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Sobre a moralidade de Karl Marx

Por Ipojuca Pontes
Jornal da Tarde (S�o Paulo), S�bado, 20 de outubro de 2001

Ao criticar Apelo aos Eslavos � escrito em que Bakunin (1814/65), a prop�sito da cria��o de uma federa��o eslava, invoca a fraternidade entre os povos e o respeito as fronteiras entre os Estados soberanos �, Karl Marx (1818/83) afirmou, em 1849, na Nova Gazeta Renana:

�Justi�a, liberdade, igualdade, fraternidade, independ�ncia: nada mais encontramos no manifesto pan-eslavista al�m destas categorias mais ou menos morais que, � certo, soam bem, mas n�o t�m nenhum sentido no dom�nio hist�rico e pol�tico. Os Estados Unidos e M�xico s�o dois povos soberanos, duas rep�blicas. Como � poss�vel que entre duas rep�blicas que, segundo a lei moral, deveriam estar unidas por elos fraternos e federais, tenha eclodido uma guerra por causa do Texas, e que a vontade soberana do povo americano tenha empurrado uma centena de milhas mais adiante as fronteiras naturais em raz�o das necessidades geogr�ficas, comerciais e estrat�gicas? Bakunin censura os americanos por fazerem uma guerra de conquista que � um duro golpe na teoria fundada na justi�a e na humanidade, mas que � conduzida no interesse da humanidade. � uma infelicidade se a rica Calif�rnia foi arrancada dos mexicanos pregui�osos que n�o sabiam o que fazer dela? Se os en�rgicos yankees, gra�as a explora��o das minas de ouro daquela regi�o, aumentam as vias de comunica��o, concentram sobre a costa do Pac�fico uma popula��o densa e um com�rcio em expans�o, abrem linhas mar�timas, estabelecem uma via f�rrea de Nova York a S�o Francisco, abrem pela primeira vez o Pac�fico � civiliza��o e pela terceira vez na hist�ria d�o uma nova orienta��o ao com�rcio mundial? A independ�ncia de alguns californianos pode sofrer com isso, a justi�a e outros princ�pios morais podem ser feridos � mas isto conta, diante de tais realidades que s�o o dom�nio da hist�ria universal?�

Para Marx, claro, n�o contava, e a resposta a Bakunin expressa, com espantosa nitidez, a quest�o da �tica e da moral na doutrina marxista. N�o � necess�rio aqui nenhum esfor�o para reconhecer que Marx, em nome da real politik, justifica e admite, sem a menor cerim�nia, a pilhagem, a explora��o e o massacre de �povos pregui�osos� (os mesti�os mexicanos) em nome de presum�vel �dom�nio hist�rico universal� empreendido pelos norte-americanos. O que � para o l�der anarquista um ato imoral, para Marx n�o ultrapassa os limites de simples decorr�ncia hist�rica, pois, segundo entende, os fins justificam os meios.

Analistas costumam ressaltar, repetindo o pr�prio Marx, que o �socialismo cient�fico� n�o se ergue sobre uma exig�ncia moral subjetiva, mas em torno de uma teoria objetiva da hist�ria � dial�tica e progressista �, que aceita a expans�o colonialista como uma etapa historicamente necess�ria para a forma��o do sociedade socialista: a hist�ria se faz de contradi��o, o feudalismo � suplantado pelo capitalismo e o capitalismo, por sua vez, n�o � o fim da hist�ria. Assim, a exig�ncia moral, ou de qualquer conjunto de regras de conduta, seria no capitalismo uma excresc�ncia, embora seja percept�vel uma postura moral insepar�vel � teoria marxista da hist�ria: nela tudo � permitido desde que o seja em fun��o da emancipa��o da classe oper�ria.

Trata-se de um contra-senso, mas s� a partir dele poderia aceitar-se o entendimento da moral como mera �ideologia� subordinada a �interesses particulares de classe�, cujas formas �n�o podem desaparecer a n�o ser com o desaparecimento total dos antagonismos de classe�, ou seja, com o advento do comunismo e da moral prolet�ria, que se tornaria a moral definitiva da humanidade.

� margem o fato de ampliar o abismo entre a conduta �tica e o comportamento pol�tico � assunto pol�mico e de crescente atualidade �, a instrumentaliza��o da �tica no contexto da teoria marxista nos leva ao incontorn�vel questionamento dos meios utilizados para se chegar aos fins revolucion�rios (o poder) e, por extens�o, � necess�ria pergunta: se os fins justificam os meios, quem justifica os fins quando os meios utilizados s�o maus?

