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Leituras recomendadas - 82

 

A hora dos ruminantes
As fal�cias da neopedagogia

Jos� Maria e Silva
[email protected]

Op��o (Goi�nia), 21 out. 2001

 

Ao contr�rio do que cr�em os neopedagogos e eventos como o Pensar XXI, a fun��o da escola n�o � andar na vanguarda da sociedade, mas na sua retaguarda � quem quiser educar para o futuro deve voltar-se definitivamente para o passado.

 

�Tudo se torna visualizado. Mas, neste caso, o que vai acontecer com as coisas que n�o s�o vis�veis, que constituem de fato a maior parte da realidade?�

Giovanni Sartori, Homo Videns (Edusc, 2001)

 

Em meados da d�cada de 80, o fil�logo Ant�nio Houaiss, idealizador do festejado Dicion�rio Houaiss e tradutor do Ulisses de James Joyce, liderou uma proposta de reformula��o ortogr�fica do portugu�s. Ele queria internacionalizar � por decreto � a l�ngua portuguesa e, para tanto, propunha a retirada de todos seus acentos, espelhando-se no antigo dom�nio do latim e na presente hegemonia do ingl�s, l�nguas em que a sintaxe � quem determina a fon�tica. Um dos argumentos basilares da proposta de Houaiss era o fato de que os computadores n�o admitiam acentos e, caso teimasse em permanecer com os seus, a l�ngua portuguesa seria expurgada da hist�ria, condenando-se a ser um dialeto na periferia da civiliza��o. Na �poca, os Fernandos Collor e Henrique ainda n�o tinham iniciado a abertura de mercado e o Brasil s� conhecia computador pessoal por ouvir dizer � o que sabia deles � que tinham como l�ngua-m�e o ingl�s e n�o admitiam agudos, circunflexos ou qualquer outro sinal ling��stico que n�o fossem vogais e consoantes.

Em qualquer pa�s com um pouco mais de respeito pela pr�pria hist�ria, um anci�o como Houaiss (na �poca com mais de 70 anos) seria o primeiro a insurgir-se contra o computador, escrevendo libelos em defesa do vern�culo e distribuindo bengaladas em quem ousasse contest�-lo. Entretanto, como � comum no Brasil, Houaiss preferiu fazer o decr�pito papel do velho moderno � aquele que n�o cobra a rever�ncia que a juventude lhe deve e se curva na mesura ao novo para fingir-se atual. O resultado � que o socialista Houaiss impediu a verdadeira dial�tica social, aquela que se faz da s�ntese entre a rebeldia imberbe e a reprimenda experiente. Mas Houaiss n�o estava sozinho em seu erro. Cortejar a juventude � a doen�a das pessoas de mais idade no Brasil. Aqui, o Maio de 68 tornou-se uma esp�cie de segunda alma de toda gente. E a escola, que deveria contrapor-se a essa barb�rie (porque juventude nunca significou outra coisa em qualquer tempo), � a primeira a estimul�-la, como se v� nos livros did�ticos, nas diretrizes do MEC e em eventos como o Pensar XXI, feira realizada anualmente pelo jornal O Popular e que encerrou sua segunda edi��o na semana passada.

Em todos esses escritos e encontros impera a monomania de que a educa��o do s�culo XXI deve sujeitar alunos e professores � �gide do �aprender a aprender�. Ora, os pedagogos que repetem essa fal�cia, fingindo-se humildes, revelam, ao enunci�-la, um del�rio maior que o do professor Rubi�o, o novo rico de Machado, em seus espasmos napole�nicos. O que faz o ser humano, a partir mesmo de quando nasce, sen�o aprender a aprender? Toda a civiliza��o se deve a essa capacidade inata do homem de n�o apenas aprender o dado, mas de reconstruir o aprendido. E uma escola que se arvora a ensin�-lo a fazer isso, como se ele j� n�o o soubesse, n�o � mais escola de homens e, sim, oficina de deuses. Uma crian�a de cinco a sete anos s� n�o �aprendeu a aprender� se porventura tiver um d�ficit cognitivo irremedi�vel, o que a colocaria na escala dos alunos especiais. E, obviamente, o homem � capaz de transformar a natureza, mas dentro dos limites que ela pr�pria estabelece. Na verdade, uma certa pedagogia edificada na ignor�ncia � que ainda n�o aprendeu que o homem pode at� ter criado Deus, mas � incapaz de substitu�-lo.

