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Leituras recomendadas - 83

 

Convite � falsifica��o

A tese de que a filosofia ensina a pensar criticamente parte da falsa imagem do fil�sofo como algu�m afastado dos assuntos humanos.

 

Gon�alo Armijos Palacios
Fil�sofo, professor da Universidade Federal de Goi�s.

Op��o (Goi�nia), 4 nov. 2001

 

O veto presidencial do projeto de introdu��o da filosofia no ensino m�dio deve levar-nos a algumas reflex�es necess�rias. Em primeiro lugar: deve ou n�o a filosofia ser ministrada para adolescentes? A resposta positiva costuma vir com uma justifica��o: a filosofia deve ser ensinada aos jovens porque ela ensina a pensar criticamente.

A filosofia, lamentavelmente, � uma das disciplinas menos compreendidas, tanto pelo leigo como por quem diz que a conhece. A l�gica, costuma-se dizer, ensina a pensar e a filosofia ensina a pensar criticamente. Das duas afirma��es, a primeira � absurda e a segunda � falsa. Para ensinar l�gica precisamos, obviamente, que quem vai aprender tenha um m�nimo de capacidade intelectual e, portanto, que j� saiba pensar. N�o digo isto de uma perspectiva exterior � l�gica. Estudei l�gica formal e l�gica matem�tica e ministrei aulas de l�gica formal, l�gica informal e l�gica matem�tica. E nunca me passou pela cabe�a a peregrina id�ia de que ia ensinar a pensar �queles que estavam na minha frente, pois eles, precisamente, tinham as condi��es de entender o que eu ia dizer. A l�gica formal n�o ensina a pensar, ensina as formas em que n�s, os humanos, costumamos pensar, tanto quando raciocinamos corretamente quando o fazemos incorretamente. A l�gica matem�tica ensina processos mais complexos de demonstra��o que jamais um indiv�duo emprega ou chegaria a empregar no seu dia-a-dia.

Passemos � suposta caracter�stica de a filosofia ensinar a pensar criticamente. Esta afirma��o parte daquela falsa imagem do fil�sofo como de algu�m t�o afastado dos assuntos humanos que n�o teria esse apego que as pessoas comuns t�m por aquilo em que acreditam. Assim, dois fil�sofos, argumentando racionalmente, chegariam �s conclus�es mais l�gicas e, portanto, � verdade � mesmo que esta verdade contradiga posicionamentos anteriores. Nada mais afastado da verdade. � s� dar uma olhada r�pida na filosofia para ver que n�o � assim. Os fil�sofos dificilmente se afastam das teorias que defendem. E isto pela simples raz�o de serem poderosas as raz�es que os levaram a defender suas teorias. Para citar um �nico exemplo: todas as evid�ncias do mundo n�o foram suficientes para convencer Zen�o de que o movimento existe! Zen�o fincou p� e defendeu a tese de Parm�nides com os mais sofisticados paralogismos. Cad� a atitude cr�tica? N�o h� nada que indique que Zen�o abandonou suas posi��es.

Deixemos de lado a tese falsa de que a filosofia ensina a pensar criticamente para perguntar se o mesmo � exigido de alguma outra disciplina. A f�sica ensina a pensar criticamente? A matem�tica? A biologia? O que a f�sica, a matem�tica e a biologia ensinam n�o � mais do que os resultados aos quais f�sicos, matem�ticos e bi�logos chegaram. O papel dos professores de f�sica, matem�tica e biologia deveria ser o de ensinar aos alunos n�o s� os resultados finais aos quais os cientistas chegaram, mas como eles chegaram aos resultados que obtiveram. De maneira an�loga, se alguma coisa os professores de filosofia poderiam mostrar aos alunos � como os fil�sofos chegaram aos seus. Isso mostraria aos alunos qu�o diferentes foram as motiva��es, os problemas e os m�todos usados pelos v�rios cientistas e fil�sofos. Mostraria, entre outras coisas, como cientistas e fil�sofos divergem e se op�em. Poria em claro, n�o a inexistente unidade tem�tica, problem�tica e metodol�gica na ci�ncia e na filosofia, mas sua pluralidade e diversidade. Mostraria, j� na filosofia, que dificilmente encontraremos dois fil�sofos que concordem sobre o que � a pr�pria filosofia.

Quando cursei o segundo grau tive mat�rias filos�ficas, �tica e l�gica, assim como filosofia. Penso que foi muito bom para mim ter tido, j� naquela idade, contato com alguns dos infind�veis problemas e enfoques filos�ficos. E quero frisar: infind�veis. S�o tantos os problemas e t�o diversos os enfoques que mesmo o mais erudito os desconhece. � por isso que a filosofia � inesgot�vel e aberta, apesar de todas as defini��es com que obstinadamente muitos a querem desvirtuar. Mas tive a sorte de n�o ter sido patrulhado ideologicamente e meu professor n�o seguia um manual de filosofia escrito para oligofr�nicos.

