de seus advers�rios. Primeiro, porque a parcela ideologicamente intoxicada do eleitorado, que constitui o contingente dos seus votantes fixos, n�o se escandaliza com atos desonestos cometidos por seus l�deres, que lhe parecem vir em proveito da revolu��o. Segundo, porque a organiza��o empenhada na luta por um objetivo geral que � mau, desonesto e p�rfido em ess�ncia h� de tratar sempre de ser a mais honesta poss�vel nos detalhes instrumentais da pol�tica di�ria, n�o s� para evitar problemas de percurso mas tamb�m para poder prevalecer-se de uma apar�ncia enganosa de superioridade moral: nada mais r�gido que o moralismo interno das m�fias e dos partidos revolucion�rios. N�o, a perf�dia esquerdista n�o ser� jamais vencida por meio de t�midas mordidas nas beiradas. � preciso feri-la no cora��o, e esse cora��o chama-se: estrat�gia. Ou a desmascaramos, ou nos conformamos em vir a ser governados por um Pol-Pot, um Fidel Castro, um Ceaucescu.