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NOTA SOBRE CHARLES S. PEIRCE
O Imbecil Coletivo, 5a. ed., pp. 68-74.


E Charles Sanders Peirce gerou William James, que gerou John Dewey, que gerou Richard Rorty, que, desembarcando no Brasil, gerou entre os nativos o maior frisson e confus�o mental. Remontemos �s origens.

Peirce diz que o �nico significado de uma id�ia reside nas conseq��ncias pr�ticas que dela se possa inferir. Esta tese � o miolo da sua filosofia e o que origina sua denomina��o de pragmatismo: pragma, em grego, s�o os assuntos da vida pr�tica. Ironicamente, a tese � inaplic�vel na pr�tica, porque existe uma diferen�a significativa e n�o raro uma separa��o abissal entre as conseq��ncias pr�ticas que se pode inferir de uma id�ia mediante conjetura l�gica e as conseq��ncias pr�ticas que ela de fato vem a desencadear no decorrer do tempo.

Por exemplo, do marxismo pode-se inferir logicamente a revolu��o prolet�ria e o estado sem classes, como conseq��ncias pretendidas. Mas, na pr�tica, suas conseq��ncias reais foram um golpe militar e a instaura��o da ditadura de uma nova classe. Qual dessas duas ordens de conseq��ncias representa o "verdadeiro significado" do marxismo? Peirce diz que o significado est� na "soma" das conseq��ncias, mas no caso esta soma d� zero, de vez que as duas linhas de conseq��ncias, a pretendida e a alcan�ada, se excluem logicamente. Sendo assim, s� nos restaria dizer que, do ponto de vista pragm�tico, o marxismo n�o tem significado nenhum, mas isto seria contradit�rio com o fato de que teve conseq��ncias pr�ticas reais.

De outro lado, como distinguir entre as conseq��ncias pr�ticas que uma id�ia desencadeia por si mesma e aquelas que decorrem de sua mistura acidental com outras id�ias diversas, heterog�neas e contradit�rias, ou ainda dos percal�os imprevis�veis que acompanham sua difus�o na sociedade humana? Para poder fazer essa distin��o, ter�amos de reconhecer que a id�ia tem algum significado independentemente e antes de quaisquer conseq��ncias pr�ticas que possa desencadear. Mas isto seria confessar que ela tem significado enquanto mero esquema representativo, enquanto imagem do real, o que seria a nega��o de todo pragmatismo. A alternativa seria admitir que as conseq��ncias acidentais fazem parte do significado das id�ias, o que nos levaria � conclus�o de que qualquer id�ia pode significar qualquer coisa, dependendo do que os acidentes de percurso venham a fazer com ela durante o processo de sua difus�o. Raciocinando por esta linha, chegar�amos � conclus�o de que a umbanda faz parte do significado origin�rio da id�ia crist�, j� que os acidentes da Hist�ria nacional produziram a fus�o dessa id�ia com os ritos africanos, ou que a AIDS � parte intr�nseca do significado do amor, de vez que o amor fez algumas pessoas contra�rem AIDS. Do mesmo modo, nada impediria que interpret�ssemos o pragmatismo como um idealismo, j� que Royce, disc�pulo de Peirce, se tornou por acaso um idealista absoluto.

Em descarada contradi��o consigo mesmo, Peirce afirma por outro lado que o m�todo cient�fico deve buscar apenas a verdade, independentemente de suas conseq��ncias pr�ticas. Que � que a id�ia do m�todo cient�fico tem de t�o especial, para conseguir ser dotada de significado independentemente de suas conseq��ncias pr�ticas, se estas, segundo o mesmo Peirce, s�o o �nico significado poss�vel de uma id�ia?

Mais curiosa ainda � a nega��o peirceana de toda evid�ncia intuitiva. Segundo Peirce, n�o temos nenhuma faculdade intuitiva e todo o nosso conhecimento � constitu�do de pensamentos feitos com signos, com base no conhecimento dos fatos externos. Por�m estes fatos externos s�o conhecidos intuitivamente ou s�o tamb�m apenas signos? E como algo que n�o foi percebido intuitivamente poderia ser signo do que quer que fosse? Como conciliar a nega��o da evid�ncia intuitiva com o conceito de "signo"? Um signo, diz Peirce, "� algo que, para algu�m, equivale a alguma coisa sob algum aspecto". Como poderia haver ent�o qualquer signo sem a evid�ncia intuitiva desse algo, bem como da identidade ou diferen�a entre o "algo" e o "alguma coisa"? Caso o bendito "algo" seja tamb�m somente signo e n�o uma presen�a efetiva captada intuitivamente, a� teremos signos de signos de signos e assim por diante infindavelmente, o que simplesmente liquidar� com qualquer possibilidade do uso pr�tico de signos, at� mesmo como mentiras convencionais.

