EPICURO E MARX
� 16. Epicuro e Marx Epicuro inverte, como se viu no � 10, a rela��o l�gica entre a pr�tica e a teoria. Se normalmente a teoria � o fundamento l�gico da pr�tica e esta � a exemplifica��o daquela no campo dos fatos, no epicurismo a pr�tica � que produz artificialmente a condi��o psicol�gica que tornar� cr�vel a teoria, e o discurso te�rico n�o ser� nada mais do que o elemento discursivo da pr�tica, a tradu��o verbal da cren�a produzida pelo h�bito. A teoria epic�rea n�o descreve o mundo percebido, mas sua pr�tica altera, mediante exerc�cios, a percep��o do mundo, para que se torne semelhante � teoria. N�o se trata de compreender o mundo, mas de transform�-lo. O leitor deve ter reconhecido a senten�a anterior: � a 11� Tese sobre Feuerbach de Karl Marx. Tudo leva a crer que a conviv�ncia do jovem Marx com a filosofia de Epicuro mat�ria de sua tese de doc�ncia deixou no marxismo acabado marcas mais profundas do que os estudiosos geralmente sup�em e do que ao pr�prio Marx adulto interessou declarar. A simbiose marxista da teoria com a pr�tica n�o vem de Hegel, mas � uma heran�a epic�rea. Acontece, no entanto, que essa simbiose, abolindo a dist�ncia normal entre a esfera da a��o e a da especula��o, suprime, em Marx como em Epicuro, a diferen�a entre o efetivo e o poss�vel, e nos precipita numa crise alucinat�ria onde j� n�o h� lugar para o recuo teor�tico que fundamenta a no��o mesma de verdade objetiva1. O desejo, o �mpeto, a ambi��o da alma individual ou das massas revolucion�rias torna-se o fundamento �nico de uma cosmovis�o onde a teoria j� n�o serve sen�o para estimular retoricamente a a��o pr�tica ou para, uma vez realizada a a��o, legitimar como satisfat�rio o que quer que tenha dela resultado na pr�tica. Mesmo que a a��o produza efeitos totalmente diversos dos esperados, j� n�o haver� distanciamento cr�tico suficiente para julg�-los, e eles ser�o n�o somente aceitos, mas celebrados pela teoria como normais e desej�veis: a teoria n�o tem a� nenhum valor aut�nomo, est� reduzida ao papel de uma racionaliza��o a posteriori, de uma apologia do fato consumado. A capacidade das esquerdas mundiais para justificar em nome de uma utopia humanit�ria as piores atrocidades do regime comunista e, exterminado o comunismo na URSS, para continuar a pregar com a maior inoc�ncia os ideais socialistas como se n�o houvesse nenhuma rela��o intr�nseca entre eles e o que aconteceu no inferno sovi�tico , � uma heran�a m�rbida que, atrav�s de Marx, veio do epicurismo. N�o � de estranhar que a evolu��o de um s�culo do pensamento marxista tenha desembocado em Antonio Gramsci, o te�rico do "historicismo absoluto", que assume declaradamente aquilo que em Marx estava apenas insinuado e impl�cito: a aboli��o do conceito de verdade objetiva e a submiss�o de toda atividade cognitiva �s metas e crit�rios da praxis revolucion�ria; a absor��o da l�gica na ret�rica, da ci�ncia na propaganda ideol�gica2. Tamb�m � compreens�vel que, numa outra e paralela linha dessa evolu��o, que leva a Reich e a Marcuse, o desejo er�tico, e j� n�o a for�a das causas econ�micas objetivas, seja a mola mestra que move o progresso e dispara a revolu��o. Estes desenvolvimentos manifestam � plena luz do dia tend�ncias que em Marx j� estavam latentes como heran�as do seu epicurianismo de origem. O fato de que tenham ressurgido ao longo da evolu��o do marxismo mostra que Marx soube recalc�-las, mas n�o super�-las. Em v�o pensadores marxistas como Luk�cs ou Horkheimer, mais