Escola Escravizada � A primeira conseq��ncia nefasta dessa falaciosa �educa��o do s�culo XXI� � a escraviza��o da escola �s novas tecnologias, especialmente a televis�o. (O pr�prio culto ao computador n�o passa de um corol�rio dessa deifica��o da tev�.) �, sem d�vida, desej�vel que a educa��o se aproprie de todos os meios tecnol�gicos criados pelo homem. Se at� as religi�es, que tendem a ser apegadas � tradi��o, n�o relutam em incorporar os meios tecnol�gicos em seus cultos, por que a educa��o seria refrat�ria a eles? Na medida do poss�vel, a escola tem que ir propiciando aos alunos o conhecimento das novas tecnologias da informa��o e comunica��o. Entretanto, assim como os atributos divinos que a Igreja Cat�lica reconhece em Deus n�o podem mudar apenas porque o padre Marcelo Rossi transformou as missas em concertos de rock, tamb�m os valores intrinsecamente educacionais n�o podem ser modificados para se adaptarem � tecnologia. Da mesma forma que Houaiss deveria ter lutado para que os computadores se adequassem ao portugu�s (como de fato ocorreu), tamb�m a escola deve lutar para que a tecnologia se adapte a ela � e a respeite.

A fun��o da escola n�o � andar na vanguarda da sociedade, mas na sua retaguarda. Quem quiser educar para o futuro deve voltar-se � definitivamente � para o passado. Se at� o gato escaldado da �gua quente pauta-se numa mem�ria instintiva para ter medo da fria, como se pode querer que o homem abdique da experi�ncia (para inspirar-se) e dos fatos (para corrigir-se)? Todavia, � o que pretendem as pedagogias contempor�neas. Elas repudiam a raz�o e a mem�ria para instaurarem em seu lugar a falsa experi�ncia dos sentidos. Da� uma outra fal�cia muito em moda � a de que educa��o � pesquisa. Trata-se de um modismo, cujos efeitos j� n�o se limitam ao ensino superior e se estendem � base da educa��o. N�o se pode confundir instituto de pesquisa com escola prim�ria. H� muito de fal�cia na id�ia de se �educar pela pesquisa�, t�o propalada entre educadores a partir do livro hom�nimo de Pedro Demo e � revelia das nobres inten��es de seu autor, que n�o renega o conhecimento historicamente acumulado em nome de se experimentar por experimentar.

A fun��o primordial da escola � j� enfatizavam os essencialistas dos anos 30, como Mortimer Smith � � uma prepara��o para a vida, n�o uma imita��o canhestra dela. Se a escola n�o educar o aluno para a disciplina mental (que exige trabalho �rduo e n�o recrea��o), que outra inst�ncia social ir� faz�-lo em lugar dela? E a disciplina mental, obviamente, n�o nasceu com a tecnologia desse s�culo. Ela remonta � filosofia cl�ssica, datada de mais de 2 mil anos. Esfalfar-se atr�s de toda nova tecnologia que surge no mercado � olvidar esse passado do qual a escola deve ser herdeira e transmissora. E aqui se recupera outro conceito estigmatizado � o da heran�a gen�tica e social. Boa parte da constitui��o biopsicol�gica do ser humano, a come�ar de seus genes, � transmitida � revelia do indiv�duo; portanto, o professor n�o pode querer construir tudo junto com o aluno, a partir do nada, recusando-se a ser tamb�m um transmissor de conhecimento. Isso � acreditar-se habitante de um mundo que n�o existe.

