Leituras recomendadas 146
A política e as características
Por Francisco Campo Proferida no sal�o da Escola de Belas Artes em 28 de setembro de 1935, publicada pela Imprensa Nacional em 1939 e depois recolhida em O Estado Nacional (Rio de Janeiro, Jos� Olympio, 1941), esta confer�ncia �, segundo Wilson Martins, �um dos grandes textos da nossa literatura pol�tica, n�o apenas pela arg�cia prof�tica com que analisava os sinais dos tempos, mas ainda pela alta qualidade do estilo e a gravidade do pensamento�(Hist�ria da Intelig�ncia Brasileira, S�o Paulo Cultrix, 1979, vol. VII, p. 43). A posterior colabora��o de Francisco Campos com o Estado Novo n�o empanaria em nada o brilho desta e de outras contribui��es suas ao pensamento brasileiro, se as id�ias que veiculam n�o tivessem se revelado, justamente por causa de sua veracidade profunda,� imposs�veis de assimilar ao discurso esquerdista oficial, como aconteceu sem maiores problemas com as de tantos outros adeptos do varguismo. �A Pol�tica e as Caracter�sticas Espirituais do Nosso Tempo� � um documento de valor inestim�vel, que por tempo excessivo tem permanecido oculto e esquecido dos estudiosos e do p�blico em geral. Recoloc�-lo em circula��o � um dever essencial, que este site �p�de cumprir gra�as � colabora��o do Prof. Br�ulio Porto Matos, da UnB, que nos presenteou com� um exemplar da primeira edi��o do texto, e ao qual nesta ocasi�o agradecemos. � O. de C.� O aspecto tr�gico das �pocas de transi��oQuando escolhi o tema deste mon�logo, n�o pensei na vossa e na minha impaci�ncia. Ao primeiro golpe de vista, por�m, percebi que o caminho era dif�cil e, sobretudo, longo. E o que o melhor para nos distrair da caminhada� n�o seria um mon�logo, que a torna mais fatigante e mon�tona, mas uma imensa e alegre controv�rsia, em que cada um, sem outro interesse que n�o fosse o interesse pelo jogo das id�ias, confessa assim em voz alta o que realmente pensa sobre o mundo dos neg�cios humanos. Esse mundo est� mudando � nossa vista, e mudando sem nenhuma aten��o para com as nossas id�ias e os nossos desejos. Nele a nossa gera��o n�o encontra resposta satisfat�ria �s quest�es que aprendeu a formular, nem quadram com as solu��es que lhe foram ensinadas por uma laboriosas educa��o os problemas que desafiam a sua compet�ncia. Que esta � a situa��o em que nos encontramos h� mais de vinte anos � o que mostra, com relevo� extraordin�rio, o movimento que se vem operando na educa��o. A esta � que incumbe, com efeito, adaptar o homem �s novas situa��es. Nenhum setor refletir�, portanto, com mais fidelidade a inquieta��o contempor�nea do que aquele cuja fun��o consiste precisamente em adaptar o homem ao ambiente espiritual do nosso tempo. Ora, o que se nota nesse dom�nio � que vai por ele uma grande desarruma��o. Os valores consagrados foram postos em d�vida, sem que se fizesse a sua substitui��o por outros valores. O que caracteriza a educa��o em nossos dias � que ela n�o � uma educa��o para este ou aquele fim, para um quadro fixo, para situa��es mais ou menos definidas, mas n�o sei para que mundo de possibilidades indeterminadas; n�o uma educa��o para tais ou quais problemas, mas uma educa��o para problemas, uma educa��o que se prop�e em n�o a fornecer solu��es, mas a criar uma atitude funcional do esp�rito, isto �, atitude para o que vier, seja o que for e de onde quer que venha, como a sentinela atenta, noite escura, �s sombras e aos rumores. N�o h� mais solu��es, nem problemas que possam antecipadamente ser postos em equa��o. H� apenas uma situa��o problem�tica, ou, antes, situa��o que muda segundo uma raz�o que ainda n�o conseguimos fixar. De onde n�o poder a educa��o exercer-se sobre problemas definidos, que, postos hoje em certos termos, ter�o amanh� configura��o diversa, exigindo novo exame em outra posi��o relativa dos elementos. Acontece, por�m, que essa � uma educa��o ainda � procura dos seus m�todos, -- se � poss�vel, numa educa��o para problemas, encontrar-se um m�todo que n�o seja igualmente problem�tico. O fato � que os m�todos tradicionais foram postos de lado e que ainda n�o foram encontrados os novos m�todos. Estamos diante do problema de como tratar satisfatoriamente n�o problemas definidos, mas simplesmente problemas de que n�o podemos antecipar os termos ou prever a configura��o dos elementos. Esta s� poder� ser, evidentemente, a educa��o do futuro e para o futuro. H�, por�m, o problema das gera��es j� educadas, ou em curso de educa��o, das que foram ou est�o sendo precisamente educadas num determinado clima espiritual ou pressuposto de haver problemas definidos suscet�veis de solu��es definidas. Essas gera��es foram ou est�o sendo educadas por um mundo anterior ao atual, por um mundo em que havia tipos e arqu�tipos, por um mundo de esp�rito plat�nico, um mundo de ordem e de hierarquia, um