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RORTY E OS ANIMAIS
O Imbecil Coletivo, 5a ed., pp. 60-67.

 

"O erro fala com voz dupla, uma das quais proclama o falso e a outra o desmente; e � um contender de sim e n�o, que se chama contradi��o... O erro condena-se, n�o pela boca do juiz, mas ex ore suo." — BENEDETTO CROCE.

 

"A filosofia teve origem na tentativa de escapar para um mundo em que nada mudasse. Plat�o, fundador dessa �rea da cultura a que hoje chamamos ‘filosofia’, supunha que a diferen�a entre o passado e o futuro seria m�nima."

Assim principia o artigo de p�gina inteira que o Sr. Richard Rorty publicou na Folha de S. Paulo no �ltimo dia 3 de mar�o. Quando comecei a trabalhar no jornalismo, trinta anos atr�s, um par�grafo desse teor seria impiedosamente riscado pelo copy desk, que ainda deixaria ao autor da p�rola um bilhetinho malcriado, mais ou menos nos seguintes termos: "Mas como, � espertinho, como poderia Plat�o desejar t�o ansiosamente fugir para um mundo de estabilidade sem mudan�a, se neste mesmo mundo ele j� n�o via grande diferen�a entre passado e futuro?" Hoje em dia a bobagem flagrante � publicada como alta manifesta��o do pensamento filos�fico e n�o aparece um copy para dizer que ela n�o � aceit�vel nem mesmo como tentativa de jornalismo.

Mas, al�m de inaugurar seu artigo com um ostensivo contra-senso, o Sr. Rorty ainda pretende fazer dele o fundamento para conclus�es que atentam contra as verdades hist�ricas mais elementares. Pois, prossegue ele: "Foi s� quando come�aram a levar a hist�ria e o tempo a s�rio que os fil�sofos colocaram suas esperan�as quanto ao futuro deste mundo no lugar antes ocupado por seu desejo de conhecer um outro mundo. A tentativa de levar o tempo a s�rio come�ou com Hegel."

Para come�ar, � manifesto que Plat�o, como todos os gregos, via sim muita diferen�a entre passado e futuro: se o fato mesmo da mudan�a n�o lhe parecesse digno de aten��o, ele n�o faria esfor�o nenhum para tentar descobrir um padr�o imut�vel por tr�s da transitoriedade das coisas. Em segundo lugar, a preocupa��o com "o futuro deste mundo" foi uma das t�nicas do projeto plat�nico, obra de reformador social e pol�tico antes que de puro contemplador te�rico.

Em terceiro, datar de Hegel o in�cio da preocupa��o com a Hist�ria e o tempo � saltar sobre dois mil�nios de cristianismo, uma religi�o que se diferenciou da cosmovis�o grega justamente por sua �nfase no car�ter temporal e hist�rico da vida humana — coisa que j� est� bem clara em Sto. Agostinho.

Quarto. Por que supor uma contradi��o entre a preocupa��o com a Hist�ria e o desejo de eternidade, quando justamente � a uni�o indissol�vel desses dois temas a inspira��o b�sica do pr�prio Hegel?

Quinto. Quando o Sr. Rorty interpreta o desejo de eternidade como uma "escapada" ou "fuga", ele est� fazendo mero jogo de palavras, ali�s facilmente revers�vel: o impulso de revolucionar o mundo, de acelerar a mudan�a hist�rica tamb�m pode, com igual verossimilhan�a, ser interpretado como uma h�brys, uma agita��o alienante, uma v�lvula de escape ante as realidades permanentes e inelut�veis, como a morte, a fragilidade f�sica, a ignor�ncia de nosso destino �ltimo, etc. Essas interpreta��es pejorativas s� t�m valor ret�rico, se tanto. D�-las como pressupostas e inquestion�veis n�o � nada honesto.