Soma de Ignor�ncias � A escola contempor�nea n�o se interessa pelo passado da humanidade. Quando finge interessar-se por ele � apenas para subjug�-lo aos interesses imediatos do aluno. O jovem tornou-se medida de todas as coisas, inclusive na escola, onde a pedagogia contempor�nea, inspirada em Vygotsky, acredita que o conhecimento emana do coletivo, como se a soma de ignor�ncias pudesse dar em conhecimento e n�o em mais ignor�ncia. � verdade que a escola � para a crian�a um outro que lhe causa estranhamento e sua inser��o nela raramente se d� pelo conhecimento em si, mas pela conviv�ncia com os demais alunos. Obviamente essa conviv�ncia � desej�vel, mas a fun��o principal da escola n�o � fortalecer o esp�rito greg�rio do aluno (muitas outras inst�ncias sociais j� fazem isso) e, sim, inseri-lo no mundo do conhecimento historicamente constru�do (exclusividade da educa��o formal). Para isso s� h� um caminho � o da raz�o, que continua sendo interior ao ser humano, por mais que queiram socializ�-la. Pensar verdadeiramente exige uma solid�o interior que a algaravia construtivista e p�s-construtivista dos neopedagogos vem destruindo sistematicamente.

Transformar o conhecimento historicamente constru�do num autoconhecimento existencialmente transformador � a fun��o de toda educa��o que se proponha aut�ntica �� n�o a partir do decantado Piaget, mas desde o esquecido S�crates. Caberia � escola fazer com que o aluno se sentisse em casa entre os luminares da ci�ncia, das artes, da cultura, mas isso raramente ocorre, vez que o conhecimento apresentado pelo ensino formal � quase sempre dissociado da realidade aut�ntica (aquela que transcende espa�os e tempos). Al�m disso, � um saber excessivamente enciclop�dico e fragmenta-se em disciplinas estanques, o que o torna �rido e aparentemente in�til para a vida.

Para contrapor-se a isso, construtivistas e afins referendam a tese de que a crian�a � sujeito de seu pr�prio conhecimento. Dessa premissa correta, retiram uma conclus�o torta � a de que essa crian�a-sujeito, exatamente por ser sujeito, pode ser constru�da de fora pela neopedagogia. Infelizmente, quase toda a literatura pedag�gica que se l� hoje em dia parte dessa presun��o. Ora, ningu�m pode ser sujeito e cr�tico a partir de fora, mediante a a��o de pedagogos � s� se � sujeito e cr�tico a partir de dentro. Portanto, como � que uma pedagogia qualquer pode arvorar-se a prever a produ��o de um aluno cr�tico e sujeito do conhecimento a n�o ser arrogando-se um direito divino de ler o interior do aluno sob as gra�as de algum deus Piaget? H� algo de fanatismo religioso no modismo construtivista que impera na quase totalidade das obras da pedagogia contempor�nea.

Como essa l�gica � um arrematado contra-senso, o que os construtivistas t�m conseguido � exatamente o contr�rio � est�o destruindo a escola e a crian�a. � for�a de centrar o conhecimento no aluno, a escola tem feito dele o umbigo da humanidade, reduzindo a educa��o aos seus instintos. Se, para o aluno, Galileu � chato, dane-se Galileu. O aluno j� n�o se sente obrigado a fazer nenhum esfor�o para aprender nada e espera que o professor reduza todo o conhecimento da humanidade aos limites do seu prazer imediato, o que transforma muito professor em artista circense e a escola em Escolinha do Professor Raimundo. Muitas iniciativas pedag�gicas premiadas nacionalmente e enaltecidas por revistas especializadas como a Nova Escola n�o passam de macaquea��o com r�tulo de educa��o. Exemplos n�o faltam: alunos que reduzem a hist�ria do Brasil a paup�rrimas letras de rap; professores que v�em no filme Carlota Joaquina, de Carla Camuratti, um tratado de hist�ria; escolas que fazem de Lampi�o e Maria Bonita um melodrama da Globo em salas de 6� s�rie.