afinados com as tradi��es cl�ssicas do Ocidente e ansiosos de filiar Marx a elas, protestaram contra a invas�o do irracionalismo que, sobretudo a partir da d�cada de 60, terminou por contaminar toda a esquerda mundial: como dizia o dr. Freud, o passado rejeitado volta com redobrada for�a3. Marxismo e epicurismo parecem ir em dire��es opostas: este, fugindo do mundo, para fechar-se no jardim com a comunidade dos eleitos; aquele, para fora, para a a��o coletiva que vai transformar o mundo. Mas � uma diferen�a de escala antes que de natureza: nos dois casos, trata-se de envolver seres humanos numa praxis absorvente e hipn�tica, que os afastar� para sempre da tenta��o da objetividade, n�o deixando margem para o recuo teor�tico e aprisionando todas as suas energias intelectuais num circuito fechado de autopersuas�o ret�rica. Trata-se de neutralizar a intelig�ncia humana, colocando-a no encal�o de metas ut�picas que, pela dial�tica infernal que transfigura cada derrota em sinal da vit�ria pr�xima, a absorver�o tanto mais completamente quanto mais os resultados obtidos no esfor�o forem cair longe das finalidades sonhadas. � somente isto que explica o fen�meno de milhares de intelectuais se recusarem, durante quase um s�culo, a enxergar os males do comunismo, ou, depois da queda do Muro de Berlim, a reconhecer qualquer conex�o entre esses males e o ideal socialista. N�o � realmente o efeito de um singular escotoma que a intelectualidade esquerdista veja em todo movimento de direita, mesmo t�mido, a marca de um ressurgimento nazifascista, e de outro lado possa crer que o ideal socialista emergiu do Gulag isento de toda m�cula? N�o � uma estranha morbidade que a ideologia que reduz a a��o dos indiv�duos a mera express�o das correntes ideol�gicas profundas explique as sessenta milh�es de v�timas de St�lin como resultado da maldade fortuita de um s� homem, sem qualquer raiz na ideologia por ele professada? Que os defensores intransigentes do conceito da sociedade como um todo substancial, como bloco org�nico onde se fundem inseparadamente ideologia e pr�tica, expliquem os crimes do governo sovi�tico como desvios acidentais totalmente alheios � ideologia marxista? N�o � mesmo demente a obstina��o de manter a imagem de Karl Marx ou mesmo a de L�nin limpa de todo cont�gio com os crimes da ditadura sovi�tica, quando nem mesmo Jesus Cristo deixou de ser responsabilizado pelas crueldades da Inquisi��o? N�o � estranho que ap�s tudo o que se revelou sobre a tirania comunista o socialismo ainda continue a ser um ideal respeit�vel, quando crimes de muito menor escala bastaram para manchar de sangue para sempre a imagem do fascismo italiano, do franquismo ou das ditaduras latino-americanas? N�o � enfim uma anomalia intelectual que aquela filosofia que mais enfatizou o arraigamento hist�rico-social dos conceitos abstratos condenando como "metaf�sica" toda admiss�o de ess�ncias a-hist�ricas ou supra-hist�ricas apresente agora o socialismo como ess�ncia pura incontaminada por um s�culo de experi�ncia comunista? Como explicar a cegueira obstinada de fil�sofos, de intelectuais, de artistas, entre os mais not�veis do s�culo, se n�o pela formid�vel pot�ncia ilusionista inerente � raiz mesma do marxismo, pela sua capacidade quase diab�lica de transfigurar o quadro das apar�ncias e levar as pessoas a verem as coisas diferentes do que s�o? Que Marx tivesse, pessoalmente, um tremendo senso do teatro, do fingimento, da prestidigita��o, � coisa que os bi�grafos