RORTY E OS ANIMAIS
"A filosofia teve origem na tentativa de escapar para um mundo em que nada mudasse. Plat�o, fundador dessa �rea da cultura a que hoje chamamos filosofia, supunha que a diferen�a entre o passado e o futuro seria m�nima." Assim principia o artigo de p�gina inteira que o Sr. Richard Rorty publicou na Folha de S. Paulo no �ltimo dia 3 de mar�o. Quando comecei a trabalhar no jornalismo, trinta anos atr�s, um par�grafo desse teor seria impiedosamente riscado pelo copy desk, que ainda deixaria ao autor da p�rola um bilhetinho malcriado, mais ou menos nos seguintes termos: "Mas como, � espertinho, como poderia Plat�o desejar t�o ansiosamente fugir para um mundo de estabilidade sem mudan�a, se neste mesmo mundo ele j� n�o via grande diferen�a entre passado e futuro?" Hoje em dia a bobagem flagrante � publicada como alta manifesta��o do pensamento filos�fico e n�o aparece um copy para dizer que ela n�o � aceit�vel nem mesmo como tentativa de jornalismo. Mas, al�m de inaugurar seu artigo com um ostensivo contra-senso, o Sr. Rorty ainda pretende fazer dele o fundamento para conclus�es que atentam contra as verdades hist�ricas mais elementares. Pois, prossegue ele: "Foi s� quando come�aram a levar a hist�ria e o tempo a s�rio que os fil�sofos colocaram suas esperan�as quanto ao futuro deste mundo no lugar antes ocupado por seu desejo de conhecer um outro mundo. A tentativa de levar o tempo a s�rio come�ou com Hegel." Para come�ar, � manifesto que Plat�o, como todos os gregos, via sim muita diferen�a entre passado e futuro: se o fato mesmo da mudan�a n�o lhe parecesse digno de aten��o, ele n�o faria esfor�o nenhum para tentar descobrir um padr�o imut�vel por tr�s da transitoriedade das coisas. Em segundo lugar, a preocupa��o com "o futuro deste mundo" foi uma das t�nicas do projeto plat�nico, obra de reformador social e pol�tico antes que de puro contemplador te�rico. Em terceiro, datar de Hegel o in�cio da preocupa��o com a Hist�ria e o tempo � saltar sobre dois mil�nios de cristianismo, uma religi�o que se diferenciou da cosmovis�o grega justamente por sua �nfase no car�ter temporal e hist�rico da vida humana coisa que j� est� bem clara em Sto. Agostinho. Quarto. Por que supor uma contradi��o entre a preocupa��o com a Hist�ria e o desejo de eternidade, quando justamente � a uni�o indissol�vel desses dois temas a inspira��o b�sica do pr�prio Hegel? Quinto. Quando o Sr. Rorty interpreta o desejo de eternidade como uma "escapada" ou "fuga", ele est� fazendo mero jogo de palavras, ali�s facilmente revers�vel: o impulso de revolucionar o mundo, de acelerar a mudan�a hist�rica tamb�m pode, com igual verossimilhan�a, ser interpretado como uma h�brys, uma agita��o alienante, uma v�lvula de escape ante as realidades permanentes e inelut�veis, como a morte, a fragilidade f�sica, a ignor�ncia de nosso destino �ltimo, etc. Essas interpreta��es pejorativas s� t�m valor ret�rico, se tanto. D�-las como pressupostas e inquestion�veis n�o � nada honesto. Baseado em todos esses pressupostos, o Sr. Rorty encerra a abertura do seu artigo com a declara��o de que a influ�ncia conjunta de Hegel e Darwin distanciou a filosofia da quest�o O que somos? e levou-a para O que poder�amos vir a ser?. Essa pomposa generaliza��o hist�rica omite para o leitor a informa��o de que para Hegel essas duas quest�es eram rigorosamente a mesma (Wesen ist was gewesen ist) e de que nisto o fil�sofo de Jena, longe de se afastar do pensamento grego, dava apenas desenvolvimento l�gico � doutrina aristot�lica da entel�quia, segundo a qual a ess�ncia n�o � a forma est�tica de um ser num dado momento do tempo, mas a meta subentendida no seu desenvolvimento. Omite, mais ainda, a informa��o de que Darwin, por seu lado, nunca