Profecia Determinista � A mensura��o da hist�ria pelo presente, travestida de modernidade pedag�gica, n�o passa de um perigoso anacronismo, que reduz o ser humano ao imediatismo das circunst�ncias, como se o presente fosse, ao mesmo tempo, a raz�o de ser do passado e a profecia determinista do futuro. No caso do ensino de literatura, esse culto ao presente tem levado a uma indisfar��vel assun��o do modernismo ao cume das artes e da civiliza��o. Como o poeta Alexei Bueno disse certa vez, � como se Homero tivesse existido apenas para justificar M�rio de Andrade. Entretanto, h� 128 anos, Machado de Assis (ent�o um jovem com apenas 24 anos) j� ensinava no artigo �O Instinto da Nacionalidade�: �Nem tudo tinham os antigos, nem tudo t�m os modernos; com os haveres de uns e outros � que se enriquece o pec�lio comum�. Seis anos depois, no artigo �A Nova Gera��o�, ele insistia: �Aborrecer o passado ou idolatr�-lo vem a dar no mesmo v�cio; o v�cio de uns que n�o descobrem a filia��o dos tempos e datam de si mesmos a aurora humana, e de outros que imaginam que o esp�rito do homem deixou as asas no caminho e entra a p� num charco�.

� verdade que o ensino de literatura brasileira nas escolas sempre pecou pela excessiva periodiza��o em escolas liter�rias, reduzidas a cat�logo de autores associados a caracter�sticas estanques, num paroxismo positivista. Ao optar pela valoriza��o do presente, sob a �gide construtivista, o ensino de literatura passou a centrar-se no texto, o que, em tese, parece o ideal. Entretanto, acabou incorrendo em outro paroxismo: o metaling�ismo, no aspecto formal, e a telenoveliza��o, no aspecto dos conte�dos. Ao tornar secund�rio o di�logo da literatura com outros ramos do conhecimento, desprezando at� mesmo a erudi��o de autores universais, a escola trata todo aluno do ensino m�dio como futuro professor de letras. Em todo o Brasil, e tamb�m em Goi�s, os livros adotados nos vestibulares locais geram uma ind�stria paralela dos coment�rios e resumos, que ora transformam um simples romance de entretenimento numa exegese b�blica, tornando sua frui��o enfadonha, ora, sintetizam o enredo de uma obra-prima universal numa mera triangula��o amorosa, como ocorre freq�entemente com o Dom Casmurro, de Machado de Assis, v�tima f�cil desses dois extremismos.

E por que ao abordar um livro liter�rio a escola n�o consegue o equil�brio entre a an�lise cr�tica, mas n�o exeg�tica, textual, mas n�o formalista, como conv�m a um aluno de segundo grau? Porque, para isso, ela precisaria dialogar, ao mesmo tempo, com o texto em quest�o, o mundo do autor e o mundo em geral, o que pressup�e a erudi��o dos grandes cr�ticos, como um Otto-Maria Carpeaux. S� que a erudi��o, al�m de n�o ser moeda corrente nas escolas, tornou-se an�tema entre os educadores � � vista como pedantismo, aur�ola abjeta dos positivistas. E os que a condenam s�o incapazes de perceber que a erudi��o � o desej�vel di�logo universal da humanidade consigo mesma contrapondo-se ao solil�quio redutor das especializa��es, este, sim, pedante, porque tenta reduzir o mundo ao seu pr�prio nicho cognitivo.