j� estabeleceram com certeza suficiente4. Mas isto n�o bastaria para dar � sua filosofia tamanho poder de ludibriar as consci�ncias. Quando, no entanto, notamos que o primeiro interesse acad�mico do jovem Marx foi devotado ao estudo do pr�ncipe dos ilusionistas filos�ficos, e em seguida constatamos ser id�ntica, em Epicuro e nele, a mix�rdia proposital e alucin�gena da teoria na pr�tica e da pr�tica na teoria, ent�o compreendemos a virul�ncia inesgot�vel da heran�a epicurista, capaz de atravessar os mil�nios e ressurgir a cada novo empenho c�clico de instaurar em alguma parte do mundo o reinado da impostura.
� 17. Coment�rios � 11� "Tese sobre Feuerbach"
Antes que te
derribe, olmo del Duero,
ANTONIO MACHADO, "A un olmo seco" Posso explicar melhor e dar um fundamento mais "t�cnico" ao que foi dito no par�grafo anterior. O leitor que preferir saltar direto para o � 18 n�o perder� o fio do argumento, apenas se privar� de uma demonstra��o mais rigorosa e mais entediante. "At� agora diz a 11� Tese5 os fil�sofos se limitaram a interpretar o mundo. Cabe-lhes agora transform�-lo." 1. A quem se dirige a convoca��o? Se Marx se reporta, nesta tese, aos conceitos tradicionais de theoria e de praxis, temos de admitir que de fato os fil�sofos, desde sempre, se ocuparam de interpretar o mundo, de fazer teoria, porque julgavam que esta era a sua tarefa espec�fica, que os distinguia dos outros homens, ocupados por seu turno com a praxis. Os fil�sofos interpretavam o mundo, enquanto os demais homens o transformavam. A maioria dos homens esteve sempre envolvida com a praxis, e desinteressada da theoria, da contempla��o da verdade. Ao adotarem a atitude inversa � da maioria, os fil�sofos faziam um contrapeso dial�tico � praxis: a vida contemplativa opunha-se � vida ativa. Ora, se os homens n�o-fil�sofos estiveram desde sempre ocupados em transformar o mundo enquanto o fil�sofo o contemplava e interpretava, que sentido teria convoc�-los a uma praxis na qual j� est�o envolvidos por h�bito imemorial, e da qual jamais pensaram em sair? N�o pode ser este o sentido da tese de Marx. Sua convoca��o n�o se dirige aos homens em geral, tomados indistintamente, nem muito menos aos homens da praxis, mas especificamente aos fil�sofos. S�o eles que estiveram ocupados somente em interpretar o mundo. Portanto, � a eles que cabe convocar a uma mudan�a de atitude. A 11� Tese sobre Feuerbach prop�e, essencialmente, uma mudan�a b�sica na atividade do fil�sofo enquanto tal. N�o se trata de inaugurar s� uma nova praxis, mas um novo tipo de theoria, que por sua vez consistir� em praxis. 2. Para saber em que consiste essa mudan�a, precisamos entender qual a atitude que a antecedeu. Em que consiste a atitude interpretativa, que Marx op�e � atitude transformante? Sendo theoria e praxis conceitos cl�ssicos da filosofia grega, � a esta �ltima que devemos reportar-nos. (� verdade que o termo praxis tem em Marx, ou pretende ter, uma acep��o pr�pria e diferente, mas isto n�o vem ao caso, pois, se os fil�sofos antigos a que Marx visa faziam theoria em oposi��o � praxis, n�o podemos supor que tivessem em mente o sentido marxista da palavra praxis, e sim o sentido grego). Na filosofia grega, a palavra theoria tinha uma acep��o precisa. Era correlata das no��es de logos ("raz�o" ou "linguagem"), de eidos ("id�ia" ou "ess�ncia"), de �n ("ser", "ente") e de aletheia ("pat�ncia", "desvelamento", revela��o da verdade oculta). O homem teor�tico, o fil�sofo, n�o se ocupava genericamente