Leituras Recomendadas - 6
Otto Maria Carpeaux, o digno farejador do Universo Por Antonio Fernando Borges
Tente o leitor resumir a magnitude e a claridade dos desertos num simples punhado de areia. O esfor�o lhe escorrer� literalmente entre os dedos, mas ao menos dar� uma id�ia aproximada do que seja falar do cr�tico e historiador de arte Otto Maria Carpeaux (1900-1978) nos limites de uma p�gina de jornal. Por mais que o texto se restrinja a seus rec�m-lan�ados Ensaios Reunidos (928 p�gs., R$ 75,00), n�o s�o menores os riscos de omiss�o e de erro. Pois n�o se trata, apenas, de mais um lan�amento editorial de peso: a reedi��o das obras de Carpeaux � um esfor�o conjunto do fil�sofo Olavo de Carvalho e das editoras Topbooks e UniverCidade � � um verdadeiro acontecimento cultural. Representa, sem nenhum exagero, um sopro fresco da mais pura e leg�tima intelig�ncia, imprescind�vel neste marasmo de homens e id�ias a que se reduziu a vida intelectual brasileira. Por pertencerem � ordem do imprevis�vel, os acontecimentos sempre surpreendem. O relan�amento das obras de Carpeaux, por exemplo, obriga-nos � inc�moda constata��o de que, 21 anos ap�s sua morte, a mem�ria de um dos grandes expoentes de nossa cultura continua a receber, de n�s, a mais estranha das modalidades de homenagem: o sil�ncio. Sobre o sil�ncio, San Juan de la Cruz disse um dia, numa defini��o comovente, que ele � um dos nomes de Deus. Mas no ruidoso panorama brasileiro, onde a cultura cada vez mais se confunde com o show business, a aus�ncia de uma fortuna cr�tica, de uma bibliografia ou mesmo de seguidores de Carpeaux chega a sugerir que exista, em torno de seu nome, uma esp�cie de conspira��o diab�lica. Sobretudo se levarmos em conta que, uma d�cada antes de morrer, sua figura serviu de escudo e lan�a no combate ao regime militar, sendo apontada como exemplo de �esp�rito de luta�, �coragem ind�mita� e outros clich�s. Hoje, em lugar da mem�ria do homem, restam fragmentos suspeitos de um mito. Certamente, a biografia atribulada de Carpeaux convida � mitifica��o e � lenda. Nascido Otto Karpfen, de pai judeu e m�e cat�lica, Carpeaux cresceu e se educou na cosmopolita e ilustrad�ssima Viena do in�cio do s�culo. Al�m dos cursos de Direito e Filosofia, conclu�dos por sugest�o familiar, o jovem Otto estudou ci�ncias matem�ticas (em Leipzig), sociologia (em Paris), literatura comparada (em N�poles) e pol�tica (em Berlim). Depois de militar no jornalismo pol�tico, converter-se � religi�o cat�lica e de se tornar o homem de confian�a de dois primeiros-ministros (Dolfuss e Schusschnigg), viu-se obrigado a trocar um futuro aparentemente promissor em sua terra pela incerteza do ex�lio. Em 1938, com a ascens�o do nazismo, fugiu com a mulher Helene para a cidade belga de Antu�rpia, onde ainda atuou como jornalista. No ano seguinte, sentindo-se ainda pouco seguro frente � escalada hitlerista, viajou para uma terra distante, chamada Brasil. Se a �ustria talvez tenha perdido um bom quadro pol�tico, o Brasil com toda a certeza ganhou um de seus maiores analistas culturais. Em menos de um ano, esse ilustre imigrante � que j� conhecia alem�o, flamengo, ingl�s, franc�s, italiano, espanhol, latim, catal�o, galego, proven�al e servo-croata � aprendeu a dominar o portugu�s, adotando-o definitivamente como seu habitat intelectual, a ponto de se naturalizar brasileiro em 1944. Apto a disputar, por sua intelig�ncia e erudi��o, prestigiadas c�tedras acad�micas e ambicionados cargos p�blicos, foi por�m no jornalismo que Carpeaux encontrou seu ganha-p�o regular, e onde angariou admiradores e amigos, de Aur�lio Buarque de Holanda a Graciliano Ramos, de Franklin de Oliveira a Alvaro Lins, de Antonio Callado a Alceu de Amoroso Lima, de Aloysio Gentil a Carlos Drummond de Andrade. Foi tamb�m na imprensa que se envolveu em algumas pol�micas, e publicou boa parte de seus artigos e ensaios. Mas se engana quem imaginar (e essa � outra face do mito) que o resultado dessa vida errante seja uma obra fragment�ria e dispersa na fugacidade do jornalismo di�rio. Pelo contr�rio: j� neste primeiro volume de ensaios, o leitor tem a chance de desfrutar da incompar�vel sensa��o de unidade e organicidade que perpassa o essencial dos escritos de Carpeaux, onde se destacam muitas p�rolas de intelig�ncia e estilo. Ensaios Reunidos p�e novamente em circula��o os principais livros de textos curtos publicados pelo mestre austr�aco � A Cinza do Purgat�rio (1942), Origens e Fins (1943), Respostas e Perguntas (1953), Retratos e