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Militares e a Mem�ria Nacional

Olavo de Carvalho
Ternuma, 31 de dezembro de 2000

 

 

Como todos os meninos da escola na minha �poca, eu n�o podia cantar o Hino Nacional ou prestar um juramento � bandeira sem sentir que estava participando de uma pantomima. A gente ria �s escondidas, fazia piadas, compunha par�dias escabrosas.

Os s�mbolos do patriotismo, para n�s, eram o supra-sumo da babaquice, s� igualado, de longe, pelos ritos da Igreja Cat�lica, tamb�m abundantemente ridicularizados e parodiados entre a molecada, n�o raro com a cumplicidade dos pais. Os professores nos repreendiam em p�blico, mas, em segredo, participavam da goza��o geral.

Cresci, entrei no jornalismo e no Partido Comunista, freq�entei rodas de intelectuais.

Fui parar longe da atmosfera da minha inf�ncia, mas, nesse ponto, o ambiente n�o mudou em nada: o desprezo, a chacota dos s�mbolos nacionais eram id�nticos entre a gente letrada e a turminha do bairro.

Na verdade, eram at� piores, porque vinham refor�ados pelo prest�gio de atitudes cultas e esclarecidas. Graciliano Ramos, o grande Graciliano Ramos, gl�ria do Partid�o, n�o escrevera que o Hino era "uma estupidez"?

Mais tarde, quando conheci os EUA, levei um choque. Tudo aquilo que para n�s era uma palha�ada hip�crita os americanos levavam infinitamente a s�rio.

Eles eram sinceramente patriotas, tinham um aut�ntico sentimento de pertin�ncia, de uma raiz hist�rica que se prolongava nos frutos do presente, e viam os s�mbolos nacionais n�o como um convencionalismo oficial, mas como uma express�o materializada desse sentimento.

E n�o imaginem que isso tivesse algo a ver com riqueza e bem-estar social. Mesmo pobres e discriminados se sentiam profundamente americanos, orgulhosamente americanos, e, em vez de ter raiva da p�tria porque ela os tratava mal, consideravam que os seus problemas eram causados apenas por maus pol�ticos que tra�am os ideais americanos.

Correspondi-me durante anos com uma mo�a negra de Birmingham, Alabama. Ali n�o era bem o lugar para uma mo�a negra se sentir muito � vontade, n�o � mesmo?

Mas se voc�s vissem com que afei��o, com que entusiasmo ela falava do seu pa�s! E n�o s� do seu pa�s: tamb�m da sua igreja, da sua B�blia, do seu Jesus. Em nenhum momento a lembran�a do racismo parecia macular em nada a imagem que ela tinha da sua p�tria.

A Am�rica n�o tinha culpa de nada. A Am�rica era grande, bela, generosa. A maldade de uns quantos n�o podia afetar isso em nada. Ouvi-la falar de matava de vergonha.

Se algu�m no Brasil dissesse essas coisas, seria exposto imediatamente ao rid�culo, expelido do ambiente como um idiota-mor ou condenado como reacion�rio um integralista, um fascista.

S� dois grupos, neste pa�s, falavam do Brasil no tom afetuoso e confiante com que os americanos falavam da Am�rica.

O primeiro era os imigrantes: russos, h�ngaros, poloneses, judeus, alem�es, romenos. Tinham escapado ao terror e � mis�ria de uma das grandes tiranias do s�culo (alguns, das duas), e proclamavam, sem sombra de fingimento: "Este � um pa�s aben�oado!" Ouvindo-nos falar mal da nossa terra, protestavam: "Voc�s s�o doidos.

N�o sabem o que t�m nas m�os".Eles tinham visto coisas que n�s n�o imagin�vamos, mediam a vida humana numa outra escala, para n�s aparentemente inacess�vel. Fal�vamos de mis�ria, eles respondiam: "Voc�s n�o sabem o que � mis�ria".Fal�vamos de ditadura, eles riam: "Voc�s n�o sabem o que � ditadura".