de contemplar, de olhar, num sentido em que os demais homens tamb�m podiam contemplar e olhar. Por exemplo, todos os homens contemplavam os espet�culos de teatro, a beleza dos seres humanos e da paisagem etc. A contempla��o do homem comum podia ser l�dica, est�tica, utilit�ria ou o que quer que fosse. A do fil�sofo, n�o. Era um tipo muito determinado de contempla��o, com um motivo espec�fico e um objetivo espec�fico, que faziam dela, propriamente, uma contempla��o filos�fica e n�o outra qualquer. O fil�sofo contemplava as coisas para captar a sua ess�ncia (eidos), patenteando (aletheia) o seu verdadeiro ser (�n); em seguida o fil�sofo dizia (logos) o que era essa coisa, patenteando em palavras (aletheia) o verdadeiro ser (�n) que estava oculto. Dito de outro modo, as coisas, os fen�menos, eram para o fil�sofo signos, que ele decifrava em busca do significado ou ess�ncia. Entre o signo e o significado, a chave interpretativa era a raz�o ou logos. Pela raz�o, o homem fil�sofo saltava de um plano para o outro: do plano da fenomenalidade inst�vel, movedi�a, enganosa, para o plano das ess�ncias, do ser verdadeiro. Este plano era considerado superior, por abranger e ultrapassar o mundo dos fen�menos (ele cont�m todos os fen�menos manifestos, e mais um sem-n�mero de ess�ncias n�o manifestadas ou possibilidades), e tamb�m por ser est�vel, imut�vel, eterno. Esta postura se tornou mais clara e autoconsciente a partir do platonismo, por�m j� era a dos ele�ticos. Em suma, ela se baseia na cren�a de que todos fatos e todos os entes s�o fen�menos "aparecimentos" de alguma coisa: s�o exterioriza��es ou exemplifica��es das ess�ncias ou possibilidades, contidas eternamente na Intelig�ncia Divina. O fil�sofo grego contemplava as coisas, portanto, sub specie �ternitatis, isto �, na categoria da eternidade, � luz da eternidade; buscava nelas a sua significa��o eterna, superior � apar�ncia fenom�nica e transit�ria. Esta contempla��o conferia a essas coisas, portanto, uma dignidade e uma realidade superiores, uma consist�ncia ontol�gica superior. Pouco importa, para os fins desta an�lise, a diferen�a entre platonismo e aristotelismo. Para Plat�o, as ess�ncias constitu�am um mundo separado, transcendente; para Arist�teles, o n�cleo intelig�vel era imanente ao mundo sens�vel; mas em ambos os casos tratava-se de passar da fenomenalidade imediata a um estrato mais profundo e permanente. A interpreta��o (hermeneia) das apar�ncias consistia nessa subida de n�vel ontol�gico, desde o ente fenom�nico at� o ser essencial. O termo hermeneia deriva do nome do deus Hermes, ou Merc�rio, o deus psicopompo, isto �, "guia das almas", encarregado de lev�-las na escalada e descida atrav�s dos mundos ou planos de realidade, do sens�vel ao intelig�vel, do particular, transit�rio e aparente ao universal e est�vel. Nisto consistia, basicamente, a postura interpretativa do fil�sofo grego. 3. Qual a diferen�a essencial entre a atitude contemplativa ou interpretativa e a atitude transformante, isto �, entre a theoria e a praxis? 