Ensino Empanturrado � Resgatar o papel da erudi��o na escola � uma tarefa que compete, sobretudo, � disciplina de literatura � se os neopedagogos deixassem. A literatura � ferramenta, por excel�ncia, da interdisciplinaridade. Por interm�dio dela � poss�vel preencher duas grav�ssimas lacunas da educa��o brasileira � a falta de uma hist�ria das ci�ncias e de uma hist�ria das artes no curr�culo do ensino m�dio. Muito mais importante do que empanturrar o adolescente com baterias de equa��es � que jamais ser�o utilizadas por ele em outro contexto que n�o o da prova � seria melhor mostrar-lhe a hist�ria do desenvolvimento da matem�tica. O mesmo vale para a qu�mica de giz, cujo laborat�rio � o quadro, e para todas as outras disciplinas biol�gicas e exatas estudadas no ensino m�dio de um modo enciclop�dico, que exige do pr�-vestibulando um conhecimento �s vezes muito mais abrangente e profundo do que aquele que lhe ser� cobrado posteriormente nas faculdades.

A recente tentativa de inclus�o da filosofia e sociologia no curr�culo de 2� grau, por exemplo, partiu da constata��o de que a escola h� muito deixou de ser escola para se tornar uma linha de montagem. Entretanto, � pouco prov�vel que a filosofia e a sociologia corrigiriam esse problema. Elas tamb�m foram afetadas pelo irracionalismo do mundo contempor�neo, ao menos em sua vers�o acad�mica, que no Brasil tem a USP por espelho.� A arte e a ci�ncia, juntas, � que talvez possam humanizar o ensino. N�o apenas a arte-educa��o l�dica nem a feira de ci�ncias utilit�ria, mas, sobretudo, uma hist�ria da arte e uma hist�ria das ci�ncias que pudessem p�r o aluno em contato com os grandes g�nios da hist�ria. Hoje, a pedagogia pensa ter descoberto (secundando os psic�logos) que n�o h� raz�o sem emo��o e que conhecimento tamb�m depende de afetividade. Ora, h� quase 500 anos o poeta Lu�s de Cam�es j� sabia disso e outros, antes dele, com outras palavras, tamb�m disseram que o homem n�o pode prescindir do engenho e da arte, da emo��o e da raz�o, do apol�neo e do dionis�aco.

Toda arte verdadeira comporta uma intra-objetividade e toda verdadeira ci�ncia nasce da intersubjetividade. A ci�ncia, sob a superf�cie de certezas, esconde as �guas profundas da subjetividade dos homens e pode tornar-se amb�gua, escorregadia, m�scara da realidade; enquanto a arte, sob a superf�cie de sonhos, emerge das �guas torrenciais da objetividade dos homens e pode fazer-se precisa, l�mpida, instrumento de cogni��o. Mas esse di�logo entre emo��o e raz�o, ci�ncia e arte, n�o cabe nos limites de um s� c�rebro e seus cinco sentidos � � inapreens�vel, pois tem o tamanho do pr�prio universo, com tudo o que ele comporta de mat�ria e antimat�ria. Na verdade, n�o se trata de um di�logo, mas de uma eterna luta e, como toda luta, seus resultados s�o imprevis�veis, da� a ilus�o da pedagogia ao tentar educar para a criatividade. Uma criatividade que pudesse ser prevista e praticada em laborat�rio deixaria automaticamente de ser criatividade. S� h� um modo de se educar algu�m para a criatividade � materializando exemplos bem-sucedidos de cria��o humana. No caso da escola, cria��o art�stica ou cient�fica, extra�das do reposit�rio cultural das grandes civiliza��es, como queriam os essencialistas dos anos 30.

