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Leituras recomendadas - 10

 

Alain Peyrefitte e a sociedade de confian�a

J. O. DE MEIRA PENNA

O Estado de S. Paulo, Domingo, 19 de dezembro de 1999

 

A morte de amigos e pessoas ilustres � uma fatalidade com a qual jamais nos reconciliamos. Por mais que saibamos ser parte inevit�vel da condi��o humana, o sentimento de revolta que nos atinge � tanto mais pronunciado quanto mais a essa pessoa estamos presos por la�os de afeto e admira��o. Foi assim que reagi � not�cia do falecimento de Alain Peyrefitte, com o qual havia marcado um encontro, no in�cio do m�s passado, para comunicar-lhe os esfor�os do Instituto Liberal do Rio de Janeiro no sentido de publicar um de seus livros. Homem extremamente discreto, at� o �ltimo momento Peyreffite escondeu a mol�stia que o consumia. Disseram-me que na antev�spera de seu falecimento, ainda foi entregar ao editor as provas finais de sua �ltima obra, o terceiro volume de C'�tait De Gaulle.

Escritor, pol�tico ativo e te�rico, membro do Institut e da Academia Francesa, senador, oito vezes ministro, maire da cidade medieval de Provins, Peyrefitte era uma combina��o excepcional daquele ideal plat�nico, t�o freq�entemente frustrado, de fil�sofo e governante ao mesmo tempo. Julgo que, como ami�de ocorre, acabou preferindo as letras ao exerc�cio do poder. Em sua enormemente prol�fica atividade como escritor, dedicou-se a tr�s temas favoritos, com um quarto ocasional.

Foi em primeiro lugar o cronista de De Gaulle e alguns de seus contempor�neos o compararam a outros, como Commines, Saint Simon e Las Cases, os de Lu�s XI, Lu�s XIV e Napole�o. No terceiro volume, por falar nisso, esperemos que fa�a refer�ncia � viagem do general � Am�rica do Sul em 1966 em que, presumivelmente, encontraremos observa��es sobre nosso pa�s. Como historiador de um dos per�odos mais importantes da hist�ria moderna da Fran�a (e da Europa), Peyrefitte tem seu nome j� consagrado como int�rprete do renascimento de sua p�tria ap�s o colapso que a afetou na primeira metade do s�culo. Inicialmente diplomata, formado na famosa ENA, a escola superior que prepara a elite da administra��o francesa, e havendo alcan�ado o grau de ministro plenipotenci�rio, serviu em Bonn, na Crac�via e na Confer�ncia de Bruxelas ap�s o que, em 1958, entrou para a pol�tica, sendo sucessivamente reeleito deputado at� tornar-se senador em 1995.

Como um dos mais fi�is gaullistas, foi ministro da Informa��o e ministro da Ci�ncia e Tecnologia At�mica (1966/67), em cuja capacidade contribuiu para a entrada da Fran�a no clube fechado das pot�ncias nucleares. Como ministro da Educa��o, colocou-se no centro do chienlit estudantil de maio de 1968, que conseguiu conter sem viol�ncia.

Foi como ministro da Justi�a (Garde des Sceaux) que Peyrefitte visitou o Brasil, em outubro de 1978, com o presidente Giscard d'Estaing, quando tive a honra de conhec�-lo, interessado como estava em um de seus primeiros e mais importantes livros, Le Mal Fran�ais, publicado dois anos antes. Traduzido para o ingl�s, e para o espanhol e italiano com o t�tulo O Mal Latino, tenho tentado em v�o interessar editoras brasileiras na soberba an�lise cr�tica empreendida por Peyrefitte, j� agora como soci�logo, dos fundamentos religiosos, culturais e morais dos males que t�m prejudicado o desenvolvimento e a moderniza��o de toda a �rea latina.

Tocqueville e Weber - Revela-se a� fiel disc�pulo de Tocqueville e Weber. Responsabiliza inclusive a contra-reforma, como fazemos n�s, liberais brasileiros, e a tradi��o do autoritarismo absolutista pelas mazelas que embara�am, sen�o impedem, nossa emerg�ncia como democracias liberais, abertas ao mercado e sobrepujando o ran�o patrimonialista de nossa estrutura social. Creio que em nenhuma outra obra de sociologia as origens de nossos v�cios coletivos foram t�o objetiva e sabiamente perscrutados em suas profundas ra�zes culturais ou psicossociais. Talvez seja o vezo weberiano da cr�tica ao romanismo centralizador e interventor de nossa estrutura s�cio-pol�tica o motivo das suspeitas de que alimentasse convic��es huguenotes.