3.1. A theoria, ao elevar o objeto at� o n�vel da sua id�ia, ess�ncia ou arqu�tipo, capta o esquema de possibilidades do qual esse objeto � a manifesta��o particular e concreta. Por exemplo, o arqu�tipo de "cavalo", a possibilidade "cavalo", pode manifestar-se em cavalos pretos ou malhados, �rabes, percher�es ou mangalargas, de sela ou de trabalho etc. Pode manifestar-se em prosaicos cavalos de carro�as ou em cavalos c�lebres e quase personalizados como o cavalo de Alexandre . Pode manifestar-se em seres m�ticos que "participam da cavalidade", como o p�gaso ou o unic�rnio, cada qual, por sua vez, contendo um feixe de significa��es e inten��es simb�licas. Enfim, a raz�o, ao investigar o ser do objeto, eleva este �ltimo at� o seu n�cleo superior de possibilidades, resgatando-o da sua acidentalidade emp�rica e restituindo, por assim dizer, seu sentido "eterno". A conseq��ncia "pr�tica" disto � portentosa. Ao conhecer um arqu�tipo, sei n�o apenas o que a coisa � atualmente e empiricamente, mas tudo o que ela poderia ser, toda a lat�ncia de possibilidades que ela pode manifestar e que se insinua por tr�s da sua manifesta��o singular, localizada no espa�o e no tempo. A praxis, ao contr�rio, transforma a coisa, isto �, atualiza uma dessas possibilidades, excluindo imediatamente todas as demais. Por exemplo, uma �rvore. Se investigo o objeto "�rvore" para captar o seu arqu�tipo, tomo consci�ncia do que ela �, do que poderia ser, do que ela pode significar para mim, para outros, em outros planos de realidade etc. Por�m, se a transformo em cadeira, ela j� n�o pode transformar-se em mesa ou estante, e muito menos em �rvore. De cadeira, ela s� pode agora transformar-se em cadeira velha, e depois em lixo. 3.2. Para o fil�sofo, portanto, o fen�meno, a apar�ncia sens�vel imediata � sobretudo um signo ou s�mbolo de um ser. Para o homem da praxis, a apar�ncia � sempre mat�ria-prima das transforma��es desejadas. A investiga��o te�rica insere o ser no corpo da possibilidade que o cont�m, e o explica e integra no sentido total da realidade. A praxis, ao contr�rio, limita suas possibilidades, realizando uma delas, sem via de retorno. Para a theoria, o ente � sobretudo a sua forma, no sentido aristot�lico, isto �, aquilo que faz com que ele seja o que �; para a praxis, o ente � sobretudo mat�ria, isto �, aquilo que faz com que ele possa tornar-se outra coisa que n�o aquilo que �. N�o se deve confundir esta oposi��o com a do "est�tico" e a do "din�mico", porque o dinamismo interno faz parte da forma (por exemplo, a forma da semente � a planta completa em que ela tem o dom de se transformar). Mais certo � dizer que a theoria se interessa pelo que um ente � em si e por si, e a praxis se interessa pelo que ele n�o �, pelo ser secund�rio, �s vezes pelo falso ser ou arremedo de ser que podemos fabricar com ele. Era neste sentido que as escrituras hindus negavam que a a��o pudesse trazer conhecimento, de qualquer esp�cie que fosse. A a��o produz apenas transforma��o, fluxo de impress�es, ilus�o, da qual sa�mos apenas pelo recuo reflexivo posterior, pela "nega��o" teor�tica e cr�tica da a��o consumada: o esp�rito filos�fico, pot�ncia latente no homo sapiens, s� se atualiza como reflex�o sobre as desilus�es do homo faber6. 3.3. Se a praxis requer alguma teoria, esta teoria j� n�o versar� sobre a natureza do ser, n�o tentar� investigar o que o ser � no corpo da realidade total, mas apenas aquilo em que ele pode se transformar no instante seguinte, n�o por seu dinamismo pr�prio e interno, mas por for�a da interven��o humana. J� n�o ser� uma teoria do objeto, mas uma teoria da a��o que ele pode sofrer. N�o � uma teoria do ser, mas uma teoria da praxis. Como a praxis � sempre a��o humana, ent�o todo objeto ser� sempre e unicamente enfocado sob a categoria da paix�o, isto �, das a��es transformadoras que pode sofrer. J� n�o interessa o que � o cavalo ou a �rvore no sistema total da realidade, mas sim o que, dentro do c�rculo de meus interesses imediatos, posso fazer com o cavalo ou com a �rvore, independentemente do que eles sejam. Por exemplo, posso queimar a �rvore ou comer a carne do cavalo: se a teoria respeitava sobretudo a integridade ontol�gica e mesmo f�sica do objeto, a praxis come�a por neg�-la, isto �, por n�o admitir que o objeto seja o que � e por exigir que ele se transforme em outra coisa: n�o interpreta, mas transforma. 