mundo de modelos e de formas e em que os problemas eram d�ceis e educados como essas �rvores de jardim que obedecem, no seu crescimento, � dire��o do jardineiro. E enquanto, na pedra de aula, no papel e nas prele��es, os educadores constru�am os modelos segundo os quais haviam de configurar-se os problemas humanos, estes, como se o mundo houvesse passado da escala de Plat�o para a de Her�clito, estavam precisamente mudando, por�m mudando num sentido estranho, porque segundo uma raz�o que n�o era a da mec�nica dos quadros negros e sob a influ�ncia de valores n�o computados na tabula��o das pessoas educadas. Da�, o mundo da interpreta��o, -- constru�do segundo os nossos desejos, e o mundo da realidade, -- refrat�rio a um sistema interpretativo em desacordo com a escala e o passo dos acontecimentos. � o aspecto tr�gico das �pocas chamadas de transi��o. A �poca de transi��o � precisamente aquela em que o passado continua a interpretar o presente; em que o presente ainda n�o encontrou as suas formas espirituais, e as formas espirituais do passado, com que continuamos a vestir a imagem do mundo, se revelam inadequadas, obsoletas ou desconformes, pela sua rigidez, com um corpo de linhas ainda indefinidas ou cuja subst�ncia ainda n�o fixou seus p�los de condensa��o. N�s fomos educados pelo passado para um mundo que se suponha continuassem a se modelar pela sua imagem. O nosso sistema de refer�ncias continuou a ser o que fora calculado para um mundo de rela��es definidas ou constantes, mas n�s nos vemos confrontados com uma realidade em que as posi��es n�o correspondem �s fixadas na carta topogr�fica. O que chamamos �poca de transi��o � exatamente esta �poca profundamente tr�gica em que se torna agudo o conflito entre as formas tradicionais do nosso esp�rito, aquelas em que fomos educados e de cujo �ngulo tomamos a nossa perspectiva sobre o mundo, e as formas in�ditas sob as quais os acontecimentos apresentam a sua configura��o desconcertante. Nas �pocas de transi��o, o presente, ainda n�o acabada a resson�ncia da sua hora, j� se converteu em passado. O dem�nio do tempo, como sobre a tens�o e escatol�gica da pr�xima e derradeira cat�strofe, parece acelerar o passo da mudan�a, fazendo desfilar diante dos olhos humanos, sem as pausas a que eles estavam habituados, todo o seu jogo de formas que, nas condi��es normais, teriam que ser distribu�das segundo uma linha de sucess�o mais ou menos definida e coerente.� Da� o car�ter problem�tico de tudo: a acelerado o ritmo da mudan�a, toda situa��o passa a provis�ria, e a atitude do esp�rito h� de ser uma atitude de permanente adapta��o n�o as situa��es definidas, mas simplesmente de adapta��o � mudan�a. A fun��o normal do esp�rito (normal pelo menos em rela��o aos c�nones at� ent�o consagrados pela escala de refer�ncias v�lida, ou tida como v�lida fossem quais fossem as circunst�ncias), passou a ser precisamente o oposto, isto �, a de mudar perp�tua mente o seu sistema de refer�ncias, em fun��o de posi��es em movimento. Educa��o para o que der e vierNunca se p�s em quest�o, de uma vez, t�o grande n�mero de pontos de f�. Nunca falhou em t�o grande escala a confian�a humana na coer�ncia do universo do pensamento e do universo da a��o. H� uma voca��o do mundo moderno para os problemas e um correspondente ceticismo em rela��o �s solu��es. Pode-se dizer que o homem do nosso tempo p�s de novo em equa��o, transformando-as em problemas, todas as solu��es que constitu�am a sua heran�a intelectual, pol�tica e moral. A educa��o reflete esse estado de coisas.� O que se quer � que ela seja uma educa��o para problemas, e n�o para solu��es, n�o para este ou aquele regime de vida, pois n�o se sabe ou n�o se acredita saber em que quadro de linhas m�veis e flutuantes ir� o homem viver.� Como educar para a democracia, se esta n�o � hoje sen�o uma cafarnaum de problemas, muitos dos quais propondo quest�es cuja solu��o prov�vel implicar� o abandono dos seus valores b�sicos ou fundamentais? Educa��o individualista ou educa��o para um mundo de massas, de coopera��o ou de configura��o coletiva do trabalho, do pensamento e da a��o? Nenhuma, nem outra coisa, mas uma educa��o para o que der e vier, como se estivessemos preparando uma equipe de aventureiros para uma expedi��o em que tivessem de consumir a sua vida adaptando-se as circunst�ncias que n�o poder�amos prever e realizando obras de trabalhos nunca antes realizados pela ra�a humana. A problem�tica de hoje envolve todos os aspectos da vida. A nossa subst�ncia espiritual, se se pode chamar de subst�ncia o movimento, � toda ela constitu�da de problemas. Perdemos as aquisi��es substanciais do passado e n�o constitu�mos ainda novo patrim�nio. Um patrim�nio espiritual � um conjunto de valores organizado segundo um sistema mais ou menos coerente de refer�ncias em que cada um tem a sua posi��o definida em rela��o � dos demais. Pois bem, desarrumamos o sistema de valores que constitu�a a nossa heran�a espiritual.