Cabe � escola mostrar como o mundo subjetivo costuma ser objetivado pelo cientista e como o mundo objetivo tende a ser subjetivado pelo artista. O fil�sofo da ci�ncia Alexandre Koyr�, numa resenha que publicou em 1954, em Haia, sobre o livro Galileo as Critic of the Arts (Galileu como Cr�tico de Artes), de Erwin Panofsky, mostra que o pensamento est�tico de Galileu (profundo conhecedor de literatura e artes pl�sticas) influiu decisivamente na sua f�sica, levando-o a ignorar completamente as descobertas astron�micas de Kepler, seu companheiro na luta pelo reconhecimento do sistema de Cop�rnico. Esteta da harmonia, Galileu, como mostra Panofsky, n�o quis aceitar as �rbitas el�pticas dos planetas descobertas por Kepler por ach�-las incompat�veis com a perfei��o est�tica que, para ele, se traduzia no c�rculo. Da mesma forma, muito da f�sica de Kleper emana de seu subterr�neo m�stico. Entretanto, nem Kleper nem Galileu consultaram o manual de Daniel Goleman, o autor de Intelig�ncia Emocional, para produzir sua ci�ncia, assim como Balzac ou Zola n�o precisaram dele para edificar uma literatura que vale por muita sociologia.

S�ntese Necess�ria � Inteirando-se das obras desses autores � que o aluno, � sua maneira, pode entender a eterna dial�tica entre raz�o e emo��o, fazendo sua pr�pria s�ntese � longe dos olhos de bab� da pedagogia, isto �, em seu interior. O que a escola pode fazer para contribuir com essa reflex�o � proporcionar ao aluno um pouco de hist�ria da arte e das ci�ncias, da� a import�ncia que essas disciplinas poderiam ter no curr�culo. O estudo da literatura brasileira, por exemplo, vista n�o como cat�logo de correntes liter�rias, mas como um di�logo com a hist�ria e a ci�ncia, pode servir para essa reflex�o. No 2� ano do ensino m�dio, por exemplo, os alunos costumam estudar o romantismo e o realismo, com sua corrente naturalista, dogmaticamente fiel ao progresso cient�fico. � a hora de se introduzir o estudante no esp�rito cient�fico que marcou fanaticamente o s�culo XIX. At� a pr�pria religi�o que surgiu naquele s�culo, o espiritismo de Alan Kardec, � fundamentalmente cientificista, filho do positivismo de Comte, por sua vez, uma religi�o da ci�ncia, com templos e cientistas-sacerdotes.

Curiosamente, foi no Brasil que tanto o positivismo quanto o espiritismo vingaram: al�m de ser o maior pa�s esp�rita do mundo, o Brasil tem o ideal de �ordem e progresso� de Comte incrustado na Bandeira Nacional. Nada mais pertinente, portanto, do que levar o aluno brasileiro a refletir sobre essas rela��es entre artes, ci�ncias e sociedade, que consolidam, no s�culo XIX, as conquistas do Iluminismo imediatamente anterior e ajudam a conformar o progresso cient�fico do s�culo XX. At� porque � nessa fase que o aluno come�a a refletir sobre o que fazer de seu futuro e essa reflex�o profunda sobre a ci�ncia � que implica em saber o que ele, aluno, tem a ver com ela � poder� ser poss�vel a partir do di�logo interdisciplinar que ser� suscitado pela literatura e as artes. Algo que ajuda no pr�prio amadurecimento moral do aluno, desde que a escola crie �dolos positivos para a juventude � os grandes g�nios da arte e da ci�ncia que, superando seus defeitos individuais, foram capazes de deixar um legado reconhecido al�m de seu tempo.

No Brasil, dificilmente um jovem vai sonhar em ser um cientista, porque, no seu imagin�rio, n�o existe nenhuma figura de cientista, a ponto de ele achar que o Brasil s� produz sambista e jogador, jamais cientistas ou fil�sofos. Que estudante do ensino m�dio sabe da exist�ncia de C�sar Lattes, um �cone ainda vivo da f�sica moderna, descobridor do m�son-pi e quase ganhador do Nobel de F�sica? � claro que n�o � f�cil criar esses �dolos a partir unicamente da escola, em face do poderio da televis�o e do mercado juntos. Mas, como observa Giovanni Sartori, �a cultura audiovisual � inculta� e o dever da escola � recha��-la n�o imit�-la, como vem acontecendo. A escola tem o dever de tentar se contrapor � ditadura do imagin�rio imposta pela m�dia. Ao valorizar demais o contexto e idealizar demais o aluno, o construtivismo se esquece que o jovem urbano m�dio � quase marionete da televis�o. O grau de autonomia cognitiva da maioria dos alunos � apenas o suficiente para mant�-los entre as esp�cies superiores.