Baseado em todos esses pressupostos, o Sr. Rorty encerra a abertura do seu artigo com a declara��o de que a influ�ncia conjunta de Hegel e Darwin distanciou a filosofia da quest�o ‘O que somos?’ e levou-a para ‘O que poder�amos vir a ser?’. Essa pomposa generaliza��o hist�rica omite para o leitor a informa��o de que para Hegel essas duas quest�es eram rigorosamente a mesma (Wesen ist was gewesen ist) e de que nisto o fil�sofo de Jena, longe de se afastar do pensamento grego, dava apenas desenvolvimento l�gico � doutrina aristot�lica da entel�quia, segundo a qual a ess�ncia n�o � a forma est�tica de um ser num dado momento do tempo, mas a meta subentendida no seu desenvolvimento. Omite, mais ainda, a informa��o de que Darwin, por seu lado, nunca deu um pio a respeito nem de ‘O que somos’ nem de ‘O que podemos vir a ser’, mas s� se interessou por ‘O que fomos’; e confunde portanto a teoria da evolu��o com a ideologia evolucionista que � obra de Spencer e n�o de Darwin.

Num �nico par�grafo, s�o tantos os subentendidos absurdos, que talvez seja a pr�pria for�a compressiva da falsidade rapidamente injetada em seu c�rebro que deixe o leitor zonzo, incapaz de perceber que est� diante de um charlat�o barato, travestido em fil�sofo por obra de puro marketing.

Mas n�o creio que o Sr. Rorty escreva assim por mera in�pcia. Ele sabe que mente — e o segredo do fasc�nio que ele exerce sobre hordas de jovens pedantes consiste precisamente em que, descrendo de toda verdade, eles invejam o poder de mentir bem. H� muita gente que sonha em ser Richard Rorty quando crescer.

Mas querem saber mesmo quem � esse sujeito? Querem ter uma id�ia de quanto � rid�culo honr�-lo como fil�sofo? Pois ent�o, indo um pouco al�m do que ele disse na Folha, acompanhem este breve exame das suas concep��es mais gerais.

"A linguagem n�o � uma imagem do real", assegura o Sr. Rorty, fil�sofo pragmatista e antiplat�nico. Devemos interpretar essa frase no sentido que o Sr. Rorty chama "plat�nico", isto �, como nega��o de um atributo a uma subst�ncia? Seria contradit�rio: uma linguagem que n�o � imagem do real n�o pode nos dar uma imagem real das suas rela��es com o real. Logo, a senten�a deve ser interpretada no sentido pragmatista: nada afirma sobre o que � a linguagem, mas indica apenas a inten��o de us�-la de um determinado modo. A tese central do pensamento do Sr. Rorty � uma declara��o de inten��es. "A linguagem n�o � uma imagem do real" significa rigorosamente isto e mais nada: "Eu, Richard Rorty, estou firmemente decidido a n�o usar a linguagem como uma imagem do real". � uma tese "irrefut�vel": n�o se pode impugnar logicamente uma express�o da vontade. N�o h�, pois, nada a debater: dentro dos limites da dec�ncia e do C�digo Penal, o Sr. Rorty tem o direito de usar a linguagem como bem entenda.

O problema aparece quando ele come�a a querer nos induzir a usar a linguagem exatamente como ele. Afirma ele que a linguagem n�o � uma representa��o da realidade, e sim um conjunto de ferramentas inventadas pelo homem para realizar seus desejos. Mas � uma falsa alternativa. Um homem pode muito bem desejar utilizar essa ferramenta para representar a realidade. Parece que Plat�o desejava exatamente isso. Mas o Sr. Rorty nega que os homens tenham outros desejos sen�o o de buscar o prazer e fugir da dor. Que alguns declarem desejar algo mais deve ser muito doloroso para ele, pois, caso contr�rio, n�o haveria nenhuma explica��o pragmatisticamente v�lida para o empenho que ele coloca em mudar a clave da conversa. Diante da impossibilidade de negar que essas pessoas existam, o pragmatista dir� talvez que aqueles que buscam representar a realidade s�o movidos pelo desejo de fugir da dor tanto quanto os que preferem inventar fantasias; mas esta obje��o s� ter� mostrado, precisamente, que n�o se trata de coisas que se excluam uma � outra. A alternativa rortyana � falsa nos seus pr�prios termos.

