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ESTATAIS DO PENSAMENTO
Bravo!, Ano 1, no 3, S�o Paulo, dezembro de 1997.

 

Quando um padre � apanhado num hotel com uma mini-prostituta de treze anos, quando um oficial de alta patente � surpreendido de joelhos ante o membro viril de um soldado, quando um senador ou deputado � pego em flagrante delito de tr�fico de t�xicos, j� ningu�m mais se surpreende. Acostumamo-nos � id�ia de que a Igreja, as For�as Armadas, o Estado s�o estruturas impessoais, onde cabe toda sorte de gente — dos santos aos bandidos, passando pela horda inumer�vel dos indiferentes e med�ocres.

Mas, quando � um fil�sofo quem se revela assassino, traficante ou corruptor de menores, as pessoas ainda sentem o choque do esc�ndalo, igual ao que sentiriam, d�cadas atr�s, se o personagem fosse prelado ou almirante. � que a filosofia, no entender do senso comum, n�o � um emprego, um cargo, uma ocupa��o como outra qualquer. Ela tem algo a mais, que a linguagem comum n�o expressa mas a consci�ncia de cada um apreende, e que recobre os seus praticantes de uma aura de dignidade especial. Ela � um sacerd�cio informal, que, n�o obrigando o novi�o a nenhum voto perante a autoridade exterior, nem lhe conferindo em recompensa o poder que a autoridade acaba por delegar aos servidores obedientes, n�o compromete o homem sen�o perante a sua pr�pria consci�ncia nem lhe d� outro pr�mio, quando d� algum, sen�o a sabedoria. Ela � o sacerd�cio leigo do homem livre — o sacerd�cio mais alto que se pode conceber.

De tudo isso sabe o senso comum, e por isto mesmo sofre ao ver o fil�sofo metido na lama, que n�o lhe parece no entanto local totalmente impr�prio aos poderosos deste mundo, sejam prelados, ministros ou almirantes.

N�o estar� por�m a opini�o comum um tanto desatualizada com o estado de coisas? N�o estar� ela projetando sobre os meros funcion�rios de talento que mediante concurso o Estado nomeou "fil�sofos" uma expectativa moral formada � imagem dos grandes fil�sofos do passado? E haver� entre estes e aqueles, realmente, algo mais que uma coincid�ncia do termo que os designa? N�o ter� a filosofia perdido toda liga��o origin�ria com a sabedoria e descido ao n�vel de uma profiss�o como qualquer outra, onde cabem, mediante concurso, os her�is e os covardes, os santos e os corruptos, os m�rtires e os carrascos?
 

Saber e viver

A filosofia surgiu como um esfor�o de interioriza��o do conhecimento, uma ascese do esp�rito que, ao buscar a unidade do saber, buscava nela a sua pr�pria unidade e, nesta, a unidade de saber, ser e agir. Em todo o per�odo grego, a interroga��o sobre a alma, o bem e a conduta na vida n�o era um dom�nio separado das investiga��es f�sicas e ontol�gicas, mas formava com elas, na pessoa do fil�sofo, a s�ntese de conhecimento e vida. As escolas de filosofia n�o eram apenas centros de ensino e investiga��o cient�ficos, mas escolas de sabedoria e, at� certo ponto, sociedades inici�ticas. N�o procuravam apenas transmitir a seus membros um certo conhecimento, mas educ�-los numa certa maneira de viver que, para a consci�ncia filos�fica, era a maneira certa de viver.