� N�o h� mais uma reflex�o fixa ou constante entre os valores. Todos ele se tornaram relativos, e n�o apenas o sentido de serem relativos entre si, ou a um valor fundamental, mas de serem relativos simplesmente, isto �, de n�o guardarem entre si nenhuma rela��o. Se se pode chamar de sofistica essa atitude problem�tica do esp�rito, a sof�stica de nossos dias n�o se pode comparar, em dimens�o espiritual, com a sofistica dos Gregos. A sofistica moderna�Entre S�crates e os sofistas havia um di�logo, ou uma discuss�o, porque um em outros admitiam valores comuns, pelo menos um valor -- o valor de verdade. A sofistica de hoje, embora continuando a empregar a linguagem dos valores tradicionais, eliminou a subst�ncia de qualquer valor, at� do valor de verdade, pois a sua significa��o passou a ser exatamente o contr�rio, o valor de verdade n�o constituido precisamente na verdade, mas naquilo que, n�o sendo a verdade, funciona, entretanto, como verdade. Teremos oportunidade de ver a import�ncia dessa atitude do esp�rito n�o mais no plano da especula��o, por�m da mais pr�tica das pr�ticas, que � a pr�tica pol�tica. Veremos, com efeito, como se constituiu uma teologia pol�tica que tem por subst�ncia a afirma��o de que o seu dogma fundamental deve ser acreditado como verdadeiro, embora declare que o seu valor n�o � precisamente um valor de verdade. A teologia soreliana do mito pol�tico n�o � mais do que uma aplica��o, como o reconhece o seu pr�prio autor, da filosofia de Bergson e, pensamos n�s, mais diretamente do pragmatismo anglo-sax�o e do seu conceito de verdade. Do estudo das condi��es do mundo moderno, Sorel chegou � conclus�o de que s� uma revolu��o total mudar� o sistema de posi��es de for�as econ�mico-pol�ticas, cujas injusti�as tanto o impressionaram. No seu entender, por�m, aquela revolu��o n�o resultar� fatalmente das condi��es internas do regime capitalista, como queria Marx, pois a estrutura social � mais complexa do que a descrita pelo marxismo, que a reduziu � oposi��o entre duas classes.� A id�ia de Marx n�o � verdadeira, mas, acreditada como verdade, constitui o �nico instrumento capaz de conduzir � grande revolu��o. Conv�m, portanto, o cultivar a id�ia de luta de classes e forjar um instrumento intelectual ou, antes, uma imagem dotado de grande carga emocional, destinada a servir de polarizador das id�ias ou, melhor, dos sentimentos de luta e de viol�ncia t�o profundamente ancorados na natureza humana. Esta imagem � um mito. N�o tem sentido indagar, a prop�sito de um mito, do seu valor de verdade. O seu valor � de a��o. O seu valor pr�tico, por�m, depende, de certa maneira, da cren�a no seu valor te�rico, pois um mito que se sabe n�o ser verdadeiro deixa de ser mito para ser mentira. Na medida, pois, em que o mito tem um valor de verdade, � que ele possui um valor de a��o, ou um valor pragm�tico.� Papel do mito sorelianoO papel do mito soreliano �, portanto, equ�voco, e nisto reside a sua principal vantagem, ou a principal vantagem que lhe atribui Sorel, e que consistem em ser irrefut�vel: quand on se place sur ce terrain d�s mythes, on est �a l�bri de toute refutation. �A impossibilidade de refutar Sorel est� precisamente em que ele atribui ao mito dois valores contradit�rios: o valor de verdade para os que acreditam no mito, e o valor de artif�cio puramente t�cnico o para os que sabem que se trata apenas de uma constru��o do esp�rito. Atacado do ponto de vista da teoria do conhecimento, Sorel sorri da obje��o, alegando que ele prop�e n�o uma verdade, mas o oposto da verdade. Mas, quando atacado, no terreno pr�tico, pelo argumento de que o mito s� funcionar� como motivo de a��o enquanto conservar o seu valor de verdade, responder� que isto equivale a reconhecer ao mito um valor puramente de verdade, porque o que nele se postula � a impossibilidade da sua realiza��o e, portanto, o seu car�ter �ltimo final de inverific�vel. A sofistica atual tem dois crit�rios de verdade: a verdade que se sabe ser a verdade, pois, se n�o houvesse um crit�rio da verdade, n�o haveria como de extinguir entre mito e verdade, e a verdade que embora n�o sendo verdadeira, funcionar� indefinidamente como verdade, porque o que ela postula da realidade �, por defini��o, insuscet�vel de verificar-se. A refuta��o de Sorel torna-se, assim, imposs�vel, n�o porque a sua doutrina seja irrefut�vel, mas porque ele mesmo se encarregou de refut�-la por antecipa��o. N�o se arromba, evidentemente, uma porta aberta, nem se toma de assalto uma fortaleza abandonada. N�o se poder�, entretanto, contestar que a fortaleza tenha sido ocupada, porque nela j� n�o se encontravam os seus defensores. A duplicidade do mito, no sentido