Parte da resposta talvez venha a ser encontrada no exame da pr�pria conduta de Marx, � luz de dados biogr�ficos reais e longe da imagem m�tica partidariamente cultivada, na maneira como se comportava com amigos e familiares e, em especial, nos m�todos que empregava no confronto com advers�rios para impor a doutrina comunista e sua �tica de resultados.

A primeira coisa a ressaltar em Marx diz respeito ao car�ter impositivo. Marx n�o pedia, mandava. N�o se desculpava, justificava-se. N�o dialogava, impunha ou aliciava. Um dos poucos homens com quem conviveu sem brigar, o poeta Heinrich Heine, escreveu que �Marx se julga um Deus Ateu autonomeado�. Quando, por qualquer raz�o, se impacientava com um circundante � como no caso em que humilhou publicamente o oper�rio Weitling �, partia para explos�o verbal. Um observador, Pavel Annenkov, tra�ou-lhe o perfil: �Falava sempre com palavras imperiosas, que n�o admitiam contradi��o, e que se tornavam ainda mais incisivas pela sensa��o quase dolorosa do tom que perpassava tudo o que dizia. O tom expressava a firme convic��o de sua miss�o de dominar a mente dos homens e de lhes ditar suas leis. Diante de mim erguia-se a encarna��o de um ditador democr�tico.�

Boa demonstra��o do seu car�ter revela-se na pol�mica que travou com P. J. Proudhon (1809/65), o socialista franc�s que o acolheu no ex�lio, antes de Marx ser expulso de Paris, em 1844. Proudhon tinha se tornado o mestre do socialismo europeu com a publica��o de O Que � a Propriedade?, ao ponto de Marx reverenci�-lo, em A Sagrada Fam�lia, como criador de �obra que revoluciona a economia pol�tica, tornando poss�vel, pela primeira vez, uma verdadeira ci�ncia da economia pol�tica�.

Mas Proudhon, desconfiando do car�ter de Marx, impregnado de virul�ncia, recusou o convite deste (feito por carta) para ingressar no Comit� Comunista de Correspond�ncia, sediado em Bruxelas. Ponderou, prof�tico, Proudhon:

�Fa�o profiss�o p�blica de um antidogmatismo econ�mico absoluto. Se o sr. quiser, investiguemos juntos as leis da sociedade, o modo como essas leis se realizam, o processo segundo o qual chegaremos a descobri-la � mas, por Deus, depois de demolir todos os dogmatismos a priori, n�o pensemos em doutrinar o povo, n�o caiamos na contradi��o do v. compatriota Lutero, que, depois de haver derrubado a teologia cat�lica, colocou-se logo, atrav�s de an�temas e excomunh�es, a criar uma teologia protestante... Fa�amos uma boa e leal pol�mica; demos ao mundo o exemplo de toler�ncia s�bia e previdente, mas n�o nos tornemos os chefes de uma nova intoler�ncia, n�o nos coloquemos como ap�stolos de uma nova religi�o, mesmo que essa religi�o seja da l�gica, da raz�o... Com essa condi��o entrarei na v. associa��o � sen�o, n�o!

�Devo ainda fazer algumas observa��es � express�o �momento de a��o� (revolucion�ria) de v. carta. Eu creio que n�o temos necessidade disso para vencer, e que, conseq�entemente, n�o devemos colocar a a��o revolucion�ria como meio de reforma social, porque esse meio seria simplesmente um apelo � for�a, ao arb�trio; em suma, uma contradi��o.�

A resposta de Marx veio em 1847, com Mis�ria da Filosofia, depois que Proudhon lan�ou Sistema das Contradi��es Econ�micas, uma constru��o antit�tica que prop�e o entendimento da propriedade � a lado de ser uma apropria��o ind�bita � como uma forma de liberdade. No op�sculo, Marx, irado com a recusa e os coment�rios de Proudhon, reduz a quem antes considerava �o mais not�vel socialista franc�s� � mera condi��o de �socialista ut�pico�, um �pequeno burgu�s oscilante entre o capital e o trabalho�.