Essa s�ntese permanece viva e atuante at� o fim do mundo antigo, na escola est�ica e no neoplatonismo. Na Idade M�dia, ganha ainda mais peso e consist�ncia, gra�as � associa��o que se forma entre o estudo da filosofia e a pr�tica da moral crist�. Levando �s �ltimas conseq��ncias o ideal grego de cultivo da sabedoria, a filosofia medieval torna-se um caminho de santidade, realizando a m�xima de Clemente de Alexandria: "A filosofia � o pedagogo que conduz a alma at� o Cristo". Concep��o similar desenvolve-se no mundo isl�mico, onde a filosofia se alia, na fraternidade de Basra e em outras escolas de m�stica, a pr�ticas asc�ticas destinadas a obter a m�xima concentra��o da alma e torn�-la plenamente d�cil a evid�ncias cada vez mais altas que lhe v�o sendo reveladas pela intui��o espiritual.

Mesmo dilu�do na onda de mundanismo e esteticismo que ent�o se avoluma, esse ideal sobrevive no Renascimento: nem Descartes, nem Pascal, nem Malebranche, nem Leibniz, nem Newton podiam conceber uma ci�ncia que fosse desligada do autoconhecimento e do cultivo das virtudes.
 

A filosofia como emprego

Em contraste com essa concep��o, que durou dois mil anos, a filosofia que se pratica no mundo desde o s�culo XIX � uma profiss�o remunerada, geralmente exercida numa institui��o estatal ou sob a fiscaliza��o do Estado. Seu exerc�cio requer do praticante apenas a posse de determinados conhecimentos, a obedi�ncia aos regulamentos administrativos e, last not least, um certo traquejo social ou habilidade pol�tica, que com muita freq��ncia se revela um fator mais decisivo que os dois anteriores. Toda ascese interior e busca da sabedoria n�o apenas se revelam dispens�veis, como tamb�m sua pr�tica se torna extremamente dificultosa nas condi��es em que a nova profiss�o se exerce. A filosofia torna-se um emprego, um papel social, e a sele��o dos candidatos nada exige em mat�ria de condi��es morais, espirituais ou psicol�gicas: desde que passe no concurso, um esquizofr�nico, um farsante, um demagogo, um assassino ou um mentiroso compulsivo pode agora adornar-se do t�tulo que um dia significou "amante da sabedoria". O fil�sofo � algu�m que sabe e que sobretudo fala, mas que n�o tem a mais m�nima obriga��o de ser.

O risco de decad�ncia moral, nessas condi��es, � consider�vel. Se Kant julgava ing�nuo buscar respostas �s quest�es metaf�sicas sem antes de fazer uma investiga��o preliminar sobre a possibilidade te�rica do conhecimento metaf�sico, mais ing�nuo ainda � julgar que podemos chegar a bom resultado nesta investiga��o, ou na busca daquelas respostas, sem antes termos resolvido o problema pr�tico de saber se nossa mente pessoal � id�nea o bastante para tratar desses assuntos sem deform�-los � imagem e semelhan�a de sua pr�pria insinceridade.

� medida, por�m, que o mundo moderno se imbu�a de todas as precau��es kantianas contra a possibilidade de erros te�ricos, ao mesmo tempo foi negligenciando cada vez mais as precau��es mais elementares de ordem pr�tica concernentes � qualifica��o moral e psicol�gica requerida para o exerc�cio da filosofia.

Na escola plat�nica, o estudante n�o adormecia antes de repassar de mem�ria todos os seus atos e pensamentos do dia, de modo a n�o esmorecer no seu empenho de autoconsci�ncia; e na manh� seguinte, se aparecesse despenteado ou mal vestido, n�o era admitido em classe: a ordem no interior da alma devia refletir-se numa apar�ncia f�sica limpa e saud�vel.

Na Idade M�dia, a disciplina interior do aspirante a fil�sofo tornou-se ainda mais aperfei�oada e exigente, com a ado��o generalizada das pr�ticas crist�s da confiss�o, do exame de consci�ncia e do discernimento dos esp�ritos.

Desde o Renascimento, e cada vez mais � medida que o mundo Ocidental entrava na chamada "modernidade", essas exig�ncias foram se afrouxando, at� o ponto de se aceitarem como fil�sofos, sem a menor retic�ncia, malandros bem-falantes como Voltaire, mentirosos patol�gicos como Rousseau, loucos perigosos como o Marqu�s de Sade e homicidas como Louis Althusser.

