Sapientiam Autem Non Vincit Malitia - Foto da águia: Donald Mathis Mande um e-mail para o Olavo Links Textos Informações Página principal

Leituras recomendadas - 41

 

Entrevista com Karl Marx

MARIA LUCIA VICTOR BARBOSA

 

Finalmente ele aceitou meu convite para uma entrevista. Eu mal podia acreditar. Estaria frente a frente com o homem que teve o m�rito de desvendar aspectos novos da sociedade, apesar da inexatid�o cient�fica de suas profecias ou da dose de utopia e de messianismo contidos em sua obra. Mas seja l� como for, o monumental pensamento de Karl Marx havia povoado minha juventude com sonhos revolucion�rios de um romantismo inigual�vel, e n�o h� d�vida que, ao explicar as mudan�as atrav�s do conflito entre classes, ele muito contribuiu para a compreens�o sociol�gica dos processos sociais.

Assim sendo, meu cora��o batia de ansiedade enquanto me dirigia para o lugar do encontro. Ele determinara que o local seria num dos mais belos shoppings centers de S�o Paulo, o Higien�polis, verdadeiro templo do consumo desvairado. Como desobedecer-lhe?� Para completar tamanha excentricidade,� exigira ser entrevistado enquanto tom�ssemos lanche no McDonald�s, o que estranhei bastante. Ali�s, fiquei imaginando o que diria se nos visse o fil�sofo e baderneiro franc�s Jos� Bov�,� produtor de queijos de cabra que estudou em Harvard, e que nas horas vagas faz protestos contra os Estados Unidos, homem cuja birra aos lanches do McDonald�s acabou por conduzi-lo ao estrelato, especialmente no recente encontro anti-Davos, palco petista de Porto Alegre onde, ao que parece, foram proibidos hamb�rgueres e servido todo dia um prato de salada russa. N�o apurei se o card�pio continha ou n�o produtos transg�nicos.

Pois �, se Marx queria ir ao s�mbolo diab�lico da globaliza��o, quem era eu para contrariar sua vontade.� Ent�o, na hora� aprazada, postei-me na entrada da maldita lanchonete em meio a uma democr�tica e pequena multid�o de an�nimos comil�es de sandu�ches, formada por jovens da periferia e de pessoas da classe m�dia que se distinguem ainda, como se sabe, pelo terr�vel v�cio de ingerir coca-cola, outro endemoninhado produto que mant�m a pobreza mundial a�ucarada e alienada� aos apelos gastron�micos do imperialismo.

Depois de quarenta minutos de atraso que me angustiaram por uma eternidade, ele surgiu como o russo Anienkof o descrevera no passado. Sua cabe�a parecia a de um le�o de basta cabeleira grisalha, as m�os cobertas de pelos, as maneiras desajeitadas, todavia orgulhosas, arrogantes e autorit�rias, que sem d�vida ficaram como legado para muitos dos seus seguidores. Todo esse aspecto conferia com o que eu esperava ver, menos o traje. Em vez da roupa desalinhada e preta, Marx vestia uma camiseta branca �dry fit� e ostentava cal�a jeans de griffe. Nos p�s, botas, � moda Bush e Fox.

No que chegou me ordenou com sua voz met�lica e vibrante, feita para emitir ju�zos radicais sobre os homens e as coisas, para pronunciar palavras imperativas: �A senhora me pega um big mac com fritas e uma coca de 500 ml que na seca n�o vou falar nada�. Obediente fui at� a fila adquirir o lanche, enquanto o majestoso Karl Marx se aboletava numa mesinha da pra�a de alimenta��o, acomodando suas sacolas de compras na cadeira vaga. Tudo nos conformes, eu com meu queijo quarteir�o e meu guaran� bem brasileiro, desferi a primeira pergunta com voz tr�mula:

ML: Aonde e em que ano o senhor nasceu?

Marx: Em Tr�ves, em 1818.

ML: Gostaria de falar sobre seus pais?

Marx: Preferia n�o falar. Meu pai era um advogado judeu convertido ao luteranismo, que queria que eu seguisse a carreira jur�dica para a qual n�o tinha voca��o. Ele implicava com meu gosto pela poesia. Dizia que n�o queria me ver transformado num poetinha qualquer. Minha m�e vivia me dizendo que em vez de ficar escrevendo o Capital eu devia conseguir algum para mim. Ambos me aborreciam com seus serm�es sobre minha vida bo�mia em Bonn, quando eu, ainda jovem, gastava um dinheir�o e tomava pileques hom�ricos. Achava-os muito burgueses. Hoje entendo que as m�es t�m sempre raz�o.

ML: O senhor teve um grande amigo, Engels.

Marx: De fato, Engels muito me ajudou. Fez v�rios artigos que eu assinava quando escrevia no New York Daily Tribune, escreveu obras comigo, me auxiliou financeiramente in�meras vezes. Um amig�o sem o qual teria morrido de fome com� minha fam�lia, e que andei depois escorra�ando, mas no final nos entendemos apesar dele ter ficado muito magoado.�

ML: E sua esposa?

Marx: Chamava-se Jenny von Westphalen e era de fam�lia nobre. Uma santa. Suportou nossa vida miser�vel, porque eu n�o trabalhava, sem se queixar. Dois dos nossos filhos e uma filha morreram porque eu n�o tinha recursos para trat�-los, e a Jenny ag�entou firme.

ML: Mas esse devotamento de Jenny n�o o impediu de ter uma filha com a governanta Helena.

Marx: Prefiro n�o falar sobre o assunto.

ML: Ent�o me fale sobre suas id�ias. Resuma seu pensamento sobre religi�o.

Marx: a religi�o � o �pio do povo e eu sou ateu.

ML: O senhor dizia que a coloniza��o dos pa�ses do Terceiro Mundo era a condi��o fundamental para a cria��o do capitalismo de onde sairia um proletariado revolucion�rio, continua achando isso?

Marx: Como sabe a professora, a teoria na pr�tica � outra. Assim, deu tudo errado. Previ o capitalismo plenamente desenvolvido para a Alemanha e a Inglaterra, o socialismo saiu na R�ssia e a�, danou-se. Quanto ao capitalismo dos �boas vidas� � um arremedo, seu projeto de socialismo possui teor medieval, n�o t�m propostas concretas e suas revolu��es s� servem para que tiranetes se locupletem no poder. Estou desencantado. Para culminar, o capitalismo vive superando suas crises e tornou-se algo diferente daquele do meu tempo.� Chamam a isso de neoliberalismo. Vejo marxistas triviais, repetindo palavras de ordem. Eles n�o conhecem minhas obras e assim sua ideologia � indigente. Ali�s, sempre disse para Engels que eu n�o sou marxista. Para piorar, os chamados marxistas s�o intelectuais burgueses, que aqui em S�o Paulo comem no Fazano. J� o proletariado n�o quer saber de mim, mas de melhorar de vida, como ali�s aconteceu.

ML: O senhor � contra a globaliza��o?

Marx: Como poderia ser se escrevi no final do �Manifesto do Partido Comunista : �Prolet�rios de todo o mundo, uni-vos�?

ML: Bem, agradecendo a honra desta entrevista, gostaria que deixasse suas palavras finais para a esquerda global.

Marx: Jamais a ignor�ncia serviu a algu�m. E me diga a senhora, aqui servem cerveja Kaiser?

 

Maria Lucia Victor Barbosa � soci�loga, escritora e professora universit�ria.

E-mail: [email protected]