Leituras (1953), Presen�as (1958) e Livros na Mesa (1960) � e neles j� se podem encontrar os temas e recursos fundamentais de Carpeaux, mais tarde aplicados na elabora��o de sua monumental Hist�ria da Literatura Ocidental, escrita em 1944-45, mas s� publicada no final da d�cada de 50. Seria um absurdo pretender destacar todos os pontos altos destes Ensaios, num universo de mais de 160 textos, entre artigos breves e ensaios alentados. Mas mais absurdo ainda seria n�o mencionar alguns deles � como �Jacob Buckhardt, Profeta da Nossa �poca�, an�lise de um dos autores favoritos de Carpeaux; ou o contundente �A Id�ia da Universidade e as Id�ias das Classes M�dias�, que tantos pontos de contato tem com a tese da �rebeli�o das massas� de Ortega y Gasset; ou, ainda, �A Revolu��o Europ�ia�, reflex�o sobre a etimologia da palavra revolu��o. Literatura, pol�tica, Shakespeare, m�sica, filosofia, Kafka, artes pl�sticas: quase todas as facetas do esp�rito humano est�o aqui presentes, submetidas � lucidez anal�tica de Carpeaux. Mas ningu�m o acuse de dispers�o. A rigor, seu objetivo sempre foi abordar os diferentes aspectos do �nico tema digno de ser conhecido: o Universo. E, mais do que apenas um estilo, o olhar totalizante de Carpeaux teve sempre, acima de tudo, m�todo. N�o sendo propriamente um te�rico, mas sem se limitar � erudi��o est�ril de uma �enciclop�dia ambulante�, Carpeaux era na verdade um rigoroso cr�tico e historiador de arte, filiado a uma determinada tradi��o te�rica em que se cruzam os nomes dos alem�es Wilhelm Dilthey e Max Weber e do italiano Benedetto Croce. Trocando em mi�dos, poder�amos dizer que seu principal instrumental era o m�todo compreensivo de Dilthey, base de sua �ci�ncia do esp�rito� (Geisteswissenschaft), corrente bem diferente das ci�ncias humanas e sociais da escola francesa. Para Dilthey, o importante era compreender (mais do que explicar) os fen�menos humanos e sociais, buscando-se para isso n�o as causas, mas a inten��o e o sentido subjacentes a eles. Em sua aplica��o do m�todo compreensivo de Dilthey, Carpeaux procurou levar tamb�m em conta as restri��es feitas por Weber: o estudo das sociedades e da Hist�ria n�o pode se restringir a compreender, mas deve procurar investigar conjuntamente a causa e o sentido oculto. Tanto na Hist�ria da Literatura quanto nos ensaios e artigos, encontramos ent�o em Carpeaux uma preocupa��o com refer�ncias sociol�gicas � a na��es, classes sociais ou grupos de opini�o. Sua an�lise tende a considerar cada obra como express�o de determinada corrente de opini�o e sentimento, mas sem deixar de incorporar um elemento essencial da filosofia croceana: a irredutibilidade de toda obra de arte. Para Carpeaux (via Croce), nenhuma arte se esgota ou se limita � corrente ou classe social que a produziu. Como se v�, mesmo numa descri��o apressada, n�o h� como negar complexidade e sofistica��o ao pensamento de Carpeaux, respons�vel por uma inje��o de brilho e lucidez em nossa cr�tica liter�ria, que durante algum tempo transformou o jornalismo cultural brasileiro em coisa s�ria. Um homem com t�o curiosa biografia e, sobretudo, de tamanha envergadura intelectual constitui mat�ria-prima suficiente para a constru��o de um mito. De fato, h� quem prefira em Carpeaux os aspectos folcl�ricos, amparados na simbologia f�cil do �judeu errante� e do �cavaleiro solit�rio�. Mas como toda mitifica��o � tamb�m, em geral, a ante-sala do embuste, o autor do estudo introdut�rio, Olavo de Carvalho (respons�vel tamb�m pela organiza��o do volume), prefere nos oferecer um generoso retrato de corpo inteiro do grande cr�tico e historiador, na plenitude de seus erros e acertos � quer dizer, em toda a sua grandeza. Entre as virtudes essenciais dos grandes homens de esp�rito, destacavam-se em Carpeaux, por exemplo, sua enorme capacidade de concentra��o intelectual, sua severa disciplina interior e um incorrupt�vel desprezo pelas divers�es mundanas. Dentre os pontos fracos, Olavo aponta sua car�ncia afetiva incorrig�vel (embora compreens�vel em algu�m t�o perseguido e difamado como Carpeaux), al�m, � claro, do idealismo pol�tico, veneno que devorou o g�nio nos seus �ltimos anos de vida, mergulhando-o em mediocridade e amargura. Corria o final da d�cada de 60. Decidido a abandonar a cr�tica liter�ria (�o c�rculo dos amigos da literatura�), para se dedicar � luta pol�tica (�meu cora��o est� agora em outra parte�, escreveu na �poca), Carpeaux mergulhou em cheio no turbilh�o do imediatismo ideol�gico. Sem maiores explica��es, trocou