Sapientiam Autem Non Vincit Malitia - Foto da águia: Donald Mathis Mande um e-mail para o Olavo Links Textos Informações Página principal

Leituras recomendadas - 49

 

Direito Sinistro

Di�genes Coimbra

 

O Sancta simplicitas! Em que mundo mais estranhamente simplificado e falsificado vive a humanidade! � infinito o assombro diante de tal prod�gio.

�NIETZSCHE
ALÉM DO BEM E DO MAL

���� A busca pelas ess�ncias, norteada por m�todos que se exigiam rigorosos, constituiu, desde o dealbar da filosofia ocidental, o cerne de todo pensamento racional.� �Uma lei constitutiva da mente humana, todavia, parece conceder ao erro� � lembra o eminente fil�sofo Olavo de Carvalho � o privil�gio� de poder ser mais breve do que a sua retifica��o�. [1]

����� Desse modo, o professor Roberto Lyra Filho, em seu op�sculo �O que � Direito�, consegue lan�ar o leitor incauto, na ex�gua extens�o de menos de uma centena de pequenas p�ginas,� ora num indestrin��vel emaranhado de conceitos lassos, ora num paul de sofismas sorrateiros. Fazendo-se valer dos mais avelhantados lugares-comuns do marxismo, o autor procura, nesse panfleto, menos conceituar de modo preciso o fen�meno jur�dico, que reputa tarefa de f�cil labor, do que desanuviar da realidade as brumas que a encobrem.

����� A tese lyriana, com efeito, deixa-se cingir por reduzidas e retumbantes linhas, a saber: uma classe dominadora serve-se do Direito para manter a domina��o sobre outra classe, a dos espoliados � em que desce a porrada (sic) toda vez que as leis n�o resolvem o caso. Esse Direito esp�rio origina-se e assenta-se em leis naturais, de cunho metaf�sico � e, se metaf�sico, ideol�gico e falso �, a partir das quais, num est�gio posterior de usurpa��o do poder, a burguesia ir� formular leis positivas, que, contraditoriamente �quelas naturais, tenderiam a preservar o status quo da classe burguesa, a qual n�o d� a menor bola (sic) para os dominados. A tal classe espoliada, sem ter um estal�o cr�tico (sic), vai tendo que engolir estes e outros sapos (sic), o que constitui, n�o h� negar, grande sacanagem (sic), uma vez que os dominadores s� os pegam com as cal�as arriadas (sic). Relevado o estilo simpl�rio � afinal, de gustibus et coloribus disputandum non est �, eis a s�ntese do pensamento lyrista. Por fim, fechando a fenda aberta com agigantada pedra filosofal, conclui que� �o Direito n�o ��; ele �vem a ser��, afinal, de acordo com fina ontologia, �nada �, num sentido perfeito e acabado; que tudo �, sendo�.

����� O leitor apressado pode querer ligar essas ralas alus�es metaf�sicas �queloutras do Estagirita, mas a conex�o � imposs�vel, o abismo, instranspul�vel. Mais prov�vel � estarem assentes as bases da metaf�sica lyrica � da qual tenta a todo custo livrar-se, a fim de cumprir os ditames do catecismo marxista � no solo pal�dico do chau�smo.� A origem n�o seria despropositada. A senhora Chau�, pessoa t�o �ntima do autor � di-lo, na dedicat�ria, sua colega, sua irm�, sua amiga � n�o poderia ter obtido t�o veneranda admira��o sem que igual influ�ncia n�o houvesse exercido sobre ele. Sen�o, veja-se a teoria ontol�gico-maril�nica:

O real n�o � constitu�do por coisas. Nossa experi�ncia direta e imediata nos leva a imaginar que o real � constitu�do por coisas (sejam elas naturais ou humanas), isto �, de objetos f�sicos, ps�quicos, culturais oferecidos � nossa percep��o e �s nossas viv�ncias. [2]

����� N�o explica a autora de que m�todo ou sortil�gio valeu-se para alterar a composi��o �ntima da mat�ria, objetivo t�o almejado pelos alquimistas. Na terminologia do senhor Lyra, valendo-se de uma esp�cie de m�gica besta (dir-se-ia melhor: dial�tica canhestra), D. Marilena fundiu, refundiu e confundiu as categorias de subst�ncia e de paix�o [3] � claras para qualquer leitor iniciante do aristotelismo. Transforma, com isso, a constitui��o essencial do ser em meros acidentes seus, de molde que o pau-de-segurar-a-barraca-do-circo perde por encanto sua subst�ncia de pau, uma vez que o mero acidente de ser mastro de circo, de gale�o espanhol ou trave de campo de futebol modifica sua subst�ncia de paulidade. Para empregar, mais uma vez, o estilo lyrico-chau�no: chutaram o pau-da-barraca.