Peyrefitte, infelizmente, n�o estendeu suas pesquisas sociol�gicas � Am�rica Latina e, particularmente ao Brasil como eu esperava, ap�s a segunda visita que realizou a nosso pa�s, em 1987, a convite do Estado e da Associa��o Comercial de S. Paulo. Nessa ocasi�o lhe servi de int�rprete, em confer�ncia pronunciada na Avenida Paulista, e de cicerone no Rio e Bras�lia. Estava, na ocasi�o, acompanhado do filho mais mo�o, Benoit. Ao inv�s, o ilustre acad�mico preferiu desviar sua aten��o para um outro tema que desde ent�o o fascinou.

Paix�o de aprender - Sofrendo, como notou o jornalista e autor liberal Guy Sorman, da "paix�o de aprender", Peyrefitte publicou uma s�rie de obras sobre a China, que visitou mais de uma d�zia de vezes. Talvez tenha almejado realizar para os chineses o mesmo que Tocqueville com sua De la D�mocratie en Am�rique. Em 1973, parafraseando uma frase c�lebre de Napole�o publicou Quand la Chine s_�veillera... le Monde Tremblera. Esse livro foi seguido de Chine Immuable, L_Empire Immobile (1989), La Trag�die Chinoise (ap�s o epis�dio do massacre de estudantes na Pra�a da Paz Celestial) e de um pequeno ensaio, com fotografias, terminando com La Chine s_Est �veill�e (1996), ocasi�o em que manteve uma longa entrevista com o atual presidente chin�s Jian Zemin.

Em todos esses ensaios, julgo tenha o autor compensado seu deslumbramento com o Imp�rio do Meio (Djung Gu�), gra�as a uma cr�tica objetiva da complexa problem�tica levantada pela necessidade da China se abrir ao mundo global, enquanto procura preservar sua identidade confuciana e a dif�cil unidade do povo de Han, de mais de 1 bilh�o de pessoas.

Teimosia oriental - O Imp�rio Im�vel foi publicado em portugu�s em 1997 pela Casa Jorge Editorial do Rio. Acompanhado de mais tr�s volumes complementares, relata a embaixada chefiada em 1792/94 por lorde Macartney, na primeira e frustrada tentativa dos ingleses de provocarem a abertura do imenso imp�rio, ent�o governado por seu �ltimo grande imperador, Kien Long. A China obstinava-se na arrog�ncia de ser a pot�ncia mundial hegem�nica, postura estimulada pela desconfian�a da classe dominante imperial mandch�. Os volumes anexos cobrem uma enorme documenta��o relativa �s rea��es dos jesu�tas de Pequim, dos ingleses e dos pr�prios chineses �quela miss�o diplom�tica sui-generis - que demorou dois anos e comportou o envio de uma esquadra e 2.000 homens de comitiva. Macartney n�o p�de contornar, contudo, a teimosa insist�ncia dos mandarins no sentido de lhe exigir o humilhante kowtow, as nove prosterna��es diante do Filho do C�u, obrigat�rias para os representantes dos vassalos.

Surpresa - Peyrefitte manifestou sua surpresa quando descobriu que eu conhecia a extrema pertin�ncia desse epis�dio, no relacionamento entre o Ocidente e �sia. Expliquei-lhe que minha carreira se iniciou na China (1940/42 e 1947/49) e que, durante anos, estudei sua hist�ria e cultura. O que destaca a tese central da obra � o contraste entre a inflex�vel imobilidade e introvers�o aut�rquica dos chins, postergando durante dois s�culos a abertura do Imp�rio Central, at� o esfor�o de moderniza��o encetado por Deng Xiaoping - e a flexibilidade com que, em meados do s�culo 19, os japoneses se adaptaram � inevit�vel globaliza��o. Se o Jap�o � hoje a segunda pot�ncia econ�mica do mundo enquanto s� agora "a China acorda para fazer tremer o mundo", a origem do descompasso se coloca nas perip�cias dessa miss�o diplom�tica.

