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Leituras recomendadas – 79

 

As criancinhas

Janer Cristaldo
26 de outubro de 2001

 

Viste as criancinhas? – me pergunta uma amiga ao telefone. Quais criancinhas? – quis saber. Ela perguntava pelas criancinhas do Afeganist�o. Antes mesmo de come�arem os bombardeios americanos, a imprensa nacional foi invadida por fotos de criancinhas, fotos imensas, at� mesmo em quatro colunas, ou fotos menores, repetidas � exaust�o. Crian�as lindinhas, envoltas em roupas coloridas, com predomin�ncia do verde, a cor do Isl�. Meninas de rostos angelicais, sempre imp�beres, j� que se p�beres fossem, n�o mais poderiam mostr�-los.

Sim, eu havia visto as criancinhas. � recurso ao qual os editores apelam mal surge uma guerra. S�o fotos sem nenhuma rela��o com fatos. Tiradas antes dos bombardeios, n�o t�m valor algum como not�cia, j� que com eles nada t�m a ver. Sua fun��o � comover. Quando as criancinhas invadem as p�ginas dos jornais, isto significa que o editor j� decidiu quem � a v�tima e quem � o agressor. As criancinhas sempre estar�o na p�gina das v�timas.

O leitor viu alguma foto das mais de duas mil criancinhas americanas que ficaram �rf�os, do dia para a noite, com o atentado ao World Trade Center? Eu n�o vi nenhuma. Seriam fotos ap�s os fatos b�licos, n�o antes deles, como � o caso das crian�as afeg�s. S�o crian�as que ficar�o marcadas por um trauma severo, e os psic�logos hoje ainda nem sabem como enfrentar o problema. Mas n�o servem para comover o leitor. Se nem todas s�o filhas de ricos, de pobres � que n�o s�o. Mesmo sem pai ou m�e, t�m futuro assegurado pela frente. T�m um sorriso bonito, dentes saud�veis e, pior ainda, s�o lourinhas. Pertencem � ra�a que destr�i tudo por onde passa, como dizia Darcy Ribeiro, a ra�a branca. Decididamente, n�o servem para v�timas. Pior ainda: s�o americanas.

A p�gina das criancinhas � preferentemente a p�gina �mpar, embora isto n�o seja um dogma. Os editores sabem que, por um movimento instintivo, a primeira p�gina que o olhar do leitor procura � a �mpar. Como contraponto, a p�gina par ser� dedicada ao agressor.

Muitos quepes, muitas estrelas nos ombros, e o arsenal: bombardeiros fant�sticos, de milh�es de d�lares, m�sseis inteligentes, porta-avi�es, fragatas, helic�pteros, super-soldados equipados com tralhas eletr�nicas, declara��es de autoridades engravatadas.

A mensagem subliminar do editor � clara: aquelas criancinhas que voc� v� � sua direita constituem, em promessa, o capital humano que aqueles monstros � esquerda v�o massacrar. O editor n�o quer que voc� incorra no risco de pensar errado. Pode acontecer que algum irreverente escreva um artigo mostrando que a realidade n�o � assim t�o simples. O editor insiste ent�o em conduzi-lo pela m�o ao que voc� deve pensar, atrav�s de uma diagrama��o did�tica. Leia o que bem entender, leitor. Mas que fique claro que as v�timas s�o aquelas que o editor escolheu para a p�gina das criancinhas. Quanto aos monstros, est�o na p�gina oposta.

Se voc� ainda n�o captou o esp�rito da coisa, fixe isto em sua mem�ria: na p�gina das criancinhas, est� o Bem. Na dos militares, o Mal. O Bem sempre estar� do lado dos pobres. Rico, por defini��o, � o Mal. Logo, criancinha americana n�o serve. N�o comove. Sem falar que confundiria o leitor. A religi�o fundada por Mani, na Babil�nia, no terceiro s�culo da era crist�, continua sendo uma esp�cie de manual do jornalismo contempor�neo.