No come�o isso me ofendia. "Eles acham que sabem tudo", dizia com meus bot�es. Foi preciso que eu estudasse muito, vivesse muito, viajasse muito, para entender que tinha raz�o, mais raz�o do que ent�o eu poderia imaginar.

A partir do momento em que entendi isso, tornei-me t�o esquisito, para meus conterr�neos como um estoniano ou h�ngaro, com sua fala embrulhada e seu inexplic�vel entusiasmo pelo Brasil, eram ent�o esquisitos para mim.

Digo, por exemplo, que um pa�s onde um mendigo pode comer diariamente um franco assado por dois d�lares � um pa�s aben�oado, e as pessoas querem me bater.

N�o imaginam o que possa ter sido sonhar com um frango na R�ssia, na Alemanha, na Pol�nia, e alimentar-se de frangos on�ricos.

Elas acreditam que em Cuba os frangos d�o em �rvores e s�o propriedade p�blica. Aqueles velhos imigrantes tinham raz�o: o brasileiro est� fora do mundo, tem uma medida errada da realidade.

O outro grupo onde encontrei um patriotismo aut�ntico foi aquele que, sem conhece-lo, sem saber nada sobre ele exceto o que ouvia de seus inimigos, mais temi e abominei durante duas d�cadas: os militares.

Ca� no meio deles por mero acaso, por ocasi�o de um servi�o editorial que prestava para a Odebrecht que me p�s temporariamente de editor de texto de um volumoso tratado O Ex�rcito na Hist�ria do Brasil.

A primeira coisa que me impressionou entre os militares foi sua preocupa��o sincera, quase obsessiva, com os destinos do Brasil.

Eles discutiam os problemas brasileiros como quem tivesse em m�os a responsabilidade pessoal de resolv�-los. Quem os ouvisse sem saber que eram militares teriam a impress�o de estar diante de candidatos em plena campanha eleitoral, lutando por seus programas de governo e esperando subir nas pesquisas junto com a aprova��o p�blica de suas propostas.

Quando me ocorreu que nenhum daqueles homens tinha outra expectativa ou possibilidade de ascens�o social sen�o as promo��es que automaticamente lhes viriam no quadro de carreira, no cume das quais nada mais os esperava sen�o a metade de um sal�rio de jornalista m�dio percebi que seu interesse pelas quest�es nacionais era totalmente independente da busca de qualquer vantagem pessoal.

Eles simplesmente eram patriotas, tinham o amor ao territ�rio, ao passado hist�rico, � identidade cultural, ao patrim�nio do pa�s, e consideravam que era do seu dever lutar por essas coisas, mesmo seguros de que nada ganhariam com isso sen�o antipatias e goza��es.

Do mesmo modo, viam os s�mbolos nacionais - o hino, a bandeira, as armas da Rep�blica - como condensa��es materiais dos valores que defendiam e do sentido de vida que tinham escolhido. Eles eram, enfim, "americanos" na sua maneira de amar a p�tria sem inibi��es.

Procurando explicar as raz�es desse fen�meno, o pr�prio texto no qual vinha trabalhando me forneceu uma pista.

O Brasil nascera como entendida hist�rica na Batalha dos Guararapes, expandira-se e consolidara sua unidade territorial ao sabor de campanhas militares e alcan�ara pela primeira vez, um sentimento de unidade autoconsciente por ocasi�o da Guerra do Paraguai, uma onda de entusiasmo patri�tico hoje dificilmente imagin�vel.

Ora, que � o amor � p�tria, quando aut�ntico e n�o convencional, sen�o a recorda��o de uma epop�ia vivida em comum?

Na sociedade civil, a mem�ria dos feitos hist�ricos perdera-se, dissolvida sob o impacto de revolu��es e golpes de Estado, das moderniza��es desaculturantes, das modas avassaladoras, da imigra��o, das revolu��es psicol�gicas introduzidas pela m�dia.