Uma das causas desse estado de coisas � que a filosofia universit�ria, tendo adotado os crit�rios padronizados de informa��o cient�fica, incorporou, junto com eles, o modo de discuss�o e triagem consensual empregado nas "ci�ncias humanas". Isto � � primeira vista um progresso, mas tem por conseq��ncia levar o estudioso para cada vez mais longe da ascese interior e transform�-lo num trabalhador cient�fico rotineiro, empregado numa atividade coletiva onde o que interessa � obter um resultado global no qual o n�vel de consci�ncia e a perfei��o da alma de cada participante n�o contam para absolutamente nada. Nessas circunst�ncias, cada nova tese deve antes harmonizar-se com as exig�ncias do meio acad�mico do que com as demais opini�es e atitudes do homem que a produziu. O pensador tem de prestar mais rever�ncia ao superego universit�rio do que � sua pr�pria consci�ncia: pede-se que defenda bravamente suas opini�es, com primores de dial�tica e erudi��o se poss�vel, mas n�o que acredite nelas sinceramente ou que as leve a s�rio fora do hor�rio de expediente. E como a diversidade das perspectivas que se confrontam nos debates � geralmente grande, e bem extensa a lista de trabalhos anteriores sobre o mesmo assunto que � preciso levar em conta, cada estudioso, que tenha uma id�ia nova, com mais probabilidade a dispersar� em debates acad�micos muito antes de ter a oportunidade, ou mesmo o desejo, de averiguar o que ela significa para ele mesmo e de tirar dela a menor conseq��ncia para a conduta da sua vida. For�ado a amoldar sua id�ia o quanto antes aos padr�es do interc�mbio acad�mico, e jamais convidado a assumir por ela uma responsabilidade pessoal, o estudante de filosofia mal percebe o quanto isto arrisca transform�-lo com mais facilidade num amante da tagarelice do que num amante da sabedoria. Ganha-se assim em riqueza do debate geral o que cada participante perde em profundidade e seriedade de seu pr�prio compromisso filos�fico: a comunidade acad�mica consolida dia ap�s dia sua autoridade cient�fica, enquanto os fil�sofos se tornam pessoas cada vez mais imaturas e inconseq�entes, cada vez mais necessitadas, portanto, de apoiar-se na autoridade do consenso acad�mico. Ao mesmo tempo, toda elabora��o de problemas de consci�ncia � relegada para o recinto fechado da cl�nica psicoterap�utica e psicanal�tica, onde � tratada como assunto da "vida privada" sem a menor liga��o com a educa��o superior e a busca do saber. Obtida assim a plena consagra��o da ruptura entre ci�ncia e consci�ncia, o rolo compressor que, a pretexto de rigor cient�fico, esmaga todo senso de responsabilidade pessoal, torna-se um mecanismo infernal de auto-reprodu��o circular: uma vez ca�do na m�quina, um homem n�o tem mais como conservar, se n�o sua independ�ncia de julgamento, ao menos a conex�o profunda entre pensar e ser, entre suas opini�es filos�ficas e as camadas mais profundas de sua vida interior. Em troca, recebe o direito de participar da constru��o do consenso, bem como o reconhecimento p�blico de seu estatuto profissional, com todas as vantagens materiais decorrentes. Se isto n�o � vender a alma, n�o sei o que seja.

� por perceber algo dessa atmosfera, mais que por encontrar dificuldades para dominar a terminologia t�cnica, que o homem comum n�o v� em geral nas discuss�es acad�micas nada mais que tediosos e v�os lit�gios de pedantes.
 