Diante dessa dolorosa constata��o, o Sr. Rorty alega que sua filosofia consiste em propor um vocabul�rio novo, no qual ser�o abolidas as distin��es entre absoluto e relativo, apar�ncia e realidade, natural e artificial, verdadeiro e falso. Ele reconhece que n�o tem nenhum argumento a oferecer em defesa da sua proposta, de vez que ela, "n�o podendo ser expressa na terminologia plat�nica", est� acima, ou abaixo, da possibilidade de ser provada ou refutada. "Por isto, conclui ele em nome de todos os pragmatistas, nossos esfor�os de persuas�o assumem a forma de uma inculca��o gradual de novos modos de falar". O Sr. Rorty, portanto, n�o pretende convencer-nos da veracidade de suas teses: pretende apenas "inculcar-nos gradualmente" seu modo de falar, uma vez adotado o qual iremos gradualmente nos esquecendo de perguntar se o que se fala � verdadeiro ou falso. Mas inculcar gradualmente nos outros um h�bito ling��stico, colocando-o ao mesmo tempo fora do alcance de toda arbitragem racional, � pura manipula��o psicol�gica. Sa�mos, portanto, do terreno da discuss�o filos�fica — que o rortyanismo recusa como "plat�nico" — para entrar no da sutil imposi��o de vontades mediante a repeti��o de slogans e a mudan�a de vocabul�rio. � o que George Orwell denominou Newspeak, a Novil�ngua de 1984.

Essa � talvez a raz�o profunda e secreta pela qual, ap�s ter declarado que os homens nada mais s�o do que bichos em busca do prazer, e de ter reduzido a linguagem a um instrumento para os bichos mais fortes dominarem os mais fracos, o Sr. Rorty ainda pode proclamar que "n�s, os pragmatistas, n�o nos comportamos como animais", quando seu discurso parecia indicar precisamente o contr�rio. � que eles s�o, na verdade, amestradores de animais. Um domador de cavalos n�o argumenta com os cavalos: usa apenas da influ�ncia psicol�gica para lhes "inculcar gradualmente" os h�bitos desejados.

Como todos os amestradores, os pragmatistas s�o movidos por inten��es piedosas: "O que nos importa � inventar meios de diminuir o sofrimento humano." � com esta nobre finalidade que o Sr. Rorty prop�e a aboli��o das oposi��es entre o verdadeiro e o falso, o real e o aparente, o absoluto e o relativo, etc., que tanto v�m fazendo sofrer os estudantes de filosofia, e sugere a ado��o universal da Novil�ngua. Uma vez aprovada esta medida, os debates filos�ficos j� n�o ser�o, como antigamente, um desconfort�vel entrechoque de argumentos e provas, mas um esfor�o para tornar cada vez mais prazerosa e indolor a inculca��o gradual de novos h�bitos na mente da plat�ia. As novas teorias j� n�o chamar�o em seu socorro as pesadas armas da l�gica, mas os delicados instrumentos do marketing, com distribui��o de brindes aos novos adeptos e sorridentes coelhinhas da Playboy nas capas das teses acad�micas.

Mas a contribui��o decisiva do Sr. Rorty ao al�vio do sofrimento humano � o combate que ele move contra a id�ia de que a vida possa ter um sentido. � compreens�vel que, num universo que fa�a sentido, o Sr. Rorty deva se sentir muito mal — um estranho no ninho, exatamente como se sentiria um n�o-pragmatista num mundo desprovido de sentido. Por�m o Sr. Rorty n�o v� o menor proveito em polemizar com os que n�o sentem como ele. A controv�rsia entre a exist�ncia ou inexist�ncia de um sentido imanente no cosmos, diz ele, "� demasiado radical para poder ser julgada a partir de algum ponto de vista neutro". N�o h� meio de argumentar: tudo o que um homem pode fazer � expressar o seu desejo. Portanto, novamente, a tese do Sr. Rorty � uma declara��o de inten��es: ele, Richard Rorty, far� tudo o que estiver ao seu alcance para que a vida n�o tenha o menor sentido. Ele faz isto ali�s com extrema dedica��o e compet�ncia. H� quem ache que a falta de sentido � que torna os seres humanos infelizes1, mas o Sr. Rorty n�o est� nem a�. Ele defende o pluralismo democr�tico, a livre express�o de todos os pontos de vista. Apenas, o confronto dos pontos de vista, n�o podendo ser arbitrado por nenhum meio intelectualmente v�lido, se torna apenas uma concorr�ncia entre desejos, cujo desenlace ser� determinado pela pura habilidade manipulat�ria do partido vencedor.