����� N�o menos m�stico � o tour de force que faz eq�ivaler, por um lado, causa final, intelig�ncia contemplativa e classe dominante, e, de outro lado, causa eficiente, intelig�ncia pr�tica e classe dominada. Transpondo os limites da argumenta��o l�gica, conclui com esmero:

temos, portanto, uma teoria geral para a explica��o da realidade e de suas transforma��es que, na verdade, � a transposi��o involunt�ria para o plano das id�ias de rela��es sociais muito determinadas. Quando o te�rico elabora sua teoria, evidentemente n�o pensa estar realizando essa transposi��o, mas julga estar produzindo id�ias verdadeiras que nada devem � exist�ncia hist�rica e social do pensador. [4]

����� N�o sendo poss�vel atingir o grau de ilumina��o, aparentemente pr�prio dos adeptos deste m�todo engenhoso, que permite chegar ex nihilo a conclus�es e mesmo a teorias gerais t�o abrangentes e revestidas de alto grau explicativo e probante, fique-se com as d�vidas, bem expressas, a prop�sito, por Olavo de Carvalho:

Se um homem est� pensando sobre fen�menos da natureza f�sica, como se explica que o interesse de classe, t�o alheio ao assunto de seus pensamentos, se imiscua neles e acabe por determinar o seu curso, de maneira at� mais decisiva do que o objeto sobre o qual discorrem? Como ser� que, pensando por exemplo na embriologia dos gatos ou na lei de queda dos corpos, posso produzir um discurso que, no fim das contas, nada diz sobre gatas prenhes ou bolas que caem, mas apenas afirma o direito que minha classe social tem de viver no bem-bom � custa da explora��o das outras classes? Como se d�, enfim, a "transposi��o inconsciente"? Que processos ps�quicos, ling��sticos, neurol�gicos, determinam que todo te�rico do que quer que seja nunca saiba precisamente do que est� falando, mas sempre, imaginando falar de animais, de mares, de montanhas, de pedras ou de anjos, esteja sempre falando de outra coisa, sem ter disto a menor id�ia? Por quais mecanismos causais se produziu esse monstruoso fen�meno do equ�voco universal, do qual veio libertar-nos D. Marilena?

����� Frise-se que tais pondera��es n�o s�o absolutamente despropositadas, porquanto nada mais leg�timo do que o perguntar ao te�rico das bases de seu sistema. Se o autor de �O que � Direito� n�o no diz, busque-se algures, porque a ningu�m se pede aceitar� sem mais algaravias alheias.� N�o diz o autor em que fonte foi limpar-se das impurezas do mundo burgu�s, de modo que retorna de t�o imaculada fonte com olhos l�mpidos, capazes de vislumbrar por entre a ba�a neblina das ideologias a verdadeira realidade das coisas.

����� H� de bom grado supor-se que o autor conhe�a os membros constituintes dos conjuntos dos dominadores e dos dominados, dado que os cita a mais n�o poder. Ao contr�rio do que se espera de um escritor intelectualmente honesto, n�o se fica a saber, ao fim e ao cabo, quem integra aqueles conjuntos. A saber n�o se fica, tampouco, em que categoria incluir o egr�gio professor universit�rio que por sextuplicados lustros lecionou tantos e t�o abastados jovens, sob o amparo generoso do er�rio, e, ainda post mortem, viu seu nome homenageado por pupilos uspianos em publica��o universit�ria, de novo a expensas do dizgraziatto Estado liberal-burgu�s. Bem de se ver que os conceitos e categorias que vestem o discurso do Doutor Lyra correm mesmo � frouxa, deles n�o se extraindo nenhum conhecimento da realidade nem sequer do fen�meno jur�dico.

����� Doutor Lyra, ademais, pressup�e a dial�tica de Marx, com Aufhebung de ponta-cabe�a inclu�da, como crit�rio cient�fico para alcan�ar conclus�es apod�cticas, mas n�o lembra que tal m�todo, ou antes, artif�cio sof�stico, nada tem de cient�fico nem muito apresenta conclus�es verdadeiras. A esse respeito, bem observa Eric Voeglin que

Hegel debate se a realidade emp�rica � apenas um fluxo ou se tem uma ordem; como fil�sofo, tem de discernir entre a fonte de ordem e os elementos que nela n�o cabem. A dial�tica da Ideia � a sua resposta a este problema. Mas Marx abole o problema filos�fico da realidade precisamente antes de praticar a invers�o; n�o inverte a dial�ctica: recusa-se sim, a teorizar.