Pior ainda, n�o vejo como conciliar a nega��o da evid�ncia com a confian�a que Peirce tem no poder da l�gica. A l�gica nada � sem o princ�pio de identidade, o qual ou � uma evid�ncia intuitiva ou � uma simples conven��o aceita pela comunidade cient�fica. Caso seja uma simples conven��o, sua validade depende de um consenso num�rico, o que o reduziria � mera "reafirma��o tenaz de uma autoridade" (sic), m�todo de valida��o que o pr�prio Peirce considera anticient�fico.

Para Peirce, a evid�ncia intuitiva tem validade meramente subjetiva, j� que varia de um indiv�duo para outro. Ele confunde aqui a evid�ncia, no sentido l�gico-ideal, com o ato psicol�gico de intui��o — naturalmente subjetivo e fal�vel —, e este, por sua vez, com o mero sentimento de certeza, que n�o acompanha somente as intui��es mas tamb�m as cren�as, desejos e alucina��es; enfim, ele confunde o l�gico com o psicol�gico, e isto � propriamente a marca registrada do psicologismo, do qual o pragmatismo n�o � sen�o uma vers�o (e contra o qual n�o � preciso argumentar mas somente remeter � "Introdu��o" das Investiga��es L�gicas de Husserl1).

Peirce pergunta: Se a intui��o � uma percep��o direta, como podemos saber que temos intui��es? Podemos, por intui��o, saber que temos intui��es? Ele considera isto um argumento fulminante contra a intui��o, mas a resposta a esta �ltima pergunta � simplesmente "sim". Se n�o intuo que intuo, nada intuo. A intui��o � necessariamente acompanhada de autoconsci�ncia, sen�o se confundiria com a pura e simples sensa��o corporal. Se vejo, mas n�o intuo que vejo, n�o posso falar de intui��o visiva, mas apenas de sensa��o �tica, desacompanhada de consci�ncia cognitiva, como ali�s � �bvio. Um homem que, como Peirce, n�o reconhece intuir que intui, ou est� mentindo ou est� num estado de cis�o esquizofr�nica, negando a pr�pria autoconsci�ncia. S� que ele � um pouco mais pretensioso do que os esquizofr�nicos comuns, e exige que tamb�m n�s neguemos a nossa.

Se a evid�ncia intuitiva n�o tem valor, o indiv�duo sozinho nada pode saber, e, logo, diz Peirce, "� necess�rio toda uma comunidade de investigadores para testar objetivamente a veracidade de qualquer id�ia". Por�m, se cada um desses investigadores tamb�m n�o � capaz de evid�ncia intuitiva e certeza pessoal universalmente v�lida, quem far� a soma de seus pontos de vista para sintetiz�-los numa "verdade objetiva"? Peirce parece crer que a comunidade acad�mica existe de per si, como uma substantia prima aristot�lica, que ela tem uma autoconsci�ncia unit�ria e capaz de certeza, ausente em cada um dos indiv�duos que a comp�em. A comunidade acad�mica � um ser dotado de consci�ncia, formado pela soma de v�rios indiv�duos inconscientes. Peirce � um transcendentalista sociol�gico.

Ainda desse ponto de vista, se o �nico significado de uma id�ia reside em suas conseq��ncias pr�ticas, que conseq��ncias pr�ticas se inferem da nega��o da intui��o individual? Infere-se que cada indiv�duo humano, n�o podendo confiar na sua pr�pria autoconsci�ncia, negar� todas as evid�ncias intuitivas que lhe cheguem e, n�o podendo apoiar-se jamais em si mesmo, ter� de render-se � autoridade da onipotente comunidade acad�mica. O resultado pr�tico disto � a redu��o da humanidade a um rebanho de animais d�ceis, incapazes de entendimento pessoal e necessitados sempre do aval da autoridade "cient�fica"2.

Mais fundo ainda, Peirce afirma que nenhuma verdade constitui uma evid�ncia em si, mas deve ser corroborada por alguma prova independente. Esquece-se de dizer que esta prova independente tamb�m nada vale em si e necessita de outras provas independentes e assim por diante infindavelmente, o que termina por neutralizar qualquer significado poss�vel da afirma��o de que nenhuma verdade � evidente em si.

As verdades evidentes por si pr�prias, diz ele ainda, nada significam em ci�ncia, e devem ser corroboradas por um crit�rio cient�fico, "objetivo e p�blico". Ora, a validade de qualquer prova assenta-se em �ltima an�lise em princ�pios l�gicos, que ou s�o evidentes de per si ou s�o conven��es arbitr�rias. Peirce n�o aceita nem que haja verdades evidentes de per si nem que as conven��es arbitr�rias valham alguma coisa. Assim, simplesmente n�o h� princ�pios l�gicos que possam fundamentar qualquer prova que seja. A �nica alternativa que resta a Peirce � apelar para a autoridade do "p�blico" cient�fico, isto �, para a autoridade do maior n�mero, � qual por outro lado ele mesmo nega qualquer validade cient�fica. � tudo um beco sem sa�da, e talvez por isto mesmo esta "filosofia" exer�a tanto fasc�nio numa �poca que sente um requintado prazer em deixar-se prender em toda sorte de labirintos psicol�gicos.

Segundo Peirce, a doutrina da intui��o, ao afirmar que os pensamentos podem diretamente encarnar seus objetos, baseia-se na confus�o entre signo e coisa significada. Bobagem. A intui��o n�o � um pensamento ou uma representa��o, mas uma presen�a direta, como a desta folha diante dos olhos do leitor, a qual se imp�e � sua consci�ncia, sem signos e sem "pensamento". Se algo � captado por meio de signos, n�o h� nisto intui��o alguma. Parece que Peirce confunde a intui��o em ato com a mera lembran�a de um objeto rec�m-intu�do — a qual �, certamente, signo. Qualquer um sabe a diferen�a entre intuir uma presen�a e recordar-se de um ausente. S� Peirce n�o sabe, ou faz que n�o sabe3.

Assim, malgrado sua apologia da pr�tica, o pragmatismo � refrat�rio a qualquer aplica��o pr�tica, por ser intrinsecamente contradit�rio.

Tamb�m � desastroso o resultado a que se chega quando se aplica ao pragmatismo o m�todo pragmatista de definir uma id�ia por suas conseq��ncias pr�ticas. A conseq��ncia pr�tica fundamental do pragmatismo � a absor��o das consci�ncias individuais nulificadas numa onipotente "comunidade cient�fica" dotada de poderes trans-humanos e incapaz, por sua vez, de obter a prova de suas cren�as sen�o pelo voto da maioria nas sess�es acad�micas. Esta � a sua conseq��ncia l�gica, deduz�vel do seu mero conceito, como foi tamb�m sua conseq��ncia real, historicamente verificada. � o que se v� pelo fato de que Richard Rorty, o �ltimo rebento da fam�lia peirceana, j� reconhece explicitamente como �nico crit�rio v�lido do conhecimento a lei do maior n�mero, mostrando assim ao mundo a verdadeira cara do pragmatismo, que nem seu fundador teve a coragem de olhar de frente.
 

NOTAS

  1. Na nossa imprensa cultural � uso dizer a toda hora que tal ou qual teoria "foi derrubada", "foi abandonada", "caiu", etc. Tais express�es irrespons�veis s� servem para ludibriar o p�blico, induzindo-o a confundir a refuta��o cient�fica suficiente e o mero desuso ou esquecimento de uma teoria. Muitas teorias saem da moda sem jamais terem sido refutadas ou sequer postas em discuss�o. Outras, embora irrespondivelmente refutadas, continuam envoltas em prest�gio. Na hist�ria das ci�ncias e da filosofia, a refuta��o completa de uma teoria qualquer � antes um caso raro do que uma regra geral. Ironicamente, um dos exemplos cl�ssicos de refuta��o exaustiva em filosofia � a que Husserl fez do psicologismo. Isto foi na virada do s�culo e, n�o obstante, o psicologismo continua a aparecer em p�blico como se ainda fosse uma teoria respeit�vel — exatamente como na tirada de Swift sobre o sujeito que morrera uns dias antes mas que continuava a circular pelas ruas por n�o ter sido avisado de seu pr�prio falecimento. Voltar
  2. Um dos efeitos mais nocivos da dissemina��o dessa cren�a � a total aliena��o do indiv�duo em rela��o �s suas sensa��es mais imediatas e patentes. Um homem psicologicamente s�o deve ter, por exemplo, uma id�ia aproximativamente v�lida de seu estado de sa�de corporal pela simples sensa��o de vigor, bem-estar e harmonia das fun��es. O cidad�o m�dio norte-americano — intoxicado por cem anos de pragmatismo — n�o consegue mais ter essa autoconsci�ncia espont�nea, e confia mais em exames de laborat�rio do que nas suas sensa��es pessoais. N�o vai ao m�dico por sentir-se doente, mas para que o m�dico lhe informe se deveria sentir-se doente, dado o seu estado "objetivo" de sa�de — "objetivo" significando a� (valha-me Deus!) a rela��o entre os resultados dos exames laboratoriais e a "m�dia" admitida como s�. Eis como o progresso da ci�ncia pode caminhar de m�os dadas com o aumento da burrice. Voltar
  3. Fazer que n�o sabe, e acabar n�o sabendo mesmo — eis a ess�ncia do racioc�nio imbecilcoletivo. Esta ess�ncia manifesta-se sob uma variedade de formas diferentes, que v�o desde a "linha justa" dos velhos PCs, que suprimia da Hist�ria os eventos e personagens incompat�veis com a vers�o aprovada pelo consenso un�nime, at� um tipo de "rigor cient�fico" que consiste em negar a exist�ncia de tudo aquilo quanto a comunidade cient�fica do presente ainda n�o tenha meios de provar que existe — crit�rio cujo �nico fundamento l�gico � a f� na onisci�ncia da comunidade acad�mica e na completa nesci�ncia de quem esteja fora dela. Outra manifesta��o do mesmo racioc�nio � o crit�rio jornal�stico de definir como importantes somente os eventos que saem nos jornais, crit�rio este que um dos melhores profissionais do ramo — Rolf Kuntz — denominou autof�gico. Voltar

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