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 Outra história velha 

Olavo de Carvalho
 Jornal da Tarde, 31 de janeiro de 2002 



Outra hist�ria velha

N�o se espantem que, numa semana t�o cheia de novidades, eu insista em contar hist�rias velhas. Nada pesa mais sobre as decis�es do presente do que a vis�o do passado. Por isso os partidos totalit�rios se esfor�am tanto em deform�-la segundo seus prop�sitos. Empenham nisto verbas consider�veis e os esfor�os de seus melhores intelectuais de aluguel: uma falsa imagem do ontem � o mais firme sustent�culo da mentira de hoje.

Talvez o exemplo mais escabroso e mais t�pico de falsifica��o da Hist�ria, nas �ltimas d�cadas, tenha sido o assalto geral � mem�ria dos descobridores e colonizadores das Am�ricas. N�o h�, hoje, quem n�o acredite piamente que foram ladr�es e genocidas cru�is, t�o famintos de ouro quanto sedentos de sangue ind�gena. Filmes, livros did�ticos, reportagens em profus�o - um bombardeio incans�vel e avassalador - fizeram da "leyenda negra" da coloniza��o uma verdade estabelecida. O modelo universalmente aplaudido dessa interpreta��o da Hist�ria continental foi o ensaio do ling�ista Tzvetan Todorov, A Conquista da Am�rica, lan�ado em 1982, que fez de Hern�n Cortez um Adolf Eichmann ib�rico, inspirando ao historiador David Stannard a conclus�o: "O caminho para Auschwitz passa direto pelo cora��o da Am�rica."

Essa cren�a se espalhou e serve, hoje, para legitimar n�o s� pol�ticas indigenistas, indeniza��es e cotas preferenciais, mas tamb�m a oficializa��o do terrorismo intelectual anticrist�o nas principais universidades americanas.

Mas como foi, realmente, a hist�ria de Hern�n Cortez? Ele desembarcou no M�xico em abril de 1519, com 500 soldados. Na cidade de Tenochtitl�n, encontrou a sede do Imp�rio Asteca, prodigiosamente rico e poderoso.

Mas n�o antigo. Os astecas eram n�mades que tinham chegado ali em 1325 (t�o arrivistas, portanto, como os espanh�is). S� no s�culo seguinte ascenderam ao poder imperial, dominando pelo terror as tribos em torno e obrigando-as a fornecer escravos e v�timas sacrificiais para os ritos de sua religi�o vampiresca. O principal desses ritos consistia em imolar v�timas ao deus sol, arrancando-lhes o cora��o e cortando-as em peda�os. S� os sacerdotes manejavam o punhal sagrado, mas a popula��o inteira colaborava na "mise-en-sc�ne", com alegria feroz, literalmente banhando-se de sangue. Nos grandes festivais amuais, o n�mero de imola��es subia a 20, 30 mil. A orgia macabra prolongava-se por 3 meses, antecedida por 6 meses de "esta��o de guerra" durante os quais os astecas percorriam o pa�s para aprisionar as futuras v�timas (durante os restantes 3 meses do ano n�o consta que fizessem mal a ningu�m).

As tribos circunvizinhas viviam aterrorizadas. Sonhavam com a liberta��o.

Ela veio pelas m�os de Cortez, que as unificou para um grande assalto conjunto � fortaleza asteca. Os combates terminaram pelo cerco vitorioso a Tenochtitl�n. Cortez, conforme o h�bito militar europeu, queria a rendi��o, mas seus aliados �ndios decidiram que s� a total liquida��o do advers�rio poderia livr�-los do perigo. "N�o podemos deixar nenhum vivo", disse um deles, "nem os jovens, que se levantar�o em armas de novo, nem os velhos, que os aconselhar�o a isso."

Cortez nem quis nem ordenou a matan�a dos astecas. Ela foi inteiramente obra de �ndios. N�o foi um genoc�dio empreendido pelo invasor contra a popula��o local. Foi a liquida��o de um imp�rio genocida por suas pr�prias v�timas, num paroxismo de vingan�a - vingan�a que pode ter sido excessiva e b�rbara, mas n�o desprovida de motivo. Cortez n�o foi opressor e matador de �ndios:

foi seu libertador. Essa conclus�o foi firmemente estabelecida pela historiadora australiana Inga Clendinnen em seu livro Aztecs: An Interpretation, publicado pela Cambridge University Press, que n�o � obra de mera agita��o jornal�stica como a de Todorov, mas uma pesquisa original em fontes prim�rias, destacando-se como a primeira utiliza��o global e sistem�tica dos depoimentos ind�genas, muitos e detalhados, que se conservam sobre os acontecimentos.

N�o obstante, a cal�nia vociferada por um charlat�o ainda � citada respeitosamente em aulas, semin�rios, livros did�ticos, debates elegantes e jornais, ao passo que a pesquisa cient�fica, por mais louvada que tenha sido nos c�rculos acad�micos, continua ignorada pelo p�blico geral e pela m�dia.