soreliano, n�o se limita apenas ao plano te�rico. Toda a t�cnica, ainda a do esp�rito, � indiferente aos fins. A t�cnica espiritual da viol�ncia, que Sorel havia constru�do com o fim de tornar agudo o antagonismo entre duas classes, mobilizando-as para uma guerra permanente, tinha por objeto, de acordo com as tend�ncias e simpatias intelectuais do autor, dissolver a unidade do Estado, constru�da pelos juristas e gra�as ao emprego de m�todos artificiosos de racionaliza��o pr�prios � teologia, no multiverso pol�tico do sindicalismo. Fichte e a sua f�rmula pat�ticaAconteceu, por�m, que a t�cnica espiritual da viol�ncia, destinada por Sorel a dissolver a unidade do cosmos pol�tico, haveria de ser empregada logo depois no sentido absolutamente oposto, precisamente no sentido de p�r fim � luta de classes e refor�ar a unidade pol�tica do Estado.� Ao polite�smo pol�tico de Sorel, e pelos mesmos processos e intelectuais de que ele se servia, opunha-se, de maneira vitoriosa, a teologia monista do nacionalismo. Em seu discurso de outubro de 1922, em N�poles, antes da marcha sobre Roma, dizia Mussolini, traindo a leitura recente de Sorel: "criamos nosso mito. O mito � uma cren�a, uma paix�o. N�o � necess�rio que seja uma realidade.� � realidade efetiva, porque est�mulo, esperan�a, f� e �nimo. Nosso mito � a na��o; nossa f�, a grandeza da na��o". Ali�s, n�o h�, no nacionalismo italiano e alem�o, nenhum conte�do espiritual novo. O mito da Na��o j� se encontrava constru�do um com todo o seu ethos e, sobretudo, o seu pathos, nos Discursos de Fichte � Na��o Alem�. A ret�rica nacionalista dos nossos dias, por mais alto que tenha elevado a sua nota de paix�o, ainda n�o encontrou f�rmulas em que se condensasse com mais vigor a carga emocional do mito tot�mico do moderno matriarcado pol�tico nacionalista do que nas� de Fichte: "a aspira��o natural do homem � realizar, no temporal, o eterno. O homem de cora��o nobre possui uma vida eterna sobre a terra. A f� na dura��o eterna da atividade do homem na terra encontra o seu fundamento na esperan�a da dura��o eterna do povo que lhe deu a exist�ncia. O car�ter racial do seu povo � o elemento eterno ao qual o homem liga a sua pr�pria eternidade e a� toda a sua obra. � a ordem de coisas eternas na qual o homem p�e o que ele mesmo tem de eterno." A declara��o da Carta Del Lavoro sobre a� unidade da na��o faz o papel de uma p�lida f�rmula jur�dica, destitu�da de alma e de f�, diante das f�rmulas pat�ticas de Fichte sobre a unidade e a eternidade da Na��o. A unidade desta n�o se funda na unidade do regime jur�dico, representada pela constitui��o e pelos c�digos, mas no sentimento de que a na��o � o envolt�rio do eterno. Nunca o Estado totalit�rio encontrou uma express�o mais en�rgica do que esta: "o Estado, alto administrador dos neg�cios humanos, autor respons�vel, diante de Deus e perante a sua consci�ncia, de todos os seres menores, t�m plenamente o direito de constranger estes �ltimos � sua pr�pria salva��o. O valor supremo n�o � o homem, mas a na��o e o Estado, aos quais o homem deve o sacrif�cio do corpo e da alma".� Tudo que constitui conte�do espiritual dos novos regimes pol�ticos j� se encontra no romantismo alem�o. O estado racionalista, racista, totalit�rio, a submers�o dos indiv�duos no seio tot�mico do povo, da ra�a, da na��o, � o Estado de Fichte e de Hegel, o pathos rom�ntico do inconsciente coletivo, seio� materno dos desejos e dos pensamentos humanos. O que � novo � a alian�a do ceticismo com o romantismo, o emprego, pelos sofistas contempor�neos, das constela��es rom�nticas como instrumento ou como t�cnica de controle pol�tico, tornando ativas, atrav�s da ressurrei��o das formas arcaicas do pensamento coletivo, as emo��es de que elas continuam a ser os p�los de condensa��o e de express�o simb�lica. Ali�s, o estado de alma favor�vel � germina��o dos mitos pol�ticos da viol�ncia j� vinha sendo preparado antes da guerra.� Esta acabou por libertar for�as que at� ent�o se vinham mantendo em estado de lat�ncia gra�as � cren�a, embora j� vacilante, em certas formas tradicionais de cultura moral e pol�tica, de que o grande conflito acabou por mostrar a tenuidade, para n�o dizer a aus�ncia, de subst�ncia ou de medula espiritual. As filosofias anti-intelectualistas do fim do s�culo XIX e do princ�pio do s�culo XX, dando novos fundamentos ao ceticismo das elites na raz�o, n�o lhes forneceu novos conte�dos espirituais, a n�o ser a vaga indica��o, tanto mais poderosa quanto mais vaga, de que os valores supremos da vida n�o constituem o objeto de conhecimento racional, podendo apenas ser traduzidos em s�mbolos ou em mitos, isto �, em express�es destitu�das de valor te�rico, cuja fun��o n�o � dar a conhecer, mas t�o-somente reviver os estados de consci�ncia ou as emo��es de que s�o apenas a imagem mais ou menos inadequada. Primado do irracionalAssim se instalava no centro da vida o primado do irracional, e, em se tratando de formas coletivas de vida, o primado do inconsciente coletivo, por interm�dio de cujas for�as subterr�neas ou tel�ricas se tornava poss�vel realizar, de modo mais ou menos completo, a integra��o pol�tica, que o emprego da raz�o somente obtivera de maneira prec�ria e parcial.