o di�logo com o esp�rito, ao qual dedicara toda uma vida, pelo combate pol�tico fugaz. Acabou pagando caro por isso, na medida em que trocou a intelig�ncia prol�fica pela esterilidade e o sil�ncio. As dezenas de artigos que escreveu, no calor da hora, para boletins semiclandestinos e publica��es da chamada imprensa nanica, d�o uma triste mostra da indig�ncia intelectual e da decomposi��o emocional a que estava reduzido. �quela altura, Carpeaux era j� um homem alquebrado e irremediavelmente carente, a ponto de sucumbir �s press�es, convites e lisonjas de l�deres estudantis e intelectuais gauchistas que, d�cadas antes, ele teria reduzido a p�, com sua pena ferina e afiada. Na raiz dessa decad�ncia estava, por certo, sua profunda crise religiosa: de cat�lico convicto, parecia agora transformado num ateu desfibrado, protegido pela capa misteriosa de um agnosticismo amedrontado e sem muita convic��o. Foi esse �ltimo Carpeaux � e justamente o mais fraco � que a intelectualidade brasileira de esquerda adotou como �cone. E talvez seja ainda este o Carpeaux que exista como refer�ncia para as gera��es mais novas. Que este mesmo ambiente pol�tico-intelectual n�o se mostre interessado em recuperar a figura completa de Carpeaux, preferindo deixar no ar fragmentos equ�vocos dessa faceta epis�dica de um intelectual de tamanho quilate: eis o que admira e consterna. Tudo isso s� faz aumentar a import�ncia desse relan�amento, um esfor�o louv�vel para impedir que o sil�ncio ocupe o lugar da verdade na mem�ria dos homens. Parece, no entanto, que o sil�ncio ainda insiste em levar a melhor, haja vista a estranha receptividade que estes Ensaios Reunidos v�m recebendo em nossa imprensa. Talvez imobilizados pela grandiosidade do projeto, quem sabe incapazes de reconhecer nestes textos o �Carpeaux pol�tico�, e certamente intimidados pela alta temperatura erudita do material apresentado, o fato � que, at� o momento, nossos cr�ticos e jornalistas n�o t�m arriscado muito al�m do aned�tico e do legend�rio de praxe. Em geral, as resenhas sobre o livro se limitam a acumular adjetivos elogiosos ao autor e a enumerar alguns aspectos, em geral secund�rios, da personalidade de Carpeaux. � como se sentissem incomodados pela grandeza daquilo que � inegavelmente grande e tivessem pressa em reduzi-lo � sua pr�pria e miser�vel dimens�o. S� que Carpeaux merece muito mais do que elogios: seu trabalho (para n�o dizer sua mem�ria) exige compreens�o e respeito. O pecado maior, no entanto, vem sendo sistematicamente cometido contra Olavo de Carvalho, respons�vel pela compila��o e fixa��o dos textos, mas sobretudo pelo substancioso estudo que abre o volume. A maioria esmagadora das resenhas e artigos dedicados ao lan�amento do livro age como se se tratasse de uma edi��o an�nima, ou fruto de alguma imponder�vel �gera��o espont�nea�. Uma omiss�o imperdo�vel, com elevado teor de injusti�a: afinal, mais do que simples pref�cio, o ensaio de Olavo constitui um cap�tulo fundamental para o entendimento de todo o livro � al�m de representar a primeira an�lise extensa e de conjunto da obra de Carpeaux promovida em l�ngua portuguesa. Como um cr�tico e int�rprete digno deste nome, Olavo de Carvalho enriquece a obra que estuda. E, sem recorrer a uma adjetiva��o encomi�stica vazia, preocupa-se em restituir ao ensa�sta e historiador sua verdadeira import�ncia. Carpeaux ressurge assim, n�o como simples divulgador de autores estrangeiros, mas como um consistente homem de id�ias. Por conta disso, a Hist�ria da Literatura Ocidental � muito mais do que uma contribui��o de Dilthey & Cia. � cultura brasileira: representa, conclui Olavo, �uma portentosa contribui��o brasileira � Geiteswisseschaft�. Ironicamente, parece que tentam erguer em torno de Olavo de Carvalho a mesma cortina de sil�ncio dedicada at� ent�o ao intelectual austr�aco. Se com isso querem dar a entender, de maneira tortuosa e exc�ntrica (e sem jamais o admitirem, � claro), que finalmente Carpeaux encontrou algu�m � sua altura, digno do mesmo extravagante tributo, essa atitude n�o deixa de ser uma repeti��o da velha �homenagem� � a hipocrisia � que o v�cio presta � virtude... Imposs�vel fazer caber o mar num copo de �gua salgada. Mesmo assim, n�o custa imaginar que esta resenha seja um esbo�o digno de Otto Maria Carpeaux, capaz de funcionar como um convite � leitura de sua obra. A esperan�a, afinal, al�m de ser uma das tr�s grandes virtudes, � sempre um delicioso consolo. |
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