3.4. N�o se trata aqui, evidentemente, de condenar a praxis em nome de uma ut�pica vida contemplativa, mas somente de restaurar o senso de uma hierarquia de valores que parece ser inerente � estrutura do indiv�duo humano s�o. A pr�tica, que transforma, se dirige essencialmente aos meios: como toda transforma��o visa a um resultado ou fim, o objeto sobre o qual incide � sempre e necessariamente um meio, apenas um meio. � um meio ou instrumento a terra que o homem lavra, � um meio ou instrumento o carneiro que ele engorda e mata, � um meio ou instrumento a �rvore que ele abate. � meio ou instrumento o trabalho, como tamb�m o capital. Aquilo que � meio ou instrumento nada importa nem vale por si, mas por alguma outra coisa: o meio ou instrumento � um intermedi�rio, uma transi��o ou passagem, aquilo que num certo ponto do caminho ser� abandonado para ceder lugar aos fins. A tend�ncia universal do homem � economia de esfor�o mostra a sujei��o dos meios aos fins. Inversamente, aquilo que � finalidade ou valor em si n�o � objeto de praxis transformadora, mas de contempla��o, de amor. Como dizia Miguel de Unamuno, "o bonde � �til porque me serve para levar-me � casa da minha amada; mas esta para que me serve?". Posso, � claro, rebaix�-la a um meio ou instrumento do meu prazer, mas neste caso j� n�o tenho amor por ela, e sim pelo prazer como tal7. O objeto amado, se o � de verdade, n�o � meio, mas fim. N�o desejamos mud�-lo, transform�-lo, utiliz�-lo para alguma outra coisa, e sim desfrutar de sua presen�a sem alter�-la, sem mud�-la no que quer que seja8. Ao contr�rio, ao contemplar e amar somos n�s que nos transformamos: "Transforma-se o amador na coisa amada." H�, portanto, aspectos da realidade que s� podem ser conhecidos pela praxis, outros que s� o podem pela theoria. Mas a praxis procede necessariamente pela nega��o do objeto, pela sua redu��o a meio e instrumento, e a theoria pela afirma��o da sua plenitude e do seu valor como fim. � evidente, ent�o, que: 3.4.1. H� uma diferente dosagem na combina��o do te�rico e do pr�tico para o conhecimento dos v�rios tipos de seres: aquilo que para mim � meio e instrumento, s� posso conhec�-lo ao us�-lo; aquilo que para mim � finalidade e valor em si, conhe�o-o na medida em que o contemplo, em que o amo, em que defendo a sua integridade ontol�gica contra qualquer tentativa de transform�-lo em outra coisa. Van Gogh conheceu pinc�is e tintas na medida em que os usou e, usando, gastou. Mas conhe�o os quadros de Van Gogh na medida em que sejam conservados intactos para minha contempla��o. 3.4.2. N�o existe, no mundo dos seres f�sicos, nem praxis pura nem pura contempla��o. H� apenas dosagens, segundo a escalaridade do valor dos fins e da oportunidade dos meios. S� a finalidade suprema pode ser objeto de pura contempla��o. Somente o objeto totalmente desprez�vel, sem consist�ncia ontol�gica pr�pria nem qualquer valor em si pode ser alvo de pura praxis. Ambos esses limites s�o metaf�sicos, e jamais alcan�ados no mundo da experi�ncia real. 3.4.3. No entanto, h� uma n�tida distin��o hier�rquica: a contempla��o, como objetivo e finalidade, tem primazia sobre a pr�tica, que no fim das contas n�o serve sen�o para afastar os obst�culos que nos separam do gozo contemplativo. O homem n�o transforma o que lhe agrada, mas o que lhe desagrada: ele entrega-se � contempla��o por gosto, � pr�tica por necessidade (sem contar, � claro, que na pr�tica mesma h� um elemento l�dico e contemplativo, que torna o trabalho agrad�vel em si e lhe d� um valor independente do seu proveito pr�tico). 