O que admira � que essa quest�o � t�o crucial para a educa��o brasileira � raramente seja abordada em cursos e livros para prepara��o de professores. O discurso mecanicamente repetido de que o importante � �aprender a aprender�, que �professor � o que de repente aprende� e que �o aluno � construtor do conhecimento� parte do pressuposto ideal � para n�o dizer ilus�rio, ing�nuo ou, simplesmente, alienado � de que todo aluno quer aprender, s� carece de o professor ensin�-lo. Ora, isso � absolutamente falso. Para a maioria das pessoas, e n�o s� dos jovens, conhecer � um castigo, como j� sabiam o G�nesis e o Eclesiastes. Imaginar que o conhecimento � indolor e que toda atividade pedag�gica tem de ser transformada num recreio � penalizar ainda mais o professor, que, ao longo das duas �ltimas d�cadas, al�m de n�o ter sal�rio, j� n�o tem prest�gio nem goza do respeito de seus alunos.

Canga Fan�tica � Toda educa��o verdadeira tem que ser ecl�tica em seus m�todos, caso contr�rio, n�o � educa��o, � doutrina��o � algo que o construtivismo e outras monomanias n�o percebem. Repetir, por exemplo, que a escola tradicional faz t�bula rasa do aluno, que ela enfoca somente o professor, que ela trata o aluno como receptor passivo e que se pauta apenas pela memoriza��o, atribuindo ao construtivismo qualidades positivas e contr�rias, como costumam fazer os neopedagogos, � falsificar a realidade da educa��o. N�o h� metodologia absolutamente pura, com todos os defeitos ou com todas as qualidades. Apenas uma metodologia que fosse adotada somente entre anjos ou somente entre dem�nios, incluindo o professor, � que conseguiria essa fa�anha sobrenatural. Porque o meio influencia o m�todo e a pureza da metodologia seria refor�ada pela pureza de seu contexto.

Mas o mundo � misturado, por isso, a neopedagogia � um dogma como o neoliberalismo. Toda classe � heterog�nea e os alunos estabelecem infinitas intera��es entre si, inclusive hier�rquicas. O professor, limitado ser humano que �, n�o tem a menor possibilidade de prev�-las e monitor�-las todas. Portanto, haver� momentos em que, se n�o apelar para abordagens tradicionais, como a pr�pria autoridade, ele se inviabiliza completamente como professor e passa a ser manipulado pelos alunos, especialmente pelos piores, que s�o os verdadeiros mandantes das escolas hoje.

Ao contr�rio que parece crer essa gente que deforma professores nos cursos de pedagogia, o mundo fora da sala de aula n�o � construtivista. Em casa, a crian�a aprende a andar, a falar, a comer, a usar o vaso, a partir de �abordagens� skinnerianas. E, na fam�lia, h� uma inevit�vel hierarquia entre pais e filhos, que continua tradicional nos momentos decisivos. Se h� impasse, o pai ou a m�e � que decidem, porque eles � que respondem juridicamente pelos filhos. Logo, se o construtivismo pode at� ser promissor em determinadas circunst�ncias, as abordagens tradicionais s�o imprescind�veis em muitas outras. N�o perceber isso � achar que todo aluno cabe na canga fan�tica de um m�todo s� � caminho mais curto para se sonhar com um admir�vel mundo novo e antecipar, na pr�tica, o pesadelo da hora dos ruminantes.