� O irracional � o instrumento da integra��o pol�tica total, e o mito, que � a sua express�o mais adequada, a t�cnica intelectualista de uma utiliza��o do inconsciente coletivo e para o controle pol�tico da na��o. Assim, as filosofias anti-intelectualistas forneciam aos c�ticos n�o uma f� ou uma doutrina pol�tica, mas uma t�cnica de golpe de Estado. Ao servi�o dessa� t�cnica espiritual coloque o maravilhoso arsenal, constru�do pela intelig�ncia humana, de instrumentos de sugest�o, de intensifica��o, de amplia��o, de propaga��o e de cont�gio de emo��es, e terei isso o quadro dessa evoca��o f�ustica dos elementos arcaicos da� alma humana, de cuja subst�ncia nebulosa e indefinida se comp�e a medula intelectual da teologia pol�tica do momento. N�o h� para esta teologia processos racionais de integra��o pol�tica. A vida pol�tica, como a vida moral, � do dom�nio da irracionalidade e da ininteligibilidade. O processo pol�tico ser� tanto mais eficaz quanto mais inintelig�vel. Somente o apelo �s for�as irracionais ou �s formas elementares da solidariedade humana tornar� poss�vel a integra��o total das massas humanas em regime de Estado. O Estado n�o � mais do que a proje��o simb�lica da unidade da Na��o e essa unidade comp�e-se, atrav�s dos tempos, n�o de elementos nacionais ou volunt�rios, mas de uma cumula��o de res�duos de natureza inteiramente irracional.� Tanto maiores as massas a serem politicamente integradas, quanto mais poderosos h�o de ser os instrumentos espirituais dessa integra��o, a categoria intelectual das massas n�o sendo a do pensamento discursivo, mas a das imagens e dos mitos, a um s� tempo int�rpretes de desejos e libertadores de for�as elementares da alma. A integra��o pol�tica pelas for�as irracionais � uma integra��o total, porque o absoluto � uma categoria arcaica do esp�rito humano. A pol�tica transforma-se dessa maneira em teologia. N�o h� formas relativas de integra��o pol�tica, e o homem pertence, alma e corpo � Na��o, ao Estado, ao partido. As categorias da personalidade e da liberdade s�o apenas ilus�es do esp�rito humano. S� � livre o que perde a sua personalidade, submergindo-a no seio materno onde se forjam as formas coletivas do pensamento e da a��o, ou, como diz Gentile, aquele que sinta o interesse geral como o seu pr�prio e cuja vontade seja a vontade do todo. O indiv�duo n�o � uma personalidade espiritual, mas uma realidade grupal, partid�ria ou nacional. � o restabelecimento da rela��o em que estava o homem primitivo com o seu� cl�.� Tentativa de defini��oFa�amos uma breve pausa para ver se conseguimos reagrupar, numa tentativa de configura��o, as caracter�sticas espirituais do nosso tempo, ou do novo ciclo de cultura que parece abrir-se, com a nossa �poca, para a humanidade. A pol�tica � solid�ria das outras formas de cultura. N�o � um dom�nio isolado, se n�o um elo na cadeia de formas espirituais, cuja constela��o d� a cada cultura a sua configura��o individual ou a suas caracter�sticas fision�micas. A irracionalidade e o sentimento da mudan�a, eis as duas notas dominantes ou as t�nicas da alma contempor�nea. As categorias coletivas do pensamento e da a��o constituem hoje as formas espirituais expressivas do nosso tempo, em todos os dom�nios da atividade humana. H� como que uma volta � comunh�o tot�mica, sens�vel nas grandes concentra��es urbanas do mundo moderno, e, nestas, o fen�meno, apenas em come�o, da tend�ncia � super condensa��o n�o somente sob a forma de habita��es coletivas, como sob todas as demais formas de vida em comum, em que tudo se torna t�pico, uniforme e coletivo, ou em que todos participam de tudo, por que h� uma participa��o rec�proca ou cada um est� em rela��o aos outros em um estado mais ou menos equ�voco de participa��o ou de comunh�o. As formas de vida �ntima ou pessoal tendem a desaparecer. O estado de massa gera a mentalidade de massa, propaga e intensifica as express�es pr�prias a essa mentalidade. A moderna teologia pol�tica � o resultado de uma cultura de massa, pois que, em cada �poca, os processos espirituais de integra��o pol�tica s� podem ser determinados pelas formas expressivas ou dominantes da sua cultura. J� houve uma integra��o pela f�, nas �pocas de religi�o, e uma fraca integra��o, ou, antes, uma tentativa de integra��o pol�tica por processos intelectuais, o ao menos de apar�ncia intelectual, quando as massas, em raz�o do seu volume relativamente reduzido e da defici�ncia da t�cnica