3.4.4. De tudo isso, conclui-se que estatuir a pr�tica como fundamento e valor supremo do conhecimento � instaurar o reinado dos meios, desprezando os fins; � inverter o sentido de toda a��o humana e negar a consist�ncia ontol�gica da realidade. � encarar o real no seu todo nele inclu�dos o homem e sua Hist�ria, bem como o conjunto das a��es individuais praticadas pelos seres humanos como um vasto instrumento sem qualquer finalidade. � transformar o universo numa imensa m�quina-de-desentortar-bananas. Eis a�, j� em Marx, a raiz da nietzscheiza��o da esquerda, em que muitos te�ricos, escandalizados, ver�o uma trai��o ao marxismo. A filosofia da praxis cont�m em seu bojo, oculta mas nem por isto menos potente, a nega��o do sentido da realidade, a apologia do absurdo. � �bvio que se trata de uma heran�a epicurista inconsciente, que veio a ser resgatada quando, ap�s a crise mundial do marxismo, a intelectualidade de esquerda se entregou maci�amente a uma esp�cie de pseudo-heroismo do nonsense, orgulhando-se de continuar a defender ideais sociais que, num mundo sem sentido, s� podem consistir numa afirma��o nietzscheana da vontade de poder, num clinamen gratuito e arbitr�rio que o homem, por pedantismo ou desenfado, op�e ao arbitr�rio e gratuito clinamen dos �tomos9. O materialista dur�o pretende ser um Clint Eastwood da filosofia, imp�vido no alto da sela, olhando com a maior indiferen�a os movimentos rand�micos dos �tomos na plan�cie e desprezando o choro dos fracotes que necessitam de um sentido para a vida. O cavaleiro solit�rio no deserto do absurdo sintetiza Marx, Nietzsche e Epicuro. 3.5. H� um curioso paralelismo entre as no��es de objeto-da-teoria e objeto-da-pr�xis, por um lado, e, por outro, valor-de-uso e valor-de-troca. O valor de uso �, de certo modo, uma propriedade, uma qualidade qualquer inerente ao objeto, faz parte da sua consist�ncia ontol�gica; ao passo que o valor de troca � acidental, como o afirma o pr�prio Marx: depende de circunst�ncias hist�ricas que nada t�m a ver com a natureza do objeto. Uma das censuras morais que o marxismo dirige ao capitalismo � que nele o valor de troca acaba por devorar o valor de uso at� faz�-lo desaparecer, at� fazer com que todos os objetos j� n�o existam sen�o como "mercadorias", segundo a boutade c�lebre de Bertolt Brecht: "N�o sei o que �. S� sei quanto custa. " � o mesmo que dizer que o capitalismo absorve a categoria da subst�ncia na categoria da paix�o. Se o capitalismo faz realmente isto ou se se trata apenas de uma figura de ret�rica, de uma hip�rbole, � algo que cabe investigar. Mas que na filosofia de Karl Marx essa invers�o ocorre, � coisa �bvia. S� neste caso a censura lan�ada por Marx ao capitalismo perde valor objetivo, reduzindo-se a mera proje��o: Marx censura no capitalismo um defeito que n�o est� necessariamente no capitalismo, mas que est� nos esquemas mentais subconscientes ou inconscientes do pr�prio Karl Marx. 3.6. Sendo teoria da a��o, e n�o do