3a edi��o,
INTRODU��O GERAL � TRILOGIA MANUAL DO USU�RIO
de
O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais Brasileiras Texto lido no Lan�amento de O Imbecil Coletivo. Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1996.
O Imbecil Coletivo encerra a trilogia iniciada com A Nova Era e a Revolu��o Cultural ( 1994 ) e prosseguida com O Jardim das Afli��es ( 1995 ). Cada um dos tr�s livros pode ser compreendido sem os outros dois. O que n�o se pode �, por um s� deles, captar o fundo do pensamento que orienta a trilogia inteira. A fun��o de O Imbecil Coletivo na cole��o � bastante expl�cita e foi declarada no Pref�cio: descrever, mediante exemplos, a extens�o e a gravidade de um estado de coisas atual e brasileiro do qual A Nova Era dera o alarma e cuja precisa localiza��o no conjunto da evolu��o das id�ias no mundo fora diagnosticada em O Jardim das Afli��es. O sentido da s�rie �, portanto, nitidamente, o de situar a cultura brasileira de hoje no quadro maior da hist�ria das id�ias no Ocidente, num per�odo que vai de Epicuro at� a "Nova Ret�rica" de Chaim Perelman. Que eu saiba, ningu�m fez antes um esfor�o de pensar o Brasil nessa escala. Meus �nicos antecessores parecem ter sido Darcy Ribeiro, M�rio Vieira de Mello e Gilberto Freyre, o primeiro com a tetralogia iniciada com O Processo Civilizat�rio, o segundo com Desenvolvimento e Cultura, o terceiro com sua obra inteira. Separo-me deles, no entanto, por diferen�as essenciais: Ribeiro emprega uma escala muito maior, que come�a no Homem de Neanderthal, mas ao mesmo tempo procura abranger esse imenso territ�rio desde o prisma de uma determinada ci�ncia emp�rica, a Antropologia, e fundado numa base filos�fica decepcionantemente estreita, que � o marxismo nu e cru. Vieira de Mello, com muito mais envergadura filos�fica, n�o se aventura a remontar al�m do per�odo da Revolu��o Francesa, com algumas incurs�es at� o Renascimento e a Reforma. Quanto a Gilberto, o ciclo que lhe interessa � o que se inicia com as grandes navega��es. De modo geral, os estudiosos da identidade brasileira deram por pressuposto que, tendo entrado na Hist�ria no per�odo chamado "moderno", o Brasil n�o tinha por que tentar enxergar-se num espelho temporal mais amplo. Estou, portanto, sozinho na jogada, e posso alegar em meu favor o tem�vel m�rito da originalidade. Tem�vel porque originalidade � singularidade, e a mente humana est� mal equipada para perceber as singularidades como tais: ou as expele logo do c�rculo de aten��o, para evitar o inc�modo de adaptar-se a uma forma desconhecida, ou as apreende somente pelas analogias parciais e de superf�cie que permitem assimil�-las erroneamente a alguma classe de objetos conhecidos. Entre a rejei��o silenciosa e o engano loquaz, minha trilogia n�o tem muitas chances de ser bem compreendida. Mas a singularidade, nela, n�o est� s� no assunto. Est� tamb�m nos postulados filos�ficos que a fundamentam e na forma liter�ria que escolhi para apresent�-la, ou antes, que sem escolha me foi imposta pela natureza do assunto e pelas circunst�ncias do momento. Quanto � forma, o leitor h� de reparar que difere nos tr�s volumes. O primeiro comp�e-se de dois ensaios de tamanho m�dio, colocados entre duas introdu��es, v�rios ap�ndices, um punhado de notas de rodap� e uma conclus�o. O todo d� � primeira vista a id�ia de textos de origens diversas juntados pela coincid�ncia fortuita de assunto. A um exame mais detalhado, revela a unidade da id�ia subjacente, encarnada no s�mbolo que fiz imprimir na capa: os monstros b�blicos Behemot e Leviat�, na gravura de William Blake, o primeiro imperando pesadamente sobre o mundo, o maci�o poder de sua pan�a firmemente apoiado sobre as quatro patas, o segundo agitando-se no fundo das �guas, derrotado e tem�vel no seu rancor impotente. N�o usei a gravura de Blake por boniteza, mas para indicar que atribuo a esses s�mbolos exatamente o sentido que lhes atribuiu Blake. Detalhe importante, porque essa interpreta��o n�o � nenhuma alegoria po�tica, mas, como assinalou Kathleen Raine em Blake and Tradition, a aplica��o rigorosa dos princ�pios do simbolismo crist�o. Na B�blia, Deus, exibe Behemot a J�, dizendo: "Eis Behemot, que criei contigo" ( J�, 40:10 ). Aproveitando a ambig�idade do original hebraico, Blake traduz o "contigo" por from thee, "de ti", indicando a unidade de ess�ncia entre o homem e o monstro: Behemot � a um tempo um poder macroc�smico e uma for�a latente na alma humana. Quanto a Leviat�, Deus pergunta: "Porventura poder�s pux�-lo com o anzol e atar sua l�ngua com uma corda?" ( J�, 40:21 ), tornando evidente que a for�a da revolta est� na l�ngua, ao passo que o poder de Behemot, como se diz em 40:11, reside no ventre. Maior clareza n�o poderia haver no contraste de um poder ps�quico e de um poder material: Behemot � o peso maci�o da necessidade natural, Leviat� � a infranatureza diab�lica, invis�vel sob as �guas o mundo ps�quico que agita com a l�ngua.