das comunica��es, o melhor, no cont�gio, eram antes um elemento passivo, ainda n�o dotado, como em nosso tempo, de unidade de alma e de a��o. Ora, uma integra��o pol�tica num regime em que se torna poss�vel organizar e mobilizar as massas s� se pode operar mediante for�as irracionais, e a sua tradu��o s� � poss�vel na linguagem bergsoniana do mito, n�o, por�m, de um mito qualquer, mas, precisamente, do mito da viol�ncia, que � aquele em que se condensam as mais elementares e poderosas emo��es da alma humana. Condensemos, por�m, o pensamento, procurando indicar, em alguns tra�os, de valor apenas sugestivo, as demais notas que se agrupam em torno das duas t�nicas a que j� nos referimos � a irracionalidade e o sentimento da mudan�a. A volta � comunh�o tot�mica, f�rmula sint�tica que tenta exprimir esse estado de participa��o rec�proca criado pela forma moderna da vida no quadro da massa, tem como resultado a atribui��o de um valor especial �s categorias instintivas e irracionais do pensamento e da a��o, categorias em que a alma coletiva encontra a sua tradu��o espont�nea e natural. A irracionalidade e a tend�ncia � mudan�a -- esta �ltima t�o profundamente ligada �s formas emotivas do pensamento e categoria espec�fica da l�gica do irracional ou dos sentimentos -- determinam a confian�a nas for�as obscuras da gera��o, colocando, na escala dos valores, acima do ser, que � a categoria ol�mpica ou masculina -- a da ordem da hierarquia, da clareza, da intelig�ncia, da raz�o -- o "em ser", a prefer�ncia pelo que n�o se deixa traduzir em forma coerente, a aspira��o f�ustica, sem p�lo definido, o mundo dos desejos, a que falta a ordem da autoridade paterna, confundido ou identificado com o mundo da realidade, o frenesi dionis�aco, que procura exorcizar o dem�nio do tempo n�o pelo sentimento do eterno, mas por meios mec�nicos e temporais -- a velocidade, a instantaneidade, a simultaneidade. O homem moderno entrega-se ao em ser com a ilus�o de ser mais do que o ser, que � para ele a morte, isto �, a objetividade, a lucidez, o reconhecimento do limite entre o mundo dos desejos e o da realidade. Pragmatismo, bergsonismo, teosofismo, espiritismo, comunismo: instrumentos de exorcismo da autoridade ol�mpica ou paterna, que imprime ordem, hierarquia, disciplina �s tend�ncias e paix�es, que eles visam libertar da forma e da medida, ou, antes, meios de satisfa��o de desejos contrariados pela realidade. O mito � o meio pelo qual se procura disciplinar e utilizar essas for�as desencadeadas, construindo para elas um mundo simb�lico adequado �s suas tend�ncias e desejos. O mito sobre que se funda o processo de integra��o pol�tica ter� tanto mais for�a quanto mais nele predominarem os valores irracionais.� O mito da na��o incorpora grande n�mero desses elementos arcaicos. O seu contexto n�o �, por�m, um contexto de e experi�ncias imediatas. Ele se constitui em grande parte de abstra��es ou pelo menos de imagens destitu�das, pelo car�ter remoto das suas rela��es com a experi�ncia imediata, de uma carga afetiva a atual ou capaz de organizar e configurar, numa s�ntese motora, as imagens com que n�o est� em liga��o direta ou em rela��o de continuidade. A personalidade � um mito em que o tecido dos elementos irracionais � mais denso e compacto. As massas encontram no mito da personalidade, que � constitu�do de elementos da sua experi�ncia imediata, um maior poder de express�o simb�lica do que nos mitos em cuja composi��o entram elementos abstratos ou obtidos mediante um processo mais ou menos intelectual de infer�ncias e ila��es. Da� a antinomia, de apar�ncia irracional, de ser o regime de massas o clima � ideal da personalidade, a pol�tica das massas a mais pessoal das pol�ticas, e n�o ser poss�vel nenhuma participa��o ativa das massas na pol�tica da qual n�o resulte a apari��o de C�sar. O mito da na��o, que constitu�a o dogma central da teologia pol�tica sob cujo regime vive hoje uma das zonas mais volumosas e significativas da cultura contempor�nea, j� se encontra abaixo da linha do horizonte, enquanto assistimos � ascens�o do micros solar da personalidade, em cuja m�scara de Gorgona as massas� procuram ler os decretos do destino. Apari��o de C�sarAs massas encontram-se sob a fascina��o da personalidade carism�tica. Esta � o centro da integra��o pol�tica. Quanto mais volumosas e ativas as massas, tanto mais a integra��o pol�tica s� se torna poss�vel mediante o ditado de uma vontade pessoal. O regime pol�tico das massas � o da ditadura. A �nica forma natural de express�o da vontade das massas � o plebiscito, isto �, voto-aclama��o, apelo, antes do que a escolha. N�o o voto democr�tico, express�o relativista e c�tica de prefer�ncia, de simpatia, do pode ser que sim pode ser que n�o, mas a forma un�voca, que n�o admite alternativas, e que traduz a atitude da