O culto do "g�nio"

Para aqueles que se sentem oprimidos nesse ambiente, mas n�o desejam abandon�-lo, h� sempre o ref�gio do esteticismo, da ret�rica e da filosofice liter�ria, que s�o ali bem aceitos a t�tulo de complemento dial�tico ao ritualismo da racionalidade vigente. O que permite este fen�meno � que, perdendo a unidade de ci�ncia e consci�ncia que constitu�a a sua identidade espec�fica, a filosofia, ao mesmo tempo que copiava o modus operandi das ci�ncias especializadas, absorvia das artes e letras o modelo do "g�nio", compreendido como o indiv�duo cujo talento especializado pode compensar, pela singularidade de suas cria��es, os piores defeitos de car�ter, incluindo a inconsci�ncia moral e a falta de senso do real, que no contexto antigo e medieval o incapacitariam no ato para o exerc�cio da vida filos�fica: sem um rosto pr�prio, reduzido a um h�brido de literato e cientista, o novo profissional pode agora correr entre o templo das Letras e o das Ci�ncias, como um crente inseguro que busca, por via das d�vidas, a prote��o alternada de dois deuses. Deste modo, se sua filosofia se reduz a um caleidosc�pio de belas intui��es fragment�rias imposs�veis de reduzir a um todo l�gico e muito menos � coer�ncia de uma �tica pessoal, tanto mais valorizado ser� o pensador, porque ante a comunidade profissional ele simboliza a nostalgia da unidade perdida, da qual a confus�o mesma da sua mente �, por assim dizer, a imagem caricatural e inversa: incapaz de alcan�ar a s�ntese de ci�ncia e consci�ncia, ele neutraliza ambas na n�voa brilhante e multicor da "genialidade", em cuja contempla��o quase m�stica o estudante encontra, como num entorpecente, o al�vio fact�cio que o desviar� para sempre de toda tenta��o de buscar a unidade aut�ntica e, ap�s o mergulho curativo nas �guas lustrais do irracionalismo, o tornar� apto a reintegrar-se como inofensivo burocrata na rotina alienante da vida acad�mica.

Se, quanto mais poderoso se torna o establishment filos�fico, mais tendem a predominar nele as correntes de pensamento anti-espirituais, esquizofr�nicas e alienantes, isto se deve grande parte � din�mica mesma de um exerc�cio profissional que exige do praticante a ruptura entre sua faculdade discursiva, desenvolvida at� o paroxismo, e sua consci�ncia �ntima, que se cala ou se perde por lhe faltarem ali os mais elementares meios de express�o leg�tima. A inibi��o de dizer qualquer coisa que n�o tenha amplo respaldo na bibliografia existente, o temor de acreditar mais no que v� pessoalmente do que naquilo que afirma o discurso dominante, fazem com que o modo de pensar do pensador acad�mico se torne cada vez mais indireto e metaling��stico, at� perder toda refer�ncia ao mundo da experi�ncia comum e � pessoa concreta de quem fala. E se, at� certo ponto ao menos, Marx tinha raz�o ao dizer que o modo de exist�ncia social determina a forma da consci�ncia, o modo de exist�ncia da classe acad�mica acaba por se transpor numa caracter�stica Weltanschauung gremial, em que a realidade aparece diminu�da sub specie academiae e o ser humano reduzido a um fantoche parl� par le langage, exatamente como se cada membro da esp�cie homo sapiens fosse um acad�mico a defender numa assembl�ia cient�fica, como um papagaio erudito, opini�es ante as quais sua consci�ncia �ntima permanece neutra e indiferente, se n�o totalmente c�tica. A expropria��o da consci�ncia em troca do discurso autorizado culmina no instante em que o discurso, elaborado at� o requinte de provar a si mesmo que n�o pode ser ve�culo de nenhuma consci�ncia, ergue a inconsci�ncia falante ao n�vel de uma obriga��o cient�fica. E quando um dos autores de semelhante fa�anha intelectual, subido ao mais alto patamar da carreira, que � o estado de zumbi alucinado, decide tomar uma provid�ncia coerente e estoura os miolos, repentinamente a condi��o humana de seus devotos cultores, tanto tempo reprimida que j� nem mais lembra o que pudesse ter sido um dia o velho senso das propor��es, irrompe numa s�bita efus�o de sentimentalismo caricatural e hist�rico, proclamando, em todas as c�tedras, revistas cient�ficas e suplementos liter�rios dos jornais, que o falecido se matou porque era bom demais para este mundo.

