Em parte alguma
Olavo de Carvalho O espectrograma pol�tico convencional coloca, na esquerda, o comunismo sovi�tico e chin�s; na direita, o nazifascismo; no centro, o socialismo moderado, chamado �fabiano� na Europa e nos EUA por conta da Fabian Society, mas que equivale ao que em terra brasilis � conhecido como �tucano�. Todo o vocabul�rio consagrado, todas as discuss�es acad�micas e parlamentares, todas as pol�micas de botequim d�o por assentado que essa � a distribui��o das id�ias e partidos no mapa ideol�gico do universo. Se h� no fundo de toda a tagarelice ideol�gica um consenso plenamente firmado, um ponto pac�fico, uma zona neutral onde todos concordam, � esse. Basta um breve exame, por�m, para demonstrar que esse esquema � falso, autocontradit�rio e invi�vel. O breve exame � o seguinte: do ponto de vista econ�mico, as duas pontas da escala s�o indiscern�veis do meio. O comunismo baseia-se no controle estatal da economia, o nazifascismo idem, o socialismo democr�tico n�o menos. Se socialismo, segundo definia Karl Marx, � controle estatal dos meios de produ��o, os tr�s regimes que pretendem abarcar o universo das ideologias poss�veis s�o todos socialistas. Que utilidade pode ter, para uma vis�o objetiva dos fatos, uma escala diferenciadora que come�a por tornar indistintos, sob um ponto de vista t�o vital quanto o � a economia, todos os fatos abrangidos? Nessa escala n�o h� lugar, por exemplo, para o anarquismo, nem para o liberalismo cl�ssico de Adam Smith e da Constitui��o Americana. N�o h� lugar para nenhum regime que n�o mantenha a economia sob estrito controle. N�o h� lugar para nada que n�o seja o socialismo. Esse esquema n�o � um crit�rio distintivo nem um instrumento cient�fico para a descri��o dos fatos. � uma pr�tese, uma camisa-de-for�a, um cabresto que impede a mente humana de pensar e a obriga a ir, querendo ou n�o, sabendo ou n�o, na dire��o do socialismo. Ele excluir da esfera do pens�vel as id�ias que escapem do quadro de refer�ncias socialista e faz com que, qualquer que seja o ponto de vista adotado, a marcha para o socialismo apare�a sempre como a chave universalmente explicativa no fundo de toda sucess�o hist�rica. � evidentemente uma fraude, e n�o espanta que tenha se disseminado gra�as sobretudo � propaganda sovi�tica. Quem come�ou com isso foi, precisamente, St�lin. Quem mais poderia ser? Quase todos os clich�s da ret�rica esquerdista, inclusive os de apar�ncia mais moderninha, remontam a St�lin e � KGB. A KGB foi o maior think tank esquerdista que j� existiu. Tinha na sua folha de pagamentos mais intelectuais do que qualquer institui��o cultural deste mundo. Ainda que tenha prendido e matado dezenas de milh�es de pessoas, sua principal ocupa��o n�o era prender nem matar: era estabelecer padr�es de linguagem, moldar o discurso da propaganda esquerdista. Mas a propaganda era ali compreendida de maneira ampla: abrangia todas as esferas da comunica��o humana. Modas culturais e art�sticas, estilos de pensamento, prest�gios e desprest�gios liter�rios, teatrais e cinematogr�ficos, c�nones de veracidade e falsidade cient�fica -- tudo ali se fabricava, disseminando-se com a rapidez do raio gra�as a uma rede de milh�es de d�ceis agentes, militantes, colaboradores comprados e simpatizantes que, espalhados por todos os quadrantes da Terra, injetavam nos mercados de seus respectivos pa�ses esses produtos sem r�tulo de origem, que o p�blico engolia facilmente como cria��es espont�neas da inventividade local e da feliz coincid�ncia. A hist�ria cultural do s�culo XX seria impens�vel sem a KGB. Quase metade do que se pensou, se argumentou, se publicou e se encenou na Europa e nos EUA, dos anos 30 a 80, veio de l�. Uma hist�ria de conjunto dessa influ�ncia avassaladora ainda n�o se escreveu. Mas os estudos monogr�ficos s�o t�o abundantes e conclusivos, que ningu�m que pretenda opinar sobre a cultura desse per�odo tem o direito de ignorar o papel central do maior organismo produtor, disseminador e controlador de id�ias que j� existiu neste mundo. Seria como escrever a hist�ria da Europa medieval sem levar em conta o Papado. Somente a conjun��o da mentira astuta com a ignor�ncia sonsa pode explicar a aus�ncia dessa realidade brutal e avassaladora na concep��o que as classes falantes fazem da hist�ria mental dos tempos modernos. Mas, quando um estudioso toma consci�ncia dessa realidade, ele j� n�o pode deixar de captar, em tantos discursos esquerdistas que se imaginam novos e originais, o eco passivo de instru��es emanadas da KGB cinco ou seis d�cadas atr�s. Quem quer que fa�a esse estudo se surpreender� de ver o papel decisivo que a inconsci�ncia, o automatismo e a macaquice desempenham na vida mental das classes que se cr�em intelectualmente ativas. Pois assim � tamb�m com o esquema acima mencionado. At� os anos 40, era comum os intelectuais de maior prest�gio situarem o nazifascismo ao lado do comunismo entre os movimentos subversivos e revolucion�rios votados � destrui��o de tudo o que os conservadores amavam. Esses dois movimentos -- um surgido de dentro do outro -- podiam dar-se agulhadas de vez em quando, mas nada se comparava, em virul�ncia, ao ataque conjunto que moviam contra a velha democracia liberal. Tanto que, quando, ap�s anos de colabora��o secreta, Hitler e St�lin assumiram publicamente sua cumplicidade, ningu�m se surpreendeu muito, fora dos c�rculos comunistas iludidos pelo antifascismo de fachada ostentado por St�lin. Foi a agress�o nazista � URSS que mudou tudo. Agress�o t�o inesperada, que St�lin, diante do fato consumado, se recusou a acreditar no que via e custou a desistir da esperan�a de restabelecer a alian�a com Hitler. O ingresso da URSS na guerra fez com que, de improviso, por puro oportunismo, os pa�ses ocidentais subscrevessem retroativamente a doutrina stalinista que situava o nazifascismo na �direita� e fazia dele uma ant�tese e j� n�o o irm�o siam�s do comunismo. A completa falsidade do esquema, varrida por um tempo para baixo do tapete, veio de novo � tona com a r�pida dissolu��o da parceria entre as pot�ncias ocidentais e a URSS ap�s 1945 e a instaura��o da �guerra fria�. Mas, para a propaganda sovi�tica, o esquema ganhou uma nova utilidade: qualificar de nazifascistas seus antigos aliados de luta contra o nazifascismo. E assim foi decretado por Stalin. A fidelidade canina de uns e o mimetismo simiesco de outros fizeram o resto. Passado meio s�culo, o estere�tipo imbecil ainda exerce seu dom�nio implac�vel sobre a mente da �intelligentzia�. Onde quer que ela se meta a falar, l� vem de novo a bobajada: comunismo na esquerda, nazifascismo na direita, fabianos e tucanos no meio. E n�s, o povo, em parte alguma.
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