Criminalidade - O quarto tema que interessou o eminente escritor franc�s foi o problema da Justi�a e da criminalidade no mundo moderno, fruto de sua experi�ncia como ministro da Justi�a. Les Chevaux du Lac Ladoga - la Justice entre les Extr�mes apareceu em 1982 e lhe custou caro: quase foi morto por uma bomba terrorista que explodiu na frente de sua resid�ncia, em Provins, sacrificando seu motorista. Peyrefitte defende uma legisla��o mais rigorosa contra bandidos, assassinos e terroristas - antecipando a id�ia central que estamos emergindo da Idade das Guerras para entrar na Idade do Crime.

Mas retornemos agora ao tema principal das preocupa��es de Peyrefitte, expresso em escritos que v�o desde 1947, Le Sentiment de Confiance, ao Du Miracle en �conomie e, finalmente, a La Soci�t� de Confiance, de 1995. Com tradu��o patrocinada pelo Instituto Liberal, essa obra ser� brevemente publicada pela Editora Topbooks, sob o comando esclarecido e corajoso de Jos� M�rio Pereira e com tradu��o primorosa de Cylene Bittencourt.

Comentemos a quest�o levantada por Peyrefitte. Num artigo de 2 de mar�o de 1997, Roberto Campos se pergunta por que, apesar das cerebriza��es de economistas e soci�logos, o desenvolvimento econ�mico continua a ser essencialmente um mist�rio. Campos oferece como exemplos de problemas n�o esclarecidos o despertar da China de um sono de 500 anos, o "milagre brasileiro" da d�cada dos 70 que desembocou na "d�cada perdida" dos 80, e os "domin�s" asi�ticos que se tornaram "d�namos".

A pergunta levantada � daquelas a que in�meros pesquisadores t�m tentado responder desde que, em 1776, Adam Smith pesquisou As Causas da Riqueza das Na��es, ora salientando o ambiente cultural; ora favorecendo o tipo de estrutura institucional no mercado aberto; ora apontando para a iniciativa de governantes excepcionais que, convencidos dos m�ritos superiores da receita do livre c�mbio sobre o planejamento socialista centralizador e uma pertinaz tradi��o patrimonialista, tomaram a iniciativa de atos concretos de s�bia pol�tica, gra�as aos quais um surto de desenvolvimento milagrosamente se registou. Estou, neste caso, pensando especialmente em Pinochet, no Chile, e em Deng Xiaoping, na China. As duas na��es registram �ndices in�ditos de desenvolvimento acelerado, que a "crise" atual n�o parece haver sen�o temporariamente interrompido.

Um caso particular que desperta nossa curiosidade � o da Fran�a. Trata-se, afinal de contas, da quarta economia mundial (depois dos EUA, Jap�o e Alemanha). � tamb�m uma na��o que, por n�o se decidir francamente nem por um lado, nem pelo outro, continua dividida, angustiada e sofrendo de uma esp�cie de incur�vel mol�stia social. A p�tria de Alain Peyrefitte n�o parece haver superado a fat�dica cis�o esquerda X direita que a dial�tica do jacobinismo revolucion�rio em 1793 engendrou, com seu contraponto no bonapartismo ditatorial; nem tampouco o absolutismo ("O Estado sou Eu") herdado do Rei Sol, Lu�s XIV.

Para a integra��o prof�cua na comunidade regional e num mundo globalizado, deve todo cidad�o convencer-se que a liberdade de iniciativa, a confian�a na honestidade dos outros, o esp�rito inventivo e o estado de direito, forte e limitado, s�o definidos como as causas da riqueza coletiva - n�o havendo outras.

Ora, foi justamente Peyrefitte quem melhor procurou analisar o que chama le mal fran�ais. Ao vislumbrar as condi��es da sociedade de confian�a que favorece o progresso, o grande ensa�sta enfrentou um de seus maiores desafios. No esfor�o herc�leo de penetrar no "mist�rio" ou "milagre" do desenvolvimento (uma de suas obras pr�vias chama-se, justamente, Du Miracle en �conomie), nosso amigo � o maior participante franc�s num debate ardente que data da publica��o, em 1835/40, da D�mocratie en Am�rique e, em 1905, de um das obras fundamentais da sociologia moderna, A �tica Protestante e o Esp�rito do Capitalismo.