vontade mobilizada para a guerra. H� uma rela��o de contraponto entre massa e C�sar. Os ouvidos habituados a distinguir, � dist�ncia, o rumor das coisas que se aproximam, percebem, sob o tropel confuso das massas, cuja sombra come�a a dominar o horizonte da nossa cultura, os passos do homem do destino. Essa rela��o entre o cesarismo e a vida no quadro das massas � hoje um fen�meno comum. N�o h�, a estas horas, pa�s que n�o esteja � procura de um homem, isto �, de um homem carism�tico, ou marcado pelo destino para dar �s aspira��es da massa uma express�o simb�lica, imprimindo a unidade de uma vontade dura e poderosa ao caos de ang�stia e de medo de que se comp�e o pathos ou a demonia das representa��es coletivas. N�o h� hoje um povo que n�o clame por um C�sar. Podem variar as dimens�es espirituais em que cada povo representa essa figura do destino. Nenhum, por�m, encontrando a m�scara terr�vel, em que o destino tenha posto o sinal inconfund�vel do seu carisma, deixar� de colocar nas suas m�os a t�bua em branco os valores humanos. O mundo pol�tico f�ra constru�do � imagem do mundo forenseA entrada das massas no cen�rio pol�tico, com seu irreprim�vel pathos plebiscit�rio e os novos instrumentos m�ticos de configura��o intelectual do processo pol�tico, que �, de si mesmo, ou, por natureza, e racional, ou apenas suscet�vel de uma inteligibilidade parcial, j� est� exercendo sobre ele uma influ�ncia decisiva, no sentido de torn�-lo cada vez mais irracional, e de latente em ostensivo o estado de viol�ncia, que constitui o potencial energ�tico at� aqui dissimulado pelas ideologias racionalistas e liberais, e do qual, em �ltima an�lise, resultam as decis�es pol�ticas. Essa influ�ncia traduz-se, de modo particular, pelo div�rcio, hoje confessado, entre a democracia e o liberalismo. O sistema democr�tico-liberal fundava-se, com efeito, no pressuposto de que as decis�es pol�ticas s�o obtidas mediante processos racionais de delibera��o e que a dial�tica pol�tica n�o � um estado din�mico de for�as, mas de tens�o puramente ideol�gica, capaz de resolver-se num encontro de id�ias, como se se tratasse de uma pugna forense. Haveria aqui toda uma p�gina a escrever sobre a influ�ncia da mentalidade forense e da sof�stica jur�dica na tentativa de dissimula��o ou de subtiliza��o da subst�ncia de irracionalidade que constitui, de modo espec�fico, a medula do processo pol�tico. O sistema intelectual, que constitui o pressuposto ou a premissa maior inarticulada do liberalismo do s�culo passado, construiu o mundo pol�tico � imagem do mundo forense, ampliando ao plano ou ao teatro da a��o pol�tica as categorias formalistas do processo do foro, no quadro das quais se resolvem, de acordo com as premissas ou as presun�oes infantis do pensamento jur�dico, por uma balan�a de argumentos ou por uma dial�tica de id�ias e de raz�es, os conflitos submetidos � arbitragem do juiz. Para essa psicologia intelectualista, as decis�es resultam exclusivamente de elementos intelectuais, a subst�ncia irracional da vontade representando apenas como instrumento passivo destinado a obedecer e executar os decretos da raz�o. De acordo com esses pressupostos intelectualistas � que se construiu a teologia democr�tico-liberal. Para esta, com efeito, a decis�o pol�tica � objeto de um processo puramente intelectual, n�o se reservando outro papel � vontade que o de cumprir as decis�es da intelig�ncia. Da� a divis�o dos poderes: de um lado o parlamento, deliberando pela t�cnica das discuss�es ou da dial�tica racional, de cujo funcionamento resultariam, por hip�tese, as decis�es pol�ticas; de outro lado, o executivo, centro da vontade, e a que se reserva n�o a faculdade de tomar decis�es, mas simplesmente de executar a delibera��o do parlamento. A extens�o desses pressupostos a todo processo democr�tico, e, particularmente, ao da formula��o da vontade geral, d� a imagem esquem�tica da aplica��o dos processos forenses �s delibera��es pol�ticas. H�, certamente, no processo democr�tico, um irredut�vel momento de irracionalidade, que �, precisamente, o da formula��o da vontade geral mediante o voto. A este momento, por�m, a democracia faz preceder, como no processo parlamentar das decis�es pol�ticas, o da livre discuss�o, destinado a esclarecer as vontades convocadas a participar da delibera��o final. A elei��o, que � um julgamento de Deus, vem, assim, a revestir-se, como a decis�o do juiz no processo forenses e a dos representantes do povo no processo parlamentar, de uma apar�ncia de racionalidade, que satisfaz plenamente �s modestas exig�ncias intelectuais do sistema. Este, por�m, s� se completa por um pressuposto �ltimo e final, que � da exist�ncia de uma opini�o p�blica em que as raz�es de um e de outro lado s�o cuidadosamente pesadas em vista de uma decis�o racional ulterior. A t�cnica de