A filosofia, enfim, foi deixando de ser uma busca da sabedoria, que envolvia o homem inteiro, corpo, alma e esp�rito, numa prepara��o para a posse das mais altas verdades, e se tornou uma mera habilidade especializada, como a de cantar, desenhar ou fazer rimas, completamente aut�noma em rela��o � personalidade moral e � forma completa da "alma". O fil�sofo tornou-se um "pensador" — um homem que tem o talento especial de produzir pensamentos interessantes. Como toda habilidade particular, essa pode ser cultivada como um territ�rio separado, perfeitamente compat�vel com todos os defeitos de personalidade, incluindo a repugn�ncia pela verdade ou mesmo a total incapacidade para captar as evid�ncias mais �bvias. Esta incapacidade, n�o raro, torna os pensamentos ainda mais interessantes, no sentido de ex�ticos e atraentes. Mas, mesmo quando n�o se chega a esse extremo, a mera insinceridade basta para conferir a muitos escritos filos�ficos aquela aura de ambig�idade e mist�rio que rodeia de um prest�gio m�gico as obras dos poetas. A produ��o de id�ias criativas tornou-se enfim uma esp�cie de "arte", com seu c�rculo de aficionados, seus subs�dios estatais, seu mercado e seu pante�o de artistas fascinantes — em nada se distinguindo do ambiente das artes pl�sticas ou da m�sica. E n�o espanta que, nesse ambiente de colorido mundanismo, o mal e a mentira acabem por prevalecer.
 

AP�NDICE
 

Mis�ria da filosofia nacional

Diante desse quadro, o leitor imaginar� talvez que nos pa�ses pobres, onde a filosofia universit�ria � incipiente e n�o alcan�ou um bom n�vel de organiza��o profissional, a voca��o filos�fica no sentido antigo, o amor � sabedoria, possa ter mais espa�o para se expandir, ainda que n�o profissionalmente, sem ter de passar pelo rolo compressor. Infelizmente, isso n�o se realiza, por tr�s motivos.

Primeiro. Quanto mais incipiente, mais a universidade estatal tende a ser ciumenta e monopol�stica: envolvida numa luta sem tr�guas pela manuten��o de seus benef�cios corporativos (sempre excessivos para quem os paga, mesquinhos para quem os recebe), ela tende a ver o pensador de fora do gr�mio como um intruso, um virtual inimigo da classe. Da� o culto fan�tico do "diploma", uma exig�ncia que em ambientes universit�rios mais desenvolvidos � muito mais branda e, nos casos de not�rio saber, inteiramente dispens�vel.

Segundo. A inexist�ncia mesma de uma profiss�o filos�fica organizada no padr�o moderno faz com que este padr�o se torne um ideal fervorosamente imitado. E esta, como toda imita��o cont�nua, cai no exagero caricatural: o molde � t�o valorizado que acaba por se tomar como a �nica encarna��o poss�vel da filosofia e por excluir do campo todas as express�es n�o-acad�micas do pensamento filos�fico que, nos pa�ses mais desenvolvidos, o academismo respeita e procura absorver. Nos ambientes letrados brasileiros, a palavra mesma "filosofia" j� n�o evoca um universo de temas, de problemas ou de atos intelectuais, mas a carreira funcional correspondente. Quando algu�m diz que se interessa por filosofia, n�o se entende que pensa em tais ou quais assuntos, nem que l� tais ou quais livros, mas que � ou pretende ser portador de um certificado, que ocupa ou pretende ocupar certo lugar na hierarquia funcional. � a completa coisifica��o burocr�tica da filosofia, agravada ainda pelo h�bito da "especializa��o", copiado das ci�ncias particulares (onde � requisito inteiramente leg�timo), o que leva a filosofia a rebaixar-se ao estatuto de mera "ci�ncia da filosofia", pois, por defini��o, o conhecimento "especializado" de uma filosofia consiste em exp�-la fielmente segundo os m�todos da hist�ria e da filologia, e n�o em filosofar pessoalmente sobre ela, criando uma outra filosofia que, logicamente, n�o poderia ser classificada sob a mesma especialidade (no sentido em que n�o � na condi��o de especialista, mas de fil�sofo, que Heidegger interpreta Nietzsche ou Sto. Tom�s comenta Arist�teles). Mas ao mesmo tempo esses costumes grotescos e aviltantes s�o, da parte do nosso mi�do establishment acad�mico, uma autodefesa compreens�vel: quanto mais insegura a consci�ncia, mais repressivo o superego.