Falsidades perversas - A pol�mica que esses livros provocaram muito longe ainda est� de se esgotar - e confesso me haver dedicado, com furor, a promov�-la no Brasil. O prop�sito weberiano era escaparmos das perversas falsidades do determinismo materialista que fez a fortuna inid�nea do marxismo. Peyrefitte elaborou extensamente o tema da preemin�ncia dos fatores morais, desde a publica��o daquele primeiro t�tulo h� 20 anos, at� seus mais recentes. E � esta obra fundamental precisamente, a Sociedade de Confian�a, que foi precedida de um compte-rendu do col�quio internacional, realizado no Institut de France em setembro de 1995 - em que me surpreendendi com a identidade dos problemas levantados, na Fran�a e no Brasil, quanto �s condi��es morais e culturais do desenvolvimento e �s pol�ticas adequadas a seu sucesso.

No livro, o pensador franc�s coroou seu trabalho monumental com um estudo hist�rico e sociol�gico exaustivo da �tica de livre iniciativa e incentivos ao setor privado da economia, suscet�veis de assegurarem o progresso. Renovando com o inqu�rito que, pela primeira vez, Adam Smith empreendeu no sentido de descobrir, na liberdade e na simpatia, o segredo do progresso, ele acentua o paralelismo entre o que chama a "diverg�ncia" religiosa entre os latinos, autorit�rios, patrimonialistas e desconfiados - e os holandeses e anglo-sax�es, mais liberais, mais tolerantes, mais racionais e livres, e nutrindo maior confian�a nos m�ritos da troca e divis�o do trabalho.

Quest�o de confian�a - A diverg�ncia explicaria o ritmo diverso de crescimento e progresso das respectivas sociedades. Esse desenvolvimento tem sido sustentado, de um lado, pelos sentimentos de confian�a dos cidad�os uns nos outros; e, do outro, pela capacidade do estado de direito de fazer cumprir o princ�pio pacta sunt servanda. Pois n�o devem os contratos e a propriedade ser respeitados, sendo a honestidade pressuposto de toda transa��o econ�mica?

O descompasso hist�rico no ritmo de desenvolvimento se foi acentuando. Peyrefitte compara, por exemplo, o take-off ingl�s a partir do s�culo 18 com o decl�nio espanhol. Chegando a nossos dias, diagnostica a mentalidade desconfiada, com o pressuposto generalizado que, at� prova em contr�rio, todo o mundo � desonesto e sem-vergonha, se n�o pertence a nosso c�rculo de amizades e fam�lia. Os governantes podem ser tacanhos, mas s� a eles o povo acredita que cabe a tarefa altru�sta de nos salvar do ego�smo entranhado de todo capitalista. E insiste no fato de que a resist�ncia enfadonha a qualquer inova��o e o conservadorismo inquisitorial da Igreja cooperam para erguer barreiras burocr�ticas e impasses legais a qualquer oportunidade de avan�o nos pa�ses obedientes � �tica tridentina sob a qual fomos educados e sofremos.

Introvers�o - Peyrefitte amplia e aprofunda estudos setoriais que, em The Moral Basis of a Backward Society, foram realizados pelo soci�logo americano Edward Banfield ao analisar o comportamento familista, desconfiado e introvertido numa aldeia do mezzogiorno italiano, dominada pela M�fia; e pelo nipo-americano Francis Fukuyama que, em seu livro Trust, tenta explicar o sucesso das sociedades da �sia oriental por motiva��es oriundas da disciplina da moral confuciana.

Os dados elementares do desenvolvimento s�o a liberdade, a criatividade e a responsabilidade. Mas utilizar os recursos da liberdade com autonomia individual e explorar essas virtudes na fase educacional da vida fazem supor uma confian�a muito forte no homem, trabalhando dentro das normas de uma sociedade livre. � esse o fator, por excel�ncia, do desenvolvimento.

Querer o desenvolvimento, o progresso, o enriquecimento do pa�s comporta, na conclus�o do livro, a "confian�a na confian�a". Peyrefitte � otimista. O tom hortativo do trabalho representa o esfor�o de um homem que, tendo ao morrer alcan�ado o topo da elite intelectual francesa, incentiva seus compatriotas � supera��o dos tra�os culturais viciosos que configuram o "mal franc�s". Estamos em suma, em presen�a de um novo Tocqueville cujo valor e reputa��o tender�o, estou certo, a crescer e se estender fora do �mbito da l�ngua e cultura francesas.

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