deu um pio a respeito nem de O que somos nem de O que podemos vir a ser, mas s� se interessou por O que fomos; e confunde portanto a teoria da evolu��o com a ideologia evolucionista que � obra de Spencer e n�o de Darwin. Num �nico par�grafo, s�o tantos os subentendidos absurdos, que talvez seja a pr�pria for�a compressiva da falsidade rapidamente injetada em seu c�rebro que deixe o leitor zonzo, incapaz de perceber que est� diante de um charlat�o barato, travestido em fil�sofo por obra de puro marketing. Mas n�o creio que o Sr. Rorty escreva assim por mera in�pcia. Ele sabe que mente e o segredo do fasc�nio que ele exerce sobre hordas de jovens pedantes consiste precisamente em que, descrendo de toda verdade, eles invejam o poder de mentir bem. H� muita gente que sonha em ser Richard Rorty quando crescer. Mas querem saber mesmo quem � esse sujeito? Querem ter uma id�ia de quanto � rid�culo honr�-lo como fil�sofo? Pois ent�o, indo um pouco al�m do que ele disse na Folha, acompanhem este breve exame das suas concep��es mais gerais. "A linguagem n�o � uma imagem do real", assegura o Sr. Rorty, fil�sofo pragmatista e antiplat�nico. Devemos interpretar essa frase no sentido que o Sr. Rorty chama "plat�nico", isto �, como nega��o de um atributo a uma subst�ncia? Seria contradit�rio: uma linguagem que n�o � imagem do real n�o pode nos dar uma imagem real das suas rela��es com o real. Logo, a senten�a deve ser interpretada no sentido pragmatista: nada afirma sobre o que � a linguagem, mas indica apenas a inten��o de us�-la de um determinado modo. A tese central do pensamento do Sr. Rorty � uma declara��o de inten��es. "A linguagem n�o � uma imagem do real" significa rigorosamente isto e mais nada: "Eu, Richard Rorty, estou firmemente decidido a n�o usar a linguagem como uma imagem do real". � uma tese "irrefut�vel": n�o se pode impugnar logicamente uma express�o da vontade. N�o h�, pois, nada a debater: dentro dos limites da dec�ncia e do C�digo Penal, o Sr. Rorty tem o direito de usar a linguagem como bem entenda. O problema aparece quando ele come�a a querer nos induzir a usar a linguagem exatamente como ele. Afirma ele que a linguagem n�o � uma representa��o da realidade, e sim um conjunto de ferramentas inventadas pelo homem para realizar seus desejos. Mas � uma falsa alternativa. Um homem pode muito bem desejar utilizar essa ferramenta para representar a realidade. Parece que Plat�o desejava exatamente isso. Mas o Sr. Rorty nega que os homens tenham outros desejos sen�o o de buscar o prazer e fugir da dor. Que alguns declarem desejar algo mais deve ser muito doloroso para ele, pois, caso contr�rio, n�o haveria nenhuma explica��o pragmatisticamente v�lida para o empenho que ele coloca em mudar a clave da conversa. Diante da impossibilidade de negar que essas pessoas existam, o pragmatista dir� talvez que aqueles que buscam representar a realidade s�o movidos pelo desejo de fugir da dor tanto quanto os que preferem inventar fantasias; mas esta obje��o s� ter� mostrado, precisamente, que n�o se trata de coisas que se excluam uma � outra. A alternativa rortyana � falsa nos seus pr�prios termos. Diante dessa dolorosa constata��o, o Sr. Rorty alega que sua filosofia consiste em propor um vocabul�rio novo, no qual ser�o abolidas as distin��es entre absoluto e relativo, apar�ncia e realidade, natural e artificial, verdadeiro e falso. Ele reconhece que n�o tem nenhum argumento a oferecer em defesa da sua proposta, de vez que ela, "n�o podendo ser expressa na terminologia plat�nica", est� acima, ou abaixo, da possibilidade de ser provada ou refutada. "Por isto, conclui ele em nome de todos os pragmatistas, nossos esfor�os de persuas�o assumem a forma de uma inculca��o gradual de novos modos de