Leituras recomendadas - 58
A proibi��o de perguntar
Mendo Castro Henriques
O Minist�rio da Educa��o anda a ser acusado por alcan�ar o que nem a Inquisi��o conseguiu: proibir Cam�es. Mas o que se passa � muito mais grave. Andam, sim, a proibir a capacidade de perguntar, a liberdade que s� nasce quando aprendemos a p�r quest�es em conjunto com as grandes vozes e textos da humanidade, neste caso, em portugu�s. O que est� � vista � assustador. No Programa de L�ngua Portuguesa para os 10�, 11� e 12� anos dos Cursos Gerais e Tecnol�gicos, com 77 p�ginas, e que formar� a mente de uns 90.000 adolescentes por ano, a partir de Outubro de 2002, o primeiro autor referido vem na p.36, e � Cam�es; os seguintes v�m na p.41: Vieira, Garrett e E�a; o �ltimo vem na p. 46, Pessoa, por suposto Fernando. Depois, Cam�es e Pessoa na p.61. E n�o h� mais nomes, nem autores, nada. Em 77 p�ginas, � obra. O que se passa � que a revis�o curricular nivela por baixo os antigos Portugu�s A e B num �nico programa para cada ano do Secund�rio. Se os antigos programas do 10� ano tinham as l�ricas medievais e renascentistas, o actual prop�e textos: �informativos", �publicit�rios�, "dos media", "de car�cter autobiogr�fico", "expressivos e criativos do s�c XX" e "contos/novelas de autores do s�c. XX". Est�-se a ver a �L�rica� de Cam�es a par das �Sand�lias de Prata�, do Herman Jos�, e da prosa de an�ncios, requerimentos, declara��es, e contratos. No 11� resistem Garrett, Vieira, e E�a reduzido a um romance. No 12� ano, vem Cam�es aliado a Pessoa. E mais "textos ", informativos, e dos media. Perante este espect�culo, elementos do PSD denunciaram "um deplor�vel complexo de esquerda retr�grada que tem vergonha do passado de Portugal". No PP, fala-se numa "tentativa de demoli��o nas gera��es mais novas de factores preciosos da identidade portuguesa". O presidente da CNAP refere "Os Lus�adas" como "documento hist�rico e cultural important�ssimo". Elementos da esquerda aproveitaram para denunciar �os burocratas do minist�rio�; outros fizeram o elogio da literatura pura e �da festa da l�ngua� violentadas por este programa inqualific�vel. Poucos lembraram como Te�filo come�ou a abalar a monarquia com o jubileu nacional de Cam�es, em 1880, em que �Os Lus�adas� �tornou-se para os portugueses o dep�sito dos germens da sua liberdade�. Pormenor decisivo: os mais de 120 t�tulos da bibliografia do novo programa n�o incluem um estudo sequer sobre Cam�es, Garrett, Vieira, E�a ou Pessoa. Podia-se estar a falar de livros de cozinha, de manuais de Gulag, de literatura oriental ou de quaisquer outros textos. � o deserto dos conte�dos, recoberto da areia cinzenta das ci�ncias ocultas da educa��o. E por aqui se come�a a perceber que o problema n�o � s� �acabar com �Os Lus�adas� mas sim acabar com a capacidade de p�r quest�es. H� j� muitos anos que �Os Lus�adas" n�o s�o dados na �ntegra. Os alunos do secund�rio liam pouco mais de uma centena de entre as suas 1102 estrofes. Mas agora na �nsia de satisfazer os jovens sem paci�ncia para ler, e dar-lhes textos � altura deles, esqueceu-se que a melhor aprendizagem da l�ngua � a que resulta dos momentos liter�rios culminantes e n�o dos usos banais. E isso requer interpreta��es. A �Hist�ria da Literatura Portuguesa�, de Ant�nio Jos� Saraiva e �scar Lopes, formou uma gera��o inteira de professores de Portugu�s numa s�ntese inst�vel de humanismo e marxismo. Sem obras de refer�ncia, Os Lus�adas e outros cl�ssicos s�o inintelig�veis para o leitor comum. O que se reclama de cada �poca � que traga explica��es inovadoras, conforme os paradigmas culturais, as perspectivas de comunica��o e a sensibilidade est�tica. Por isso existem enormes bibliografias secund�rias sobre a literatura portuguesa, e espectaculares meios audio-visuais e inform�ticos para auxiliar o estudo. O cinzentismo do actual programa ignora tudo isso em nome das fat�dicas Ci�ncias da Educa��o. Est� por fazer um balan�o objectivo dos males que estas infligiram em trinta anos de Minist�rios de Educa��o iniciados pelo Professor Qu�mico Veiga Sim�o. Mas v�-se pelos resultados, e com horror, que o neo-positivismo dominante nas Ci�ncias da Educa��o � um cancro da intelig�ncia portuguesa. Opera com esplendor catedr�tico no que se refere �s formas did�cticas e como despachante de alf�ndega no que toca aos conte�dos. Aqui a responsabilidade � da Universidade Portuguesa, mais depressa liquidada pela relativiza��o dos conte�dos que pela falta de vencimentos. J� quanto � �pol�tica cultural�, a responsabilidade � do Governo, que desfaz de noite a rede tecida durante o dia. De dia manda o Minist�rio dos Neg�cios Estrangeiros celebrar a lusofonia, o Instituto Cam�es difundir a l�ngua portuguesa, a Comiss�o para a Comemora��o dos Descobrimentos divulgar o encontro dos povos, o Minist�rio da Ci�ncia e Tecnologia financiar projectos de literatura de viagens, o Minist�rio da Cultura apoiar espect�culos camonianos. E pela noite, na cabecinha alegadamente rasca dos alunos portugueses, manda o Minist�rio da Educa��o apagar os vest�gios da l�ngua, do humanismo, e do universalismo do vate. Homero diz que Pen�lope esperava pelo marido. O Governo desespera (d)os portugueses. Por fim, verifica-se que n�o basta desfazer-nos da Santa Inquisi��o e da PIDE fisicamente violentas, que proibiam as respostas. A Nova Inquisi��o educativa, mentalmente brutal, pro�be as perguntas: apenas permitir� comunicar no n�vel rebaixado do novo ensino. Manda o bom senso que em Portugal se ensine e aprenda Cam�es, Fern�o Lopes, Gil Vicente, S� de Miranda, Ant�nio Ferreira, Fern�o Mendes Pinto, Bocage, Camilo, Antero, Ces�rio, Verg�lio Ferreira, Torga, com igual entusiasmo com que os ingleses l�em Shakespeare, os espanh�is Cervantes, e os italianos Dante. S� mesmo os textos das famigeradas Ci�ncias da Educa��o � que s�o id�nticos em todas as l�nguas europeias.
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