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Não digam que os ajudei

Olavo de Carvalho
O Globo, 11 de janeiro de 2003

 

Cultura é tudo o que o homem não recebe pronto da natureza. É, portanto, tudo aquilo que pode ser feito ou não ser feito e, uma vez decidido que deve ser feito, pode ser feito de uma infinidade de maneiras, das quais dá testemunho a variedade das culturas. No meio de toda essa diversidade, só há uma constante: tudo o que foi feito, em qualquer cultura que seja, foi feito porque pareceu melhor que outra coisa. Ninguém jamais pintou um pote, pronunciou um discurso, ergueu uma cabana, instituiu uma lei, tentou curar uma doença ou concebeu uma hipótese científica pensando que se o fizesse de outra forma estaria melhor. Se assim pensasse, teria feito de outra forma.

A busca do melhor pode ser bem ou mal sucedida. O sujeito que acha que fez o melhor dos melhores pode naquele mesmo momento estar sendo passado para trás por alguém que encontrou uma solução mais engenhosa, uma forma mais bela, uma cura mais eficaz, uma explicação mais inteligente. O que é certo é o seguinte: se soubesse fazer melhor, faria.

Mas, se a capacidade de fazer o melhor é limitada às possibilidades de cada instante, o impulso de desejá-lo é ilimitado. Na escala do tempo histórico, isso resulta na possibilidade do “progresso”. Mas o progresso é restrito, porque as conquistas de uma geração não se transmitem perfeitamente às seguintes e porque há interrupções e quedas pelo caminho. Na escala da vida interior, no entanto, a ânsia do melhor pode subir indefinidamente. O pequeno ser humano começa pensando no melhor jeito de descer do bercinho sem se esborrachar, e culmina na concepção do ilimitadamente bom, do superlativamente melhor, aquele que, quando você pensa dele algo de bom, sempre mostra que é melhor do que você pensou. É o Supremo Bem de que falava Platão. Em torno dele gira, em direção a ele se move tudo o que o homem pensa e faz no domínio da “cultura”. Cultura é a caminhada da espécie humana desde o aprendizado dos primeiros passos até o topo do Monte Sinai.

A capacidade de orientar-se pelo Supremo Bem foi denominada, pelo maior dos nossos filósofos, Mário Ferreira dos Santos, “tímese parabólica”. Tímese vem do grego thymos, que quer dizer sopro, alma, vontade, vida, desejo, coração, valor. “Parabólica” porque, como a flecha disparada pelo arqueiro, descreve uma curva no céu rumo ao infinito e tomba, atingindo um alvo mais baixo. É a tímese parabólica, e não simplesmente “a razão”, que torna o homem superior aos animais. A razão não é senão a via de unificação dos conhecimentos, pela qual a mente, movida pela tímese, sobe da confusão do imediato à aspiração do Supremo Bem. Sem este, a razão perde o eixo, fragmenta-se em blocos errantes no mar do absurdo. Medido pela razão, o homem só se distingue do orangotango quantitativamente. É a aspiração do melhor que o torna melhor.

Todas as culturas compreenderam isso e o expressaram de algum modo. Todas amaram, buscaram e serviram ao Supremo Bem, vendo nisso a finalidade da existência. Todas, menos duas: a nazista e a socialista. Estas impuseram severos limites à concepção humana do bem, circunscrito, no primeiro caso, ao estabelecimento de uma certa hierarquia entre as raças, no segundo à instalação de um certo regime de distribuição das riquezas. Concentradas nesses objetivos, condenaram todas as aspirações mais altas como alienação, desvio, perversão, mitologia judaica, propaganda burguesa e crime contra o Estado. Antonio Gramsci, fundador do Partido Comunista Italiano, sonhava em colocar uma placa de chumbo entre as almas e a ânsia do Supremo Bem, aprisionando a humanidade numa “mundanização e terrestrialização absolutas do pensamento”. Vendo que as pessoas recusariam a proposta se apresentada assim sem mais nem menos, inventou ardis para esvaziar pouco a pouco os representações simbólicas do Supremo Bem, de modo que no fim ninguém fosse capaz de conceber um bem mais alto do que a vitória do Partido, o advento do socialismo, deus terrestre. A um dos instrumentos ideológicos criados para isso foi dado o nome de “teologia da libertação”. É monstruoso, mas é fato.

É fato também que as sociedades fora do campo nazista e socialista não ficaram imunes ao atrativo macabro da proposta. Não há uma só delas em que a militância do absurdo não esteja em luta mortal contra a aspiração do Supremo Bem herdada do legado grego, judaico e cristão, contra o qual não hesita em lançar, após tê-los deformado, prostituído e esvaziado de todo sentido espiritual, os símbolos e tradições de outras culturas. É o que hoje se chama, com notável cinismo, “diversidade cultural”.

Eis por que é inútil, no Brasil de hoje, discutir os rumos da cultura nacional. Cultura nova, frágil, superficial, mais voltada ao lúdico e ao ornamental do que à “única coisa necessária”, não houve outra que cedesse mais docilmente à oferta gramsciana do suicídio espiritual em troca de um “céu na Terra”, modelo Frei Betto.

Ao fim de algumas décadas dessa dieta, o que hoje se chama “debate cultural” neste país reduz-se à disputa de verbas e de poder político. Pergunta-se, por exemplo, se quem deve orientar a cultura é o Estado ou a iniciativa privada. É o mesmo que perguntar: queremos uma cultura de cabos eleitorais ou de agentes de publicidade? Não faz diferença, é claro: os sujeitos que mandam na burocracia cultural do Estado são os mesmos que mamam no bico da iniciativa privada. A única dúvida que os atormenta é saber por onde despejarão mais facilmente em nossas almas o veneno que corrói as suas. Quando a conversa desceu a esse ponto, quem tem alguma idéia do que seja cultura deve calar-se. Ninguém conhece melhor os meios de ir ao diabo do que aqueles que vieram dele. Pois então, que vão. Mas não depois digam que os ajudei.