falar". O Sr. Rorty, portanto, n�o pretende convencer-nos da veracidade de suas teses: pretende apenas "inculcar-nos gradualmente" seu modo de falar, uma vez adotado o qual iremos gradualmente nos esquecendo de perguntar se o que se fala � verdadeiro ou falso. Mas inculcar gradualmente nos outros um h�bito ling��stico, colocando-o ao mesmo tempo fora do alcance de toda arbitragem racional, � pura manipula��o psicol�gica. Sa�mos, portanto, do terreno da discuss�o filos�fica que o rortyanismo recusa como "plat�nico" para entrar no da sutil imposi��o de vontades mediante a repeti��o de slogans e a mudan�a de vocabul�rio. � o que George Orwell denominou Newspeak, a Novil�ngua de 1984. Essa � talvez a raz�o profunda e secreta pela qual, ap�s ter declarado que os homens nada mais s�o do que bichos em busca do prazer, e de ter reduzido a linguagem a um instrumento para os bichos mais fortes dominarem os mais fracos, o Sr. Rorty ainda pode proclamar que "n�s, os pragmatistas, n�o nos comportamos como animais", quando seu discurso parecia indicar precisamente o contr�rio. � que eles s�o, na verdade, amestradores de animais. Um domador de cavalos n�o argumenta com os cavalos: usa apenas da influ�ncia psicol�gica para lhes "inculcar gradualmente" os h�bitos desejados. Como todos os amestradores, os pragmatistas s�o movidos por inten��es piedosas: "O que nos importa � inventar meios de diminuir o sofrimento humano." � com esta nobre finalidade que o Sr. Rorty prop�e a aboli��o das oposi��es entre o verdadeiro e o falso, o real e o aparente, o absoluto e o relativo, etc., que tanto v�m fazendo sofrer os estudantes de filosofia, e sugere a ado��o universal da Novil�ngua. Uma vez aprovada esta medida, os debates filos�ficos j� n�o ser�o, como antigamente, um desconfort�vel entrechoque de argumentos e provas, mas um esfor�o para tornar cada vez mais prazerosa e indolor a inculca��o gradual de novos h�bitos na mente da plat�ia. As novas teorias j� n�o chamar�o em seu socorro as pesadas armas da l�gica, mas os delicados instrumentos do marketing, com distribui��o de brindes aos novos adeptos e sorridentes coelhinhas da Playboy nas capas das teses acad�micas. Mas a contribui��o decisiva do Sr. Rorty ao al�vio do sofrimento humano � o combate que ele move contra a id�ia de que a vida possa ter um sentido. � compreens�vel que, num universo que fa�a sentido, o Sr. Rorty deva se sentir muito mal um estranho no ninho, exatamente como se sentiria um n�o-pragmatista num mundo desprovido de sentido. Por�m o Sr. Rorty n�o v� o menor proveito em polemizar com os que n�o sentem como ele. A controv�rsia entre a exist�ncia ou inexist�ncia de um sentido imanente no cosmos, diz ele, "� demasiado radical para poder ser julgada a partir de algum ponto de vista neutro". N�o h� meio de argumentar: tudo o que um homem pode fazer � expressar o seu desejo. Portanto, novamente, a tese do Sr. Rorty � uma declara��o de inten��es: ele, Richard Rorty, far� tudo o que estiver ao seu alcance para que a vida n�o tenha o menor sentido. Ele faz isto ali�s com extrema dedica��o e compet�ncia. H� quem ache que a falta de sentido � que torna os seres humanos infelizes1, mas o Sr. Rorty n�o est� nem a�. Ele defende o pluralismo democr�tico, a livre express�o de todos os pontos de vista. Apenas, o confronto dos pontos de vista, n�o podendo ser arbitrado por nenhum meio intelectualmente v�lido, se torna apenas uma concorr�ncia entre desejos, cujo desenlace ser� determinado pela pura habilidade manipulat�ria do partido vencedor.
Quem conhece o Sr. Rorty pessoalmente garante que ele � um primor de
simpatia. Acredito. Mas duvido que abane o rabo. Afinal, n�o � ele o
animal da hist�ria2. NOTAS
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