Posso estar enganado, mas uma das conseq��ncias da ditadura militar foi ter empurrado os intelectuais a abra�ar o marxismo. Poderiam ter sido motivados a ler Marx, mas sempre � mais f�cil ler os manuais de divulga��o. E muito me temo que � a pior das vulgariza��es e deforma��es do pensamento de Marx que circula por a� em assembl�ias, artigos e manuais. Conhe�o a hist�ria da filosofia n�o por ouvir falar, mas pela leitura das fontes. E fiquei espantado quando li um dos manuais que aparentemente � o mais usado no ensino m�dio.

Trata-se do texto Convite � Filosofia (S�o Paulo : �tica, 1995) de uma das mas conhecidas figuras da academia filos�fica brasileira, Marilena Chaui. O manual � um eivado de afirma��es, umas inexatas, outras falsas, muitas completamente descontextualizadas e outras francamente rid�culas. Na p�gina 12, por exemplo, se diz que S�crates �afirmava que a primeira e fundamental verdade filos�fica � dizer: �S� sei que nada sei��. S�crates jamais fez semelhante afirma��o. E a autora n�o diz as circunst�ncias em que a frase �s� sei que nada sei� foi dita. Mas pe�o ao leitor aten��o: uma coisa � afirmar �a primeira e fundamental verdade filos�fica � dizer s� sei que nada sei� � nunca proferida por S�crates � e outra completamente diferente dizer apenas �s� sei que nada sei�. Isto �ltimo, sim, foi dito por S�crates � mas perceba-se que nada se diz sobre ser a primeira e fundamental verdade filos�fica. A autora n�o diz o lugar em que podemos encontr�-la. A afirma��o se encontra nas primeiras p�ginas da Apologia de S�crates, escrita pelo seu disc�pulo Plat�o, e n�o deixa lugar a d�vidas sobre o que significa. S�crates afirma a� que um amigo, Carefon, perguntou ao or�culo de Delfos se havia algu�m mais s�bio que S�crates. A resposta foi que �ningu�m � mais s�bio que S�crates�. Este conta que ficou perplexo ao saber o que o or�culo tinha dito porque n�o se considerava s�bio. Ora, por outro lado, o deus n�o podia estar mentindo ao fazer semelhante afirma��o. S�crates, ent�o, se viu na necessidade de interpretar o que o or�culo dizia e chegou � conclus�o de que, � diferen�a de muitos que diziam saber muitas coisas que no fundo n�o sabiam, ele, S�crates, era ciente da sua ignor�ncia. Sua sabedoria, portanto, consistia em reconhecer que nada sabia. Era isto que o tornava mais s�bio do que os outros. Este � contexto da express�o �s� ei que nada sei� e nada h� no texto de Plat�o que indique que S�crates tenha feito a outra afirma��o: �a primeira e fundamental verdade filos�fica � dizer [sic] �eu sei que nada sei��.

Fiquei surpreso, contudo, quando no final da Introdu��o li: �O primeiro ensinamento filos�fico � perguntar: O que � �til? Para que e para quem algo � �til? O que � o in�til? Por que e para quem algo � in�til?�! Se partimos do suposto que os ensinamentos filos�ficos s�o feitos pelos fil�sofos, � de se imaginar que essas perguntas tenham sido feitas por algum fil�sofo antigo. Como, segundo a autora, tais perguntas formam parte �do primeiro ensinamento filos�fico�, � �bvio que os primeiros fil�sofos devam ter sido os que as fizeram. Mas � claro que n�o h� nada nos primeiros fil�sofos (Tales, Anaximandro, Anax�menes, Xen�fanes, Her�clito ou Parm�nides) que indique que eles tivessem tais preocupa��es utilit�rias ou proposto algo parecido com o utilitarismo. �Qual � o princ�pio de todas as coisas� � que � a pergunta dos tr�s primeiros fil�sofos gregos � n�o tem absolutamente nenhuma rela��o com preocupa��es utilit�rias. A pergunta, ali�s, est� mais para o pragmaticamente in�til do que para o �til. Mas, note-se, como poder�amos relacionar �a primeira e fundamental verdade filos�fica�, que �, segundo a autora, �eu sei que nada sei�, com o �primeiro ensinamento filos�fico� que consistiria em �perguntar� �o que � �til�, �para que e para quem algo � �til� etc.? � �bvio que o primeiro ensinamento filos�fico deve estar relacionado � primeira e fundamental verdade filos�fica. Que relaciona o problema da utilidade com a douta ignor�ncia de S�crates? Nada, naturalmente. E, por �ltimo, por que nem o �primeiro ensinamento filos�fico� nem a �primeira e fundamental verdade filos�fica� se encontram nos fragmentos deixados pelos fil�sofos pr�-socr�ticos, isto �, pelos verdadeiros primeiros fil�sofos? Grande mist�rio.

A essas p�rolas juntam-se outras que mencionarei nos pr�ximos artigos. Mas, adianto uma delas. Segundo a autora � pasmem � �a f�sica dos �tomos revelou ... que n�o podemos saber as raz�es pelas quais os �tomos se movimentam, nem sua velocidade e dire��o, nem os efeitos que produzir�o�! Que tal? O que o aluno aprende na aula de f�sica, desaprende na de filosofia! Um verdadeiro convite � falsifica��o...