Sabe-se hoje que o �socialismo cient�fico� de Marx revelou-se t�o ut�pico quanto o do �pequeno burgu�s� Proudhon, que, a rigor, jamais encarou o socialismo como uma ci�ncia e repudiou sempre qualquer forma de ditadura, em especial a do proletariado. Depois de ler o arrazoado marxista, o franc�s resumiu-se a anotar num canto de p�gina: �Um tecido de grosserias, cal�nias, falsifica��es e pl�gios. Marx � a t�nia do socialismo.�

De fato, para anular os advers�rios o pensador alem�o tratava a moral comum aos pontap�s. O exemplo dos m�todos que empregava para neutraliz�-los pode ser avaliado no seu desfor�o contra Bakunin, por quem, segundo o minucioso historiador ingl�s Robert Payne (Marx, Londres, 1968), nutria inveja acalentada pelo �dio. O anarquista russo (que, no dizer de Bernard Shaw, inspirou Wagner a compor o Siegfried), dono de personalidade incandescente e orat�ria libert�ria, desestabilizou, enquanto p�de, o controle que Marx detinha sobre o operariado europeu e, mais tarde, sobre a Associa��o Internacional de Trabalhadores. Em desacordo com a pol�tica ditatorial levada adiante por Marx, Bakunin articulou a forma��o de uma federa��o de associa��es de trabalhadores que logo ganhou adeptos na Fran�a, It�lia, Espanha, Su��a e outros pa�ses europeus.

Sem condi��es de destruir o prest�gio de Bakunin e temendo o seu poder de lideran�a, Marx, com o objetivo de desmoraliz�-lo, publica na Nova Gazeta Renana informa��o de que o l�der russo era um agente secreto da pol�cia czarista, dando como fonte suposta documenta��o em m�os da escritora Georg Sand. Ao tomar conhecimento da calunia, Sand, indignada, exigiu imediata retrata��o. Marx justificou-se afirmando que assim procedia �para defender o movimento socialista dos governos capitalistas�.

Mas n�o ficou por a�. Durante o congresso da Internacional em Haia, em 1872, ressabiado pela avassaladora atua��o de Bakunin e suas id�ias desestatizantes, denuncia-o por atos irrespons�veis de fato cometidos pelo terrorista Netchaiev (uma carta de amea�a ao editor de O Capital), sem que Bakunin tivesse participa��o direta no epis�dio � o que determina sua exclus�o da Internacional.

Reconhecendo, no entanto, a for�a de Bakunin e certo de que na Europa, cedo ou tarde, a Internacional cairia em m�os deste, Marx, ent�o conhecido como o �Doutor do Terror Vermelho�, numa manobra maquiav�lica transfere a sede do seu Conselho Geral para Nova York � o que, em termos pr�ticos, significou o fim da Internacional.

Outro tra�o do car�ter de Marx � o que aponta para a completa falta de escr�pulos quando se tratava de alterar dados e informa��es que, de algum modo, servissem a causa do �socialismo cient�fico�. No discurso inaugural da Internacional, em 1864, Marx, como registra o historiador Leslie Page (K. Marx and Critical Examination of his Works, Londres, 1987), para impressionar os trabalhadores adultera deliberadamente mensagem or�ament�ria de Gladstone (v�rias vezes primeiro ministro ingl�s), de 1863. Na ora��o, escreveu Gladstone sobre o crescimento da riqueza nacional: �Veria quase com apreens�o e dor este inebriante crescimento da riqueza e poderio se acreditasse que est� circunscrito a classe conservadora. A condi��o m�dia do trabalhador ingl�s, � uma felicidade sab�-lo, melhorou nos �ltimos 20 anos, a um grau que sabemos extraordin�rio e que podemos qualificar como sem paralelo na hist�ria de qualquer pa�s e de qualquer �poca.� Marx, mutilando e invertendo tudo, fez Gladstone dizer: �Este crescimento inebriante de riqueza e poderio est� totalmente circunscrito a classe dos propriet�rios.�

Na manipula��o de dados estat�sticos contidos nos Livros Azuis de Biblioteca do British Museum, publicados pelo governo e fonte para a elabora��o dos cap�tulos XIII e XV de O Capital, a conduta do pai do �socialismo cient�fico� chega a ser, segundo analistas da Universidade de Cambridge (apud Paul Johnson, em Intellectuals, W&N, 1988) de �assombrosa temeridade�, concluindo que �h� um desapre�o quase criminoso no uso das fontes�, o que coloca �qualquer parte da obra de Marx sob suspeita�. Para comprovar sua verdade, Marx, que durante toda vida jamais entrou numa f�brica, usa material sabidamente desatualizado e elege como exemplo ind�strias pr�-capitalistas, com mais de 40 anos de atraso, que n�o tinham condi��es para incorporar novas maquinarias.