S� os militares, por for�a da continuidade imut�vel das suas institui��es e do seu modo de exist�ncia, haviam conservado a mem�ria viva da constru��o nacional.

O que para os outros eram datas e nomes em livros did�ticos de uma chatice sem par, para eles era a sua pr�pria hist�ria, a heran�a de lutas, sofrimentos e vit�rias compartilhadas, o terreno de onde brotava o sentido de suas vidas.

O sentimento de "Brasil", que para os outros era uma excita��o epid�rmica somente renovada por ocasi�o do carnaval ou de jogos de futebol (e j� houve at� quem pretendesse construir sobre essa base l�dica um grotesco simulacro de identidade nacional), era para eles o alimento di�rio, a consci�ncia permanentemente renovada dos elos entre passado, presente e futuro.

S� os militares eram patriotas porque s� os militares tinham consci�ncia da hist�ria da p�tria como sua hist�ria pessoal.

Da� tamb�m outra diferen�a. A sociedade civil, desconjuntada e atomizada, � anormalmente vulner�vel a muta��es psicol�gicas que induzidas do Exterior ou for�adas por grupos de ambiciosos intelectuais ativistas apagam do dia para a noite a mem�ria dos acontecimentos hist�ricos e falseiam por completo a sua imagem do passado.

De uma gera��o para outra, os registros desaparecem, o rosto dos personagens � alterado, o sentido todo do conjunto se perde para ser substitu�do, do dia para a noite, pela fantasia inventada que se adapte melhor aos novos padr�es de verossimilhan�a impostos pela repeti��o de slogans e frases-feitas.

Toda a diferen�a entre o que se l� hoje na m�dia sobre o regime militar e os fatos revelados no site de Ternuma vem disso. At� o come�o da d�cada de 80, nenhum brasileiro, por mais esquerdista que fosse, ignorava que havia uma revolu��o comunista em curso, que essa revolu��o sempre tivera respaldo estrat�gico e financeiro de Cuba e da URSS, que ele havia atravessado maus bocados em 1964 e tentara se rearticular mediante as guerrilhas, sendo novamente derrotada.

Mesmo o mais hip�crita dos comunistas, discursando em favor da "democracia", sabia perfeitamente a nuance discretamente subentendida nessa palavra, isto �, sabia que n�o lutava por democracia nenhuma, mas pelo comunismo cubano e sovi�tico, segundo as diretrizes da Confer�ncia Tricontinental de Havana.

Passada uma gera��o tudo isso se apagou. A juventude, hoje, acredita piamente que n�o havia revolu��o comunista nenhuma, que o governo Jo�o Goulart era apenas um governo normal eleito constitucionalmente, que os terroristas da d�cada de 70 eram patriotas brasileiros lutando pela liberdade e pela democracia.

No Brasil, a multid�o n�o tem mem�ria pr�pria. Sua vida � muito descont�nua, cortada por s�bitas muta��es modernizadoras, n�o compensadas por nenhum daqueles fatores de continuidade que preservava a identidade hist�rica do meio militar.

N�o h� cultura dom�stica, tradi��es nacionais, s�mbolos de continuidade familiar. A mem�ria coletiva est� inteiramente a merc� de duas for�as estranhas: a m�dia e o sistema nacional de ensino.

Quem dominar esses dois canais mudar� o passado, falsear� o presente e colocar� o povo no rumo de um futuro fict�cio.

Por isso o site de Ternuma � algo mais que a reconstitui��o de detalhes omitidos pela m�dia.

� uma contribui��o preciosa � reconquista da verdadeira perspectiva hist�rica de conjunto, roubada da mem�ria brasileira por manipuladores maquiav�licos, oportunistas levianos e tagarelas sem consci�ncia.

Perguntam-me se essa contribui��o vem dos militares? Bem, de quem mais poderia vir?


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