forma��o, ou de organiza��o, em um foro comum, do conglomerado ca�tico das opini�es individuais, de cuja condensa��o num p�lo �nico se constitui a opini�o p�blica, � o arsenal com que o liberalismo contribui para o aparelhamento intelectual da democracia: a liberdade de reuni�o, de associa��o, de imprensa e das demais manifesta��es do pensamento. Segundo o postulado liberal, o processo pol�tico, passando por essas fases de tratamento ou de elabora��o forense, d� em resultado decis�es conformes � raz�o, ou ao crit�rio de justi�a ou de verdade. A publicidade e a discuss�o constituem garantias de que as decis�es pol�ticas incorporar�o no seu contexto os elementos de raz�o e de justi�a que constituem, segundo o otimismo beato do sistema liberal, o fundo inalien�vel da natureza humana. A publicidade e a discuss�o passam a ser, assim, o sortil�gios mediante o qual o orfismo democr�tico fascina as for�as ct�nicas do inconsciente coletivo, submetendo-as � disciplina da raz�o, e operando, dessa maneira, a transforma��o da for�a em direito, e da din�mica dos interesses e tend�ncias em conflito em uma delicada balan�a de id�ias, diante de cujos resultados a vontade e se inclina em rever�ncia. Quando o baixo profundo de Caliban interrompeu a voz de ArielDurante algum tempo o sistema p�de funcionar segundo as regras do jogo, porque o processo pol�tico que se limitava a reduzidas zonas humanas e o seu conte�do n�o envolvia sen�o estados de tens�o ou de conflito entre interesses mais ou menos suscet�veis de um controle racional e acess�veis, portanto, ao tratamento acad�mico das discuss�es parlamentares. De repente, por�m, amplia-se o quadro: o controle pol�tico tende a abranger massa cada vez mais volumosa de interesses, entre os quais o estado de conflito tende a assumir a forma da tens�o polar, refrat�ria aos processos femininos de persuas�o e da sof�stica forense, e as zonas humanas do poder v�em aumentadas, em escala sem precedentes, a sua �rea, a sua densidade, e sobretudo a sua inquieta��o conseq�ente � instabilidade das rela��es din�micas entre os� centros de interesse de cujo contato resulta, efetivamente, a centelha das decis�es pol�ticas. Verifica-se, ent�o, que a concep��o forenses de mundo, constru�da pelo liberalismo para uma fase eminentemente benigna de pens�o ou de conflito econ�mico e pol�tico, de cujos estados de �nfase se comp�e a subst�ncia da hist�ria, conseguira apenas dissimular, gra�as �s formas atenuadas e � escala reduzida do processo pol�tico, a irracionalidade que � da sua ess�ncia e constitui o seu car�ter espec�fico. Sob a m�scara socr�tica com a qual a risonha leviandade otimista do racionalismo liberal tentara dissimular aos seus pr�prios olhos o car�ter tr�gico dos conflitos pol�ticos, a pr�pria democracia come�a a perceber os tra�os terr�veis da G�rgona multitudin�ria e a distinguir, intervindo na �ria composta para o delicado registro de voz de Ariel, o baixo profundo de Caliban entoando o encanto da sua liberta��o das guenas hist�ricas do ostracismo pol�tico. Durante s�culos, as for�as cresceram encadeadas e em sil�ncio, esperando que soasse a hora com que o destino costuma advertir que � chegada a sua vez de imprimir � hist�ria o selo do seu car�ter tr�gico e a configura��o demon�aca do seu estilo. Ent�o come�a para os homens a tarefa de decifrar o enigma da inintelig�vel rela��o entre a vontade humana e a grandeza ou a envergadura dos acontecimentos que excedem os prop�sitos ou as inten��es a que os nossos h�bitos racionalistas costumam atribui-los ou imput�-los. Todas as grandezas hist�ricas, as que mordem na terra o seu sinal indel�vel, t�m tanta rela��o com vontade deliberada do homem quanto� o signo de Salom�o com os insond�veis des�gnios do destino. N�s come�amos a penetrar num desses climas hist�ricos, que se encontram sob o sinal do destino. O clima das massas � o das grandes tens�es pol�ticas, e as grandes tens�es pol�ticas n�o se deixa resumir em termos intelectuais, nem em pol�mica de id�ias. O seu processo dial�tico n�o obedece �s regras do jogo parlamentar e desconhece as premissas racionalistas do liberalismo. Com o advento pol�tico das massas, a irracionalidade do processo pol�tico, que o liberalismo tentara dissimular com seus postulados otimistas, torna-se de uma evid�ncia t�o lapidar, que at� os professores, jornalistas e literatos, deposit�rios do patrim�nio intelectual da democracia, entram a temer pelo destino te�rico do seu tesouro ou da suma teol�gica cuja subst�ncia espiritual parece amea�ado de perder a sua pesquisa significa��o. Assistimos, ent�o, a essa manobra de grande estilo das institui��es democr�ticas: o seu div�rcio ostensivo e declarado do liberalismo. O regime de discuss�o, que n�o conhecia limites, e passa a ter fronteiras definidas e intranspon�veis. A opini�o, pressuposto b�sