Leituras recomendadas 190
Discutindo o capitalismo Por José
Nivaldo Cordeiro
Não é fácil discutir a o termo capitalismo. Parece
que todas as pessoas sabem tudo sobre o assunto e não têm
qualquer dúvida. A palavra está tão desgastada
pelo uso político que, para certas correntes de pensamento, virou
quase um palavrão. Acusar alguém de capitalista é
quase uma condenação ao fogo dos infernos. Não
obstante, é preciso discernir a realidade que se apresenta ao
mundo de hoje enquanto capitalista (Ocidente) e a sua negação
(China, países socialistas), supostamente a sua superação,
segundo o credo marxista. Algumas áreas são ainda consideradas
pré-capitalistas, especialmente na África e no Oriente.
Malgrado o uso político que se faz do termo, importa tentar
aqui analisar o seu significado na literatura relevante. Ninguém
discordaria de que por capitalismo entende-se a organização
social assentada na livre iniciativa, na qual impera a igualdade jurídica
de todos os cidadãos e a propriedade privada, existindo a relativa
separação entre o poder econômico e o poder político,
tendo como característica uma radical divisão social do
trabalho, razão pela qual os seus membros, para sobreviverem,
precisam participar do processo de trocas. Essa forma de organização
social mostrou-se a mais produtiva e eficiente quando comparada a qualquer
outra, permitindo que as pessoas, mesmo as mais pobres, tenham um elevado
padrão de vida relativamente a outras formas de organizações
sociais. Só no capitalismo o Homem escapou de muitos dos determinismos
naturais, como fome, doenças e cataclismos diversos que o perseguiram
desde a Noite Original. As interpretações correntes do termo capitalismo são
tão abundantes quanto insatisfatórias, não obstante
a sua definição ser quase banal. Como tive alguns dias
para descansar, decidi reler o clássico de Max Weber A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (Ed.
Pioneira, 2001) e aproveitei para reler a resenha desse livro feita
por Alain Peyrefitte em A Sociedade da Confiança
(Ed. Topbooks, 1999). Não satisfeito, procurei na Internet a
referências e citações sobre o assunto e aparecerem
centenas delas. Lamentavelmente, à exceção do artigo
do professor Meira Penna publicado no Estadão sobre a citada
obra de Peyrefitte e uma introdução a essa obra feita
pelo filósofo Olavo de Carvalho, todo o resto se resume a um
duelo laudatório entre os seguidores de Weber e os seguidores
de Marx. Esse três autores são as referências para a compreensão
dessa forma de organização social. Peyrefitte, como veremos
abaixo, é muito superior aos outros dois, mas lamentavelmente
é pouco divulgado no Brasil. A idéia de Marx, de que a infra-estrutura determina a superestrutura
e que as relações de produção são
determinadas pelo desenvolvimento das forças produtivas, tenta
explicar o processo pelo resultado. Não define as causas determinantes
das transformações nas formas de organizações
sociais. Seria o mesmo que dizer que é dia porque o Sol brilha.
Não explica nada. O fundamental é que ocorre precisamente o contrário da
primeira assertiva a de que a infra-estrutura determina a superestrutura.
Não é casual que o capitalismo é gestado no Ocidente
judeu-cristão e isso Marx não poderia ter colocado em
evidência, tão prisioneiro que estava em seus esquemas
mentais de ódio a tudo que fosse religioso. Preferiu imaginar
um pueril processo mecânico como força determinante da
História, que não resiste à análise de alguém
mais atento. O ponto fundamental é que o Cristianismo, ao abraçar
a máxima do ama o próximo como a ti mesmo,
plantou no Ocidente as condições para que pudesse existir
a igualdade jurídica entre as pessoas numa palavra, a
liberdade fundamento último de todo o sistema jurídico,
político e econômico construído ao longo dos últimos
dois mil anos. O Apóstolo Paulo já bradava ao quatro ventos
que Deus não faz acepção das pessoas
e isso é realmente a grande novidade na História do ponto
de vista sociológico. Sem a mensagem salvadora de Cristo ainda
estaríamos vivendo formas imperiais e/ou tribais de organização
social. Não passa de avaliação de intelectual alienado
a idéia de que as relações de produção
são determinadas pelo desenvolvimento da forças produtivas.
Sem a força salvadora da mensagem cristã a escravidão
e a servidão estariam ainda a vigorar, impossibilitando a explosão
da produtividade do trabalho verificada nos dois milênios que
passaram, com ênfase nos últimos quinhentos anos. A tradição cristã é também herdeira
do racionalismo clássico greco-romano. A combinação
da ética cristã com a filosofia é que permitiu
o que Weber enfatiza como o racionalismo empregado no processo produtivo,
ou seja, o conhecimento científico aproveitado como técnicas
aplicadas à produção. O capitalismo não pode ser definido como um mero processo de
trocas e produção para o mercado, algo que, em maior ou
menor proporção, sempre foi feito ao longo da História.
A novidade é que na sociedade moderna essa forma de produzir
se torna preponderante, combinando liberdade de iniciativa e a busca
de técnicas mais eficientes para produção. Muito
menos lhe dá especificidade o fato de ser uma produção
voltada para o lucro. O lucro nas outras formas de organizações
sociais existe e é freqüentemente, e com razão, identificado
como uma forma de logro ou roubo, vez que nasce muitas vezes da violência
do monopólio e da coerção sobre o consumidor. Na
ordem capitalista, ao contrário, o lucro nasce no processo de
agregação de valor, validado unicamente pelo mercado
pelo consumidor, no livre exercício de sua escolha, no usufruto
da sua liberdade tornando-se o oposto do logro. Há a troca
de equivalentes no mercado, condição para que a liberdade
efetivamente impere. O consumidor passa a ser o centro de interesse
do processo produtivo e o árbitro a determinar quais os produtores
devem sobreviver e quais aqueles que devem desaparecer. A competição
no mercado pelo consumidor é a chave do processo. A análise de Weber é insuficiente por muitos motivos.
Em primeiro lugar e o seu maior erro é associar
a eclosão do capitalismo com o protestantismo, quando na verdade
ele está relacionado com o Cristianismo enquanto tal. Talvez
essa limitação advenha de dois fatos que lhes impediram
um melhor discernimento. Um, a sua condição de protestante.
É como se por sua pena as disputas teológicas e religiosas
de últimos três séculos (seu livro foi publicado
em 1904) ainda continuassem. Há claramente uma visão depreciativa
do catolicismo, ao qual ele associa diretamente o atraso, sem qualificar
corretamente a sua origem. O outro fato é que Weber esqueceu
que durante a Idade Média houve uma explosão da produtividade
agrícola pelo talento dos monges católicos, que inovaram
em técnicas de produção e na organização
do trabalho, tornando-se o pré-requisito para a expansão
econômica dos tempos modernos (Ver Paul Johson História
do Cristianismo, Ed. Imago, 2001). Em segundo lugar, ele esqueceu que o catolicismo foi o herdeiro direto
do Império Romano e era essa herança imperial maldita
que impedia o desenvolvimento econômico na velocidade em que se
deu nos países protestantes. Para piorar, o próprio movimento
de Contra-Reforma foi um instrumento de restauração imperial,
impondo o centralismo e a desconfiança como bem assinalou
Peyrefitte. Em terceiro lugar, ao contrário do que Weber diz (a conduta
ascética significou um planejamento racional de toda vida do
indivíduo. Página 109), foi a herança clássica
que permitiu a racionalização dos meios de produção.
Não podemos jamais esquecer que o Renascimento é precisamente
a redescoberta dos filósofos e poetas da Antiguidade. Escapou a Weber que o fator decisivo é que o Cristianismo reformado
livrou-se das peias do centralismo imperial. Nas áreas liberadas,
como EUA, Inglaterra e Holanda, cujos governos foram reduzidos e a descentralização
administrativa realizada em suma, reduziu-se o Estado e implantou-se
o livre mercado o capitalismo decolou primeiro. O fator explicativo
não é, pois, o protestantismo, mas sim, o Cristianismo
livre das amarras imperiais, que tolhiam as áreas católicas.
Nos EUA ocorreu a máxima liberação das energias
produtivas, vez que desde o início a vigilância dos indivíduos
contra o gigantismo estatal foi a tônica. Longe de mim está a intenção de minimizar a monumental
obra de Max Weber, alguém cuja erudição não
pode ser questionada e cuja seriedade científica não pode
ser posta em dúvida. Mas é preciso questionar a sua principal
conclusão, que a meu ver está errada, pelas razões
acima. Ele, todavia, teve o mérito de retirar os determinantes
econômicos para explicar esse fato histórico da maior relevância.
Isso não é pouca coisa em um mundo acadêmico dominado
pelo equívoco do marxismo. A notável contribuição de Peyrefitte é
deslocar a discussão da Economia para a Etologia na definição
do determinante para a decolagem do processo de desenvolvimento. O fundamental
é a criação de um ambiente de confiança
na relação entre os indivíduos e o Estado e entre
os próprios indivíduos. Ele aponta a grande contradição
que há entre a lógica do império, que centraliza
e desconfia das pessoas, e a lógica dos Estados liberais, em
que acontece o inverso. Para ele, a livre iniciativa não combina com um ambiente hierarquizado,
próprio das relações imperiais. Onde essa relação
foi substituída pela confiança, aconteceu a decolagem
do desenvolvimento. É preciso ler atentamente a obra de Peyrefitte
para uma correta compreensão dos fatos históricos. Os Estados socialistas nada mais fizeram do que restaurar a ordem centralizada
do Império, matando qualquer elemento de confiança que
pudesse ser a semente da prosperidade dos seus povos. Da mesma forma,
o Brasil e, de resto, a América Latina, parecem estar ainda vivendo
a Contra-Reforma e o ideal mercantilista. Pior, alguns já querem
implantar de um golpe a ordem imperial socialista. Como, então,
prosperar? O desenvolvimento não pode ser construído fora
da ordem liberal, que é sinônimo de livre iniciativa e
da relação de confiança. É essa a lição
ensinada por Peyrefitte e nós lamentavelmente ainda não
a aprendemos. |