No cap�tulo de apropria��o intelectual Marx ultrapassa os limites da pura desonestidade. Para compor seus escritos eivados de met�foras apocal�pticas, toma como seu aquilo que foi criado por outros, sem apontar autoria. De Marat, se apropria da frase �o proletariado n�o tem nada a perder, exceto os grilh�es�. De Heine, �a religi�o � �pio do povo�; e, de Louis Blanc, via Enfantin, sacou a formula �de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades�. De Shapper, tirou a convoca��o �trabalhadores de todo o mundo, uni-vos�, e, de Blanqui, a express�o �ditadura do proletariado�. At� mesmo sua obra mais bem acabada e de efeito vertiginoso, O Manifesto Comunista (1848, em parceria com Engels), tem-se, entre os anarquistas, como pl�gio vergonhoso do Manifesto da Democracia, de Victor Consid�rant, escrito cinco anos antes.

Marx considerava que as leis morais n�o haviam sido criadas para ele � � o que indica o seu modo de agir em vida. Para al�m das id�ias, os m�todos por ele empregados influenciaram de modo catalisador a pr�tica comunista, no s�culo 20: sem eles, dificilmente L�nin, Trotski, Stalin, Mao, Fidel, Pol Pot e cong�neres encontrariam respaldo moral para justificar seus crimes contra a humanidade. Depois da derrocada da Uni�o Sovi�tica, levantada a cortina do terror, viu-se que mais de 100 milh�es de pessoas tinham sido destro�adas em nome de uma absurda �moral prolet�ria�, que, estranhamente, parece ainda pontificar como se nada tivesse ocorrido.

O fim da exist�ncia de Marx foi pat�tico. Morreu praticamente s�, aos 65 anos, depois de percorrer esta��es balne�rias para mitigar o sofrimento f�sico, lastimando-se de dores generalizadas na laringe, br�nquios, tumores, ins�nia e suores noturnos. Ao m�dico que dele cuidava, deixou bilhete, no qual dizia �s� encontrar certo al�vio numa terr�vel dor de cabe�a � pois a dor f�sica � a �nico �estupefaciente� da dor ps�quica�.

Sua fam�lia foi a grande v�tima. Dos seis filhos que teve com a mulher, Jenny, uma aristocrata, tr�s morreram na primeira inf�ncia, em decorr�ncia do estado de pen�ria a que foram submetidos, e os outros � as filhas Jenny, Laura e Leonor � terminaram a vida cometendo suic�dio. O �nico sobrevivente, Freddy, filho de Marx com a empregada, Helene, nunca reconhecido pelo pai, foi adotado por Engels para �salvar as apar�ncias�. Jenny, a mulher, prematuramente envelhecida pelo sofrimento, morreu aparentemente sem perdoar o marido por ter engravidado a empregada.

Com os pais, Marx n�o se comportou de modo menos ego�sta. Por ocasi�o da morte do pai, Heinrich, v�tima de c�ncer no f�gado, n�o compareceu ao enterro porque, segundo ele pr�prio, �n�o tinha tempo a perder�. Por conta disso, a m�e, Henriette, saturada de pagar suas d�vidas, com ele cortou rela��es, n�o antes de adverti-lo: �Voc� devia juntar algum capital em vez de s� escrever sobre ele.�

Mas foi ao cometer grosseria com a amigo e provedor de todas as horas, Engels (1820/95), que Marx concedeu a chave para explica��o de sua moralidade. Ap�s a morte da companheira amada Mary Burns, Engels escreve ao amigo dizendo-se arrasado pelo fato (Karl Marx, Francis Wheen, Record, 2001). Marx, por carta, responde que a not�cia o surpreendeu, mas logo passa a tecer considera��es sobre as pr�prias necessidades pessoais. Engels, magoado com a frieza do outro, suspende d�divas e correspond�ncia. O que leva Marx, apressado, n�o propriamente a pedir desculpas pela conduta mesquinha, mas a admitir, com franqueza brutal, que �em geral, nessas situa��es, meu �nico recurso � o cinismo�.

Ipojuca Pontes � escritor e cineasta