O sentido que Blake registra nessas figuras n�o � uma "interpreta��o", na acep��o negativa que Susan Sontag d� a esta palavra: �, como deve ser toda boa leitura de texto sacro, a tradu��o direta de um simbolismo universal. Para Blake, embora Behemot represente o conjunto das for�as obedientes a Deus, e Leviat� o esp�rito de nega��o e rebeli�o, ambos s�o igualmente monstros, for�as c�smicas desproporcionalmente superiores ao homem, que movem combate uma � outra no cen�rio do mundo, mas tamb�m dentro da alma humana. No entanto n�o � ao homem, nem a Behemot, que cabe subjugar o Leviat�. S� o pr�prio Deus pode faz�-lo. A iconografia crist� mostra Jesus como o pescador que puxa o Leviat� para fora das �guas, prendendo sua l�ngua com um anzol. Quando, por�m, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo, ent�o se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e as for�as rebeldes antinaturais, ou infranaturais. A luta transfere-se da esfera espiritual e interior para o cen�rio exterior da Hist�ria. � assim que a gravura de Blake, inspirada na narrativa b�blica, nos sugere com a for�a sint�tica de seu simbolismo uma interpreta��o metaf�sica quanto � origem das guerras, revolu��es e cat�strofes: elas refletem a demiss�o do homem ante o chamamento da vida interior. Furtando-se ao combate espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a perigos de ordem material no cen�rio sangrento da Hist�ria. Ao faz�-lo, move-se da esfera da Provid�ncia e da Gra�a para o �mbito da fatalidade e do destino, onde o apelo � ajuda divina j� n�o pode surtir efeito, pois a� j� n�o se enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas as for�as cegas da necessidade implac�vel e da rebeli�o impotente. No plano da Hist�ria mais recente, isto �, no ciclo que come�a mais ou menos na �poca do Iluminismo, essas duas for�as assumem claramente o sentido do r�gido conservadorismo e da h�bris revolucion�ria. Ou, mais simples ainda, direita e esquerda. O drama inteiro a� descrito pode-se resumir iconograficamente no esquema em cruz que coloquei depois em O Jardim das Afli��es, mas que j� est� subentendido em A Nova Era e a Revolu��o Cultural, pois constitui a estrutura mesma do enfoque anal�tico pelo qual procuro a� apreender a significa��o das duas correntes de id�ias mencionadas no t�tulo: o holismo neocapitalista de Fritjof Capra e o empreendimento gramsciano de devasta��o cultural. Nesse primeiro volume, a forma adotada inicialmente n�o podia ser mais clara e foi imposta pela natureza mesma do assunto: uma introdu��o, um cap�tulo para Capra, outro para Gramsci, um retrospecto comparativo e uma conclus�o inescap�vel: as ideologias, quaisquer que fossem, estavam sempre limitadas � dimens�o horizontal do tempo e do espa�o, opunham o coletivo ao coletivo, o n�mero ao n�mero; perdida a vertical que unia a alma individual � universalidade do esp�rito divino, o singular ao Singular, perdia-se junto com ela o sentido de escala, o senso das propor��es e das prioridades, de modo que as ideologias tendiam a ocupar totalitariamente o cen�rio inteiro da vida espiritual e a negar ao mesmo tempo a totalidade metaf�sica e a unidade do indiv�duo humano, reinterpretando e achatando tudo no molde de uma cosmovis�o unidimensional. As notas e ap�ndices, que aparentemente colocam alguma desordem na forma do conjunto, servem a� a dois prop�sitos opostos e complementares: de um lado, indicar as bases mais gerais que o argumento conservava impl�citas, mostrando ao leitor que a an�lise de Capra e Gramsci era apenas a ponta vis�vel de uma investiga��o muito mais ampla que, �quela altura, s� meus alunos conheciam atrav�s das aulas e apostilas do Semin�rio de Filosofia, mas que, nas condi��es de