Terceiro. Para que poderosas voca��es filos�ficas se desenvolvessem � margem do academismo nascente seria necess�rio existir uma forte presen�a do elemento filos�fico na cultura geral, na imprensa e no movimento livreiro, coisa que n�o existe. Se existisse, muitos homens cultos talvez pudessem retomar, em liga��o direta e passando por cima do cerco acad�mico, o contato pessoal com antigas tradi��es sapienciais da filosofia, e reenxert�-las no di�logo cultural corrente, o que viria a beneficiar, a longo prazo, a pr�pria cidadela acad�mica, fazendo circular dentro dela um pouco de ar puro. Mas essa condi��o n�o existe na nossa sociedade, e, exceto para o homem de g�nio que pode buscar a conex�o por conta pr�pria (� o caso de um M�rio Ferreira dos Santos, por exemplo), o acesso a que me referi est� bloqueado. Em resultado, o estudante, se da universidade recebe apenas a filosofia de tipo rolo compressor, n�o encontra, fora dela, sen�o minguadas oportunidades de adquirir conhecimento e desenvolver seus talentos; e, por falta de cultura, acaba por cair no mero diletantismo — dando assim involuntariamente um refor�o retroativo, falacioso mas veross�mil, ao preconceito do academismo local contra toda pretens�o de filosofar fora dele.

Mas o mais tristemente ir�nico de tudo � que, nesse ambiente filos�fico de Terceiro Mundo, o estudante que, n�o tendo alternativa, se amolde �s exig�ncias da filosofia acad�mica, acaba por n�o obter, em troca da expropria��o de sua consci�ncia, nem mesmo as compensa��es que sacrif�cio id�ntico lhe daria numa universidade da Europa ou dos Estados Unidos: perdendo sua alma, ele n�o ganha nem a oportunidade gratificante de dar uma contribui��o substancial � forma��o do consenso filos�fico internacional, nem a estabilidade financeira de um pr�spero cidad�o de classe m�dia, que a profiss�o universit�ria confere a seus praticantes na Fran�a ou nos Estados Unidos. Ao entrar na universidade, ele � um jo�o-ningu�m; ao sair, � um jo�o-ningu�m com diploma e sem alma. N�o admira que viceje nos seus bofes tanto rancor contra o Estado que lhe arrancou tanto em troca de t�o pouco. Nem que, incapaz de conscientizar sua situa��o pessoal exceto pelas vias de pensamento padronizadas que absorveu em sua forma��o acad�mica, o jovem bacharel em filosofia trate logo de despejar seu rancor em algum empreendimento desconstrucionista, em alguma apologia esteticista da pervers�o ou em alguma teoriza��o da viol�ncia revolucion�ria — os canais consagrados por onde a comunidade acad�mica escoa, numa linguagem cujo pedantismo a faz parecer educada, serena e superiormente cient�fica, os mais baixos sentimentos de uma classe m�dia frustrada e cheia de �dio.

 

17 de novembro de 1996.

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