A farsa da farsa
Olavo de Carvalho No famoso �Imposturas intelectuais�, Alan Sokal p�s em teste a erudi��o cient�fica dos mestres da esquerda contempor�nea � Althusser, Foucault, Derrida, Lacan et caterva � e demonstrou que eram todos charlat�es da mais baixa esp�cie. O historiador australiano Keith Windschuttle, em �The killing of History�, prova que em mat�ria de conhecimentos hist�ricos eles n�o se saem nada melhor. Somem-se a isto os impiedosos exames l�gicos empreendidos por Roger Scruton em �Thinkers of the new left� e a descri��o apocal�ptica que em �Tenured radicals� Roger Kimball apresentou da devasta��o mental das universidades americanas submetidas � influ�ncia desses gurus, e sobra no fundo de tudo apenas uma pergunta: como foi poss�vel que durante meio s�culo a intelectualidade esquerdista, a casta letrada mais pretensiosa que j� existiu, a que mais candidamente se arrogou a miss�o de guiar o mundo, se deixasse por sua vez guiar pelos mais est�pidos, perversos, mentirosos e incapazes? A resposta � que estamos diante de um fen�meno coletivo de racionaliza��o neur�tica, com todas as conseq��ncias letais que o esfor�o de fugir da realidade pode ter sobre a intelig�ncia humana. �Neurose � uma mentira esquecida na qual voc� ainda acredita�, dizia meu falecido amigo Juan M�ller, um g�nio da psicologia cl�nica. Quando o vendaval de fatos em torno amea�a remover a mentira de dentro do entulho inconsciente, a alma se agarra a subterf�gios cada vez mais desesperados, mais inconseq�entes e mais tolos para evitar o choque da luz, a revela��o libertadora da culpa longamente negada. A culpa, no caso, n�o poderia ser mais incontorn�vel. Por toda parte onde conquistou o poder, o socialismo provou a ess�ncia mal�fica e genocida dos ideais pretensamente lindos que o inspiravam. Explicar cem milh�es de mortos, o Gulag e o Laogai como efeitos acidentais e epid�rmicos da aplica��o de id�ias que em si permanecem sublimes e generosas � mais do que pode o discurso humano. Moralmente, socialismo e nazismo s�o indiscern�veis. Querem um exemplo? Leiam M�ximo Gorki, o piedos�ssimo Gorki de �A m�e�, que at� hoje arranca l�grimas da milit�ncia pueril e senil. Ele aconselhava a seus companheiros de luta: �O �dio de classe deve ser cultivado por meio da repulsa org�nica ao inimigo, enquanto ser inferior, enquanto degenerado n�o somente no plano moral, mas no f�sico.� O doutor Goebbels n�o o diria com mais brilho. Partindo da�, como n�o concluir com Sartre que Robespierre, aquele frouxo, n�o matou gente o bastante? Ter empenhado toda a for�a dos seus talentos na defesa de semelhante monstruosidade fez de gera��es inteiras de intelectuais de esquerda c�mplices de crimes contra a esp�cie humana, exatamente no sentido em que esses crimes s�o definidos no C�digo Penal da pr�pria p�tria dos Sartres e Bourdieus: �Deporta��o, escraviza��o ou pr�tica sistem�tica e em massa de execu��es sum�rias, de tortura ou outros atos inumanos, inspirados por motivos pol�ticos, raciais ou religiosos, segundo plano concertado contra um grupo de popula��o civil.� O pertinaz embelezamento do genoc�dio � culpa suficiente para alimentar na alma da intelligentzia esquerdista o terror ante a mera possibilidade de um Julgamento de Nuremberg para os crimes do comunismo. Desde 1956, com o Relat�rio Krutchov, esse terror veio crescendo, at� atingir a m�xima intensidade com a queda da URSS e a abertura dos arquivos de Moscou. � medida que ele crescia, enrijeciam-se as defesas neur�ticas, proliferavam os subterf�gios, superavam-se em inventividade os contragolpes ret�ricos e as manobras diversionistas. Tudo o que a casta letrada esquerdista escreveu e disse desde a d�cada de 50 n�o passa de uma sucess�o de encena��es desesperadas para escapar � consci�ncia de suas culpas. Tudo: chantagens morais, intimida��es de testemunhas, afeta��es hist�ricas de horror ao liberalismo, acrobacias l�gicas concebidas para separar de suas conseq��ncias hist�ricas um plat�nico marxismo ideal. In extremis, apelou-se � demoli��o da l�gica, da linguagem e da cultura. Quando j� n�o se pode negar a realidade, resta destruir o pr�prio senso da realidade. N�o sendo poss�vel apagar a luz, furam-se os olhos da plat�ia. Se toda a humanidade aderir � semi�tica, ao desconstrucionismo, � etno-hist�ria, ao relativismo, ao historicismo absoluto etc., ningu�m mais poder� associar com certeza razo�vel as id�ias aos atos, os atos �s conseq��ncias: tudo se tornar� incerto, e ningu�m mais ter� de suportar a medonha consci�ncia de ter feito o que fez. A elite esquerdista ter� livrado sua cara, � custa de mergulhar a Humanidade nas trevas. Os reflexos dessa alucina��o auto-induzida dos intelectos mais covardes e mendazes que j� ocuparam o cen�rio p�blico do Ocidente v�o parar longe � e quanto mais long�nquos, mais grotescos. Nem um perfeito charlat�o pode competir, em rid�culo e mis�ria, com macaqueadores de charlat�es: tal � a diferen�a entre a intelligentzia esquerdista da Europa e a do Terceiro Mundo. A farsa do centro repercute, na periferia, como imita��o de farsa. Farsa da farsa. Se num Althusser ou num Foucault a mentira existencial conservava ao menos a autenticidade da trag�dia interior que ela encobria, j� nem esse farrapo de dignidade resta a seus imitadores tupiniquins. Os efeitos sociais de seu duplo fingimento s�o portentosos: toda a hist�ria cultural e pol�tica do Brasil nos �ltimos quinze anos pode ser descrita como a progressiva perda, pelas classes falantes, do mais elementar discernimento moral, dilu�do na mistura de tagarelice pseudo-intelectual nas universidades e de vocifera��o pseudo-�tica nos palanques. No auge da pantomima, aqueles que ensinaram aos delinq�entes a t�cnica dos seq�estros e os princ�pios da organiza��o paramilitar; que durante quarenta anos adularam a alma criminosa at� instilar nela o orgulho autobeatificante e a ambi��o de poder sem limites; que apregoaram do alto das c�tedras e dos p�lpitos o desprezo a toda moral, a toda lei, a toda autoridade; que assim colocaram a sociedade inteira no banco dos r�us ante um j�ri de assassinos e seq�estradores � esses mesmos, quando o monstro que criaram escapa de seu controle e se volta contra alguns deles, de repente aparecem em p�blico travestidos de paladinos da ordem. Choram por seus companheiros mortos o que nunca choraram por milhares de v�timas de seus pensamentos, transmutados em a��es cruentas pelo f�rtil conv�vio na Ilha Grande. Nos seus rostos, nenhum sinal de arrependimento. Nenhuma d�vida, nenhuma inquieta��o moral. � que para ter problemas de consci�ncia seria preciso ter consci�ncia. Livres desse mal, partem para a ter�a-feira gorda do longo carnaval sangrento envergando sua nova fantasia com a naturalidade de quem tivesse nascido dentro dela. Disto, nem os mais escorregadios charlat�es parisienses seriam capazes. A mentira brasileira tem profundidades que seus pr�prios modelos desconhecem.
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