uma vida anormalmente agitada, eu n�o estava certo de poder redigir por completo algum dia; de outro lado, indicar que minhas an�lises n�o pairavam do c�u das meras teorias, mas que se aplicavam � compreens�o de fatos pol�ticos que se desenrolavam na cena brasileira na hora mesma em que eu ia escrevendo o livro da� as arestas pol�micas que d�o a trechos desse ensaio uma apar�ncia de jornalismo de combate. Se alguns leitores n�o viram no livro mais que essa superf�cie como outros n�o ver�o em O Imbecil Coletivo sen�o a cr�tica de ocasi�o a certos figur�es do dia e em O Jardim das Afli��es um ataque ao establishment uspiano , n�o posso dizer que perderam nada, pois o restante e o melhor do que se cont�m nesses livros n�o foi feito realmente para esses leitores e � bom mesmo que permane�a invis�vel aos seus olhos. Se no primeiro volume permiti que a id�ia central fosse apenas esbo�ada em fragmentos, um tanto � maneira minimalista, para que o leitor, antes pressentindo-a do que percebendo-a, tivesse o trabalho de ir busc�-la no fundo de si mesmo em vez de simplesmente peg�-la na superf�cie da p�gina, no segundo, O Jardim das Afli��es, segui a estrat�gia inversa: ser o mais expl�cito poss�vel e dar � exposi��o o m�ximo de unidade, obrigando o leitor a seguir uma argumenta��o cerrada, sem saltos ou interrup��es, ao longo de quatrocentas p�ginas. Mas, para n�o dar a ilus�o de que essa forma completa abrangesse a totalidade do meu pensamento a respeito do tema, espalhei ao longo do texto centenas de notas de rodap� que indicavam os pressupostos te�ricos impl�citos, as possibilidades de aprofundamentos por realizar ( ou j� realizados s� oralmente em aula ), e mil e uma sementes de desenvolvimentos poss�veis e interessantes, que eu realizaria se tivesse uma vida sem fim, mas que os leitores inteligentes bem podem ir realizando por sua conta. A unidade de argumenta��o de O Jardim das Afli��es, que na minha inten��o, confirmada por alguns leitores, d� a esse livro n�o obstante pesad�ssimo e complexo a legibilidade de um romance policial, mostra assim n�o ser a unidade cerrada de um sistema, mas a unidade de um holon, como diria Arthur Koestler: algo que, visto de um lado, � um todo em si, e, de outro lado, � parte de um todo mais vasto. Esta homologia de parte e todo repete-se, por sua vez, na estrutura interna do livro, onde o evento aparentemente insignificante que lhe serve de ponto de partida j� cont�m, na sua escala microc�smica, ou microsc�pica, as linhas gerais da interpreta��o global da hist�ria do Ocidente, que � apresentada nos cap�tulos restantes. Aqueles leitores que se queixaram de que um livro t�o substancioso come�asse pelo coment�rio pol�mico de um acontecimento menor, mostraram n�o compreender bem uma das mensagens principais do livro, que � a de que, � luz de uma metaf�sica da Hist�ria, n�o h� propriamente acontecimentos menores o grande e o pequeno est�o coeridos na unidade org�nica de um Sentido que tudo pervade. Aquilo que nada pesa na ordem causal pode muito revelar na ordem da significa��o. E, na verdade, se houvesse acontecimentos perfeitamente insignificantes, que nada merecessem sen�o o desprezo e o sil�ncio, o terceiro volume da s�rie, O Imbecil Coletivo, n�o poderia sequer ter sido escrito: pois o que nele apresento � um mostru�rio comentado de banalidades culturais que muito significam precisamente na medida em que n�o valem nada. E, se decidi reuni-las num volume, dando-lhes a dignidade de serem lembradas quando seus autores j� nada mais forem sen�o sombras no Hades, que � o sepulcro do irrelevante, foi precisamente porque entendi que, partindo de cada uma delas, e girando em c�rculos conc�ntricos cada vez mais amplos, se poderia chegar a vis�es de escala universal semelhantes �quela em que, partindo de uma picuinha cultural ocorrida no Museu de Arte de S�o Paulo em 1990, mostrei aos leitores de O Jardim das Afli��es o combate de Leviat� e Behemot no horizonte inteiro da hist�ria Ocidental. E, n�o podendo refazer tamanho esfor�o hermen�utico a cada nova babaquice cultural que lesse nos jornais, decidi reunir algumas e oferec�-las aos leitores como amostras para fins de exerc�cio. O Imbecil Coletivo �, portanto, o livro de tarefas que acompanha o texto-base trazido em O Jardim das Afli��es, ficando A Nova Era como abreviatura para principiantes. Quem leia assim O Imbecil Coletivo, buscando ali as li��es de casa para reconstituir, desde tr�s dezenas de exemplos, os lineamentos da vis�o da Hist�ria e do m�todo interpretativo exposto nos volumes anteriores, e buscando sempre a unidade org�nica entre a parte e o todo, entre a vis�o filos�fica de uma cultura milenar e as amostras da incultura moment�nea de um pa�s esquecido � margem da Hist�ria, esse ter� conquistado para si a melhor parte do que lhe dei. Pois � assim que se l�em os livros dos fil�sofos, mesmo quando se trate apenas de um filosofinho como este que lhes fala. Admito que, se em qualquer dos tr�s livros tivesse adotado uma forma expositiva mais ao gosto acad�mico, eu n�o precisaria estar agora chamando a aten��o para uma unidade de pensamento que transpareceria � primeira vista. Mas essa visibilidade custaria a perda de todas as refer�ncias � vida aut�ntica e o aprisionamento do meu discurso numa redoma ling��stica que n�o combina nem com o meu temperamento nem com a regra que me impus alguns anos atr�s, de nunca falar impessoalmente nem em nome de alguma entidade coletiva, mas sempre diretamente em meu pr�prio nome apenas, sem qualquer retaguarda mais respeit�vel que a simples honorabilidade de um animal racional, bem como de nunca me dirigir a coletividades abstratas, mas sempre e unicamente a indiv�duos de carne e osso, despidos das identidades provis�rias que o cargo, a posi��o social e a filia��o ideol�gica superp�em �quela com que nasceram e com a qual h�o de comparecer, um dia, ante o Trono do Alt�ssimo. Estou profundamente persuadido de que somente nesse n�vel de discurso se pode filosofar autenticamente. Ademais, existe algum m�rito pedag�gico em n�o ser bem arrumadinho, em poder dispor os dados n�o na ordem mais costumeira em que os desejaria o espectador pregui�oso, mas em desarrum�-los inteligentemente de modo a obrigar o leitor a tomar parte ativa na investiga��o. E h� um prazer imenso em misturar os g�neros liter�rios quando se � autor de um livreto que antes os distinguiu e catalogou com requintes de rigidez formal1. Estou imensamente satisfeito de ter podido concluir esta trilogia e de poder estar aqui hoje, nesta celebra��o que para mim � menos a do lan�amento de um livro que a da conclus�o de uma parte, de uma etapa da tarefa que me cabe nesta vida. Tarefa que �, em ess�ncia, a de romper o c�rculo de limita��es e constrangimentos que o discurso ideol�gico tem imposto �s intelig�ncias deste pa�s, a de vincular a nossa cultura �s correntes milenares e mais altas da vida espiritual no mundo, a fazer em suma com que o Brasil, em vez de se olhar somente no espelho estreito da modernidade, imaginando que quatro s�culos s�o a hist�ria inteira do mundo, consiga se enxergar na escala do drama humano ante o universo e a eternidade. Tarefa que �, no seu mais elevado e ambicioso intuito, a de remover os obst�culos mentais que hoje impedem que a cultura brasileira receba uma inspira��o mais forte do esp�rito divino e possa florescer como um dom magn�fico a toda a humanidade.
22/08/96 NOTAS
|
Home - Informa��es - Textos - Links - E-mail