����� Seguindo, pois, as profecias de seu vision�rio guru, o Doutor Lyra emprega igualmente o mesmo estilo obl�quo, eivado de lugares-comuns, verdadeiros bondes do transporte intelectual, como diria Ortega y Gasset, valendo-se mais de maleabilidades metaf�ricas que de assertivas precisas, a fim de ocultar em imagens o que n�o ousa expor em conceitos. Destarte, ao em vez de considerar o marxismo, e o comunismo que dele deriva, como corrente ideol�gica sobre cujas bases se erigiram os movimentos mais sanguin�rios de que j� se teve not�cia na face da terra, prefere referir-se a tais movimentos como trai��o � causa, todas as vezes em que, como na Revolu��o Bolchevique de 1917, o poder se �deitou na cama (estatal) e dormiu sobre o colch�o de institui��es domesticadas, acordando assustado toda vez que algum socialista herege e contestador berrava que ali (ou na casa do vizinho) havia algo de errado�. O expediente usado � antigo, embora haja ainda quem dele se engane. Vejo meus colegas de curso sob o fetiche das dulc�ssimas propostas marxistas. Nada menos estranh�vel, j� que rec�m deixados o secund�rio, durante o qual foram exaustivamente catequizados pela cantilena dos livros marxistas. Agora, levados pelo encanto de mais elevados estudos, encontram guarida no discurso mel�fluo dos ac�litos do Direito Alternativo. Escusado o trocadilho, cito Cat�o: Fistula dulce canit dum Lyra dulcisono carmine prodit aves (A flauta toca suavemente, enquanto o doce som do Lyra engana os p�ssaros � com a devida adequa��o).

����� Com efeito, o que disse Voeglin de Marx, diga-se tamb�m de seu pupilo brasileiro:

Marx criou um meio espec�fico de express�o: quando atinge um ponto cr�tico, apresenta met�foras que for�am as rela��es entre termos indefinidos como se viu no j� citado passo do Pref�cio, p.xvii "o ideal nada mais � que o material transformado e traduzido na cabe�a do homem". Seria uma afirma��o brilhante se condensasse numa imagem o que j� f�ra dito de modo cr�tico. Mas o problema � que n�o existe esse contexto cr�tico. O que � "p�r na cabe�a"? � milagre fisiol�gico? Actividade mental? Acto cognitivo? Processo c�smico?

����� Finalmente, n�o h� sen�o concluir que a obra do professor Lyra segue � risca os mandamentos de seu outro mestre, Antonio Gramsci. De fato, intelectual org�nico par excellence, o autor do panfleto �O que � Direito� mais procura convencer pelo expediente propagand�stico, valendo-se daquele princ�pio da economia do erro acima aludido, que pelo confronto direto de argumentos, bem ao gosto grasmsciano que exige �que toda atividade cultural e cient�fica se reduza � mera propaganda pol�tica, mais ou menos disfar�ada�, bem recorda Olavo de Carvalho. N�o engenhou obra de filosofia do Direito ou de sociologia jur�dica, sen�o que buscou convencer ad baculum et populum da necessidade de se construir uma nova sociedade que venha a comportar a vaga id�ia de direito apresentada. Contra as teses lyricas j� advertia Ortega y Gasset: �No vazio social n�o h� nem pode nascer direito. Este requer como substrato uma unidade de conviv�ncia humana, da mesma forma que os usos e costumes, dos quais o direito � o irm�o mais novo, por�m mais en�rgico�. [5]

����� Diga-se uma vez mais: �O que � Direito� n�o � obra de filosofia do Direito nem de qualquer outra mat�ria que se repute cient�fica, sen�o objeto de propaganda pol�tico-ideol�gica, posto o aspeto formal que lhe emprestam o estarem as palavras organizadas e impressas em formato de livro, e encimadas por t�tulo que o apresenta com vestes de seriedade.

 

NOTAS


[1] A Nova Era e a Revoulu��o Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci, Rio, IAL & Stella Caymmi, 1994.

[2] O Que � Ideologia? (S�o Paulo, Brasiliense, 31a. ed., 1990).

[3] T�picos, 103� b� 20.

[4] idem, p. 10.

[5] A Rebeli�o das Massas, S�o Paulo, Martins Fontes, 1987.