Junto com as criancinhas, as mulheres. De prefer�ncia m�es, com a criancinha ao colo. No caso do Afeganist�o, o leitor n�o ter� visto muitas mulheres. � que as afeg�s n�o t�m rosto, a burka iguala a todas. Publicar fotos de mulheres afeg�s seria, na verdade, repetir sempre a mesma foto.

O recurso � eterno, e ainda funciona. J� tivemos criancinhas ianom�mis, mulheres ian�mamis, anci�s ianom�mis. Filho ou mulher de garimpeiros voc� n�o viu. Garimpeiro � o mal, o da p�gina esquerda. Tivemos criancinhas b�snias, mulheres b�snias, anci�s b�snias. Criancinha s�rvia, n�o. Os s�rvios s�o o mal. Mesmo quando massacrados pelo kosovares. O leitor deve tamb�m estar farto de criancinha palestina, m�e palestina, anci� palestina. Quantos aos israelitas, nada de criancinhas, mesmo que estas tenham seus pais despeda�ados por homens-bomba. Criancinha israelita n�o passa fome, tem futuro, � saud�vel, logo n�o comove. Eventualmente a imprensa deixa passar a foto de uma m�e israelita, consumida pela dor. Se for uma soldada, destaque para ela. � do mal.

Mas aten��o: soldado � do mal s� quando pertence a um ex�rcito regular. O guerrilheiro, em geral, vai para a p�gina do bem. Terroristas tamb�m, afinal a ONU at� agora n�o decidiu o que distingue um guerrilheiro de um terrorista. Bin Laden, � claro, exagerou na dose. Seus depoimentos n�o permitem dissoci�-lo do terror. Nem mesmo um Kofi Annan, com sua autoridade de Nobel fresquinho, ousaria ungi-lo com a palavra que, para a grande imprensa, virou sin�nima de her�i. Guerrilheiro � o Che Guevara, que s� n�o matou mais porque n�o p�de. Na Bol�via, � cultuado como santo, San Ernesto de la Higuera.

Mas falava de fotos. Enquanto os jornais publicam rostos de criancinhas meigas e desprotegidas, antes mesmo de os bombardeios terem sido desfechados, faltam-nos as fotos das alegadas v�timas civis dos bombardeios. Em meados deste, os taleban convidaram a imprensa estrangeira a entrar no pa�s, em �reas controladas pelas mil�cias fundamentalistas, para ver a destrui��o provocada pelos ataques a�reos. De acordo com os taleban, cerca de 200 civis morreram durante um ataque a�reo noturno, no dia 12 de outubro, no povoado de Karam, perto de Jalalabad.

Jornais do mundo todo noticiaram as 200 mortes, mas os jornalistas viram apenas uma d�zia de t�mulos novos, al�m de carca�as de dezenas de animais mortos. E por que n�o viram os cad�veres? Ah, porque segundo os ditames cor�nicos, os mu�ulmanos enterram seus cad�veres antes do pr�ximo p�r do sol. Como n�o lembrar aquele suposto massacre de ianom�mis de 1993, no qual n�o se viu um m�sero cad�ver? E por que n�o havia cad�veres? Porque os ianom�mis queimam seus mortos e guardam suas cinzas em cumbucas. Pode-se ver as cinzas? N�o pode, s�o sagradas.

Mas, como testemunhou um rep�rter que esteve em Karam, "o cheiro da morte envolvia o lugarejo". Exatamente as mesmas palavras usadas por um jornalista brasileiro durante o "massacre" dos bugres. Este, s� trocou lugasrejo por aldeia. Pena que cheiro n�o d� foto. Foi muita pressa dos taleban em mostrar os feitos do Grande Sat�. Pois cad�veres de civis n�o v�o faltar. Como n�o faltam em nenhuma guerra...

Em falta de mortos, criancinha serve. Fotografa bem e comove muito mais que cad�ver...