Quem conhece o Sr. Rorty pessoalmente garante que ele � um primor de simpatia. Acredito. Mas duvido que abane o rabo. Afinal, n�o � ele o animal da hist�ria2.

NOTAS

  1. Viktor Frankl por exemplo, o nunca ass�s louvado psiquiatra judeu, que no inferno dos campos de concentra��o descobriu que um sentido da vida � mais necess�rio ao homem do que a liberdade mesma. Frankl disse a um p�blico norte-americano: "N�o foram apenas alguns minist�rios de Berlim que inventaram as c�maras de g�s de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escrit�rios e salas de aula de cientistas e fil�sofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglo-sax�nicos laureados com o Pr�mio Nobel. � que, se a vida humana n�o passa do insignificante produto acidental de umas mol�culas de prote�na, pouco importa que um psicopata seja eliminado como in�til e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto n�o � sen�o racioc�nio l�gico e consequente." (S�de de Sentido, trad. Henrique Elfes, S�o Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.) Voltar
  2. Relendo em provas este cap�tulo, ocorre-me lembrar ao leitor que uma proposta como a do Sr. Rorty cont�m em si, junto com a recusa da prova racional, um batalh�o de anticorpos contra qualquer tentativa de refut�-la na serenidade de uma discuss�o acad�mica. Uma "inculca��o gradual" nunca se bate de frente contra argumentos, mas aproveita-se dos momentos de distra��o do interlocutor para subrepticiamente induzir nele uma mudan�a de estado de esp�rito. Seu modus argumentandi n�o � o do fil�sofo ou mesmo o do ret�rico, mas o do programador neurolingu�stico: atua por baixo do limiar da consci�ncia, ap�s ter induzido a v�tima a relaxar suas defesas por meio de uma conversa amena. Contra esse tipo de atua��o, a �nica defesa poss�vel � enfrentar o sedutor no terreno que ele escolheu: no da a��o psicol�gica. N�o se trata, portanto, de argumentar, mas de desmascarar, tal como em psican�lise. Durante a passagem do Sr. Rorty pelo Brasil, fiquei estarrecido com a incapacidade de seu p�blico de perceber a diferen�a entre argumenta��o e sedu��o: se o pr�prio Sr. Rorty admite que n�o adianta argumentar, que outra coisa poderiam ser seus aparentes argumentos sen�o uma manobra diversionista, um trompe l’oeil para manter ocupada a aten��o consciente enquanto por baixo e a salvo de toda fiscaliza��o cr�tica o inculcador gradual vai manipulando discretamente o fundo da alma do distra�do interlocutor? Mas qual mocinha caipira seria tola de tentar livrar-se de um sedutor mediante frases polidas que prolongassem a conversa? Para expulsar o sedutor � preciso recusar-lhe, desde logo e definitivamente, qualquer aceno de simpatia. Hoje em dia s�o muitas as correntes de opini�o que, � argumenta��o l�gica, preferem a influ�ncia psicol�gica. Elas n�o tentam conquistar nossa ades�o, mas monopolizar nossa aten��o. Prolongando uma conversa que elas mesmas reconhecem n�o poder chegar a resultados intelectualmente v�lidos, envolvem-nos gradualmente na sua atmosfera, de modo que, sem termos jamais concordado com elas explicitamente, de repente estamos falando na sua linguagem, pensando segundo as suas categorias, julgando segundo os seus valores, agindo segundo as suas regras. Obt�m assim, por cima ou por baixo de nossa discord�ncia superficial, nossa mais completa obedi�ncia. N�o h� meio de enfrent�-las sen�o por ostensivas manifesta��es de antipatia, de modo a faz�-las entender que aquilo que nos separa delas n�o � uma mera discord�ncia intelectual, mas tamb�m uma categ�rica rejei��o moral; que, em suma, n�o gostamos da sua conversa. O tom do presente livro tem portanto um sentido profil�tico. Voltar

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