objeto, a praxis n�o reconhecer�, no objeto, outro aspecto sen�o o da sua transformabilidade imediata. Sem saber o que � �rvore, posso no entanto utilizar a madeira para fazer uma mesa ou estante. A praxis, enfim, recusar� ao mundo, aos fen�menos, uma consist�ncia ontol�gica pr�pria, conhec�vel pelo homem: ela fluidificar� todas as ess�ncias individuais em mat�ria-prima da praxis e resultar�, enfim, num novo e mais radical tipo de idealismo subjetivo: o mundo objetivo nada � sen�o o cen�rio da praxis. A teoria nada dir� sobre os objetos tais e quais s�o, mas apenas tais e quais podem vir a ser sob a a��o do martelo e da forja. Seria interessante averiguar como � poss�vel conciliar isto com o alegado "materialismo" marxista; pois o marxismo se revela antes um idealismo subjetivista, no sentido estrito e quase fichteano, com a �nica diferen�a de que tem como sujeito n�o o indiv�duo, mas a humanidade hist�rica, diante de cuja praxis o universo natural a "mat�ria" perde toda substancialidade para se reduzir a mera mat�ria-prima da a��o humana, rebaixando-se a natureza ao estatuto de ancilla industriae. � este seu car�ter de idealismo subjetivista coletivo que d� ao marxismo o seu tremendo poder ilusionista que embriaga e perverte, e da qual mesmo homens de elevada intelig�ncia �s vezes se deixam contaminar. Quando, por�m, considero como � estreita a faixa do universo material alcan�ada pela a��o humana (apenas a superf�cie da Terra, e mesmo assim n�o inteira), e ilimitada a extens�o de mundos celestes que n�o podemos transformar e s� podemos contemplar, ent�o pergunto se a teoria da praxis n�o � uma monstruosa amplia��o universalizante de um fen�meno local e terrestre coletivamente subjetivo , e se ante a imensid�o do cosmos a atitude "te�rica" n�o � a mais sensata. Da teoria da praxis prov�m ainda a id�ia hoje quase um dogma de que a ci�ncia surge a posteriori de uma racionaliza��o da t�cnica, isto �, da a��o: o homem n�o cria a ci�ncia mediante a contempla��o, mas mediante a manipula��o dos objetos e sua transforma��o em outra coisa. Restaria ent�o explicar como, em quase todas as civiliza��es, uma das ci�ncias que primeiro se desenvolve e alcan�a rapidamente a perfei��o � sempre justamente a astronomia, cujos objetos est�o a uma dist�ncia demasiado grande para poderem ser "transformados", e que por isto o homem pode somente contemplar. (Um praticista fan�tico poderia objetar que a astronomia se desenvolveu com fins de navega��o, mas � bobagem pura, porque uma astronomia requintada j� se encontra entre povos que de navegantes n�o tinham nada, como por exemplo os maias.) Esta prioridade cronol�gica e estrutural da astronomia � ressaltada por Plat�o10, que v� a explica��o para a origem de todas as ci�ncias na contempla��o da regularidade e racionalidade dos movimentos dos astros. A explica��o marxista, por seu lado, s� se mant�m de p� mediante uma brutal falsifica��o da ordem cronol�gica. Para que ela adquirisse alguma verossimilhan�a aos olhos dos homens foi preciso que primeiro a sociedade burguesa reduzisse a serva da t�cnica e da utilidade pr�tica uma atividade intelectual na qual por mil�nios seus praticantes tinham visto uma finalidade em si mesma. A interpreta��o praticista da origem e significado da ci�ncia � uma grosseira proje��o que o burgu�s faz dos seus pr�prios crit�rios e valores sobre a mentalidade das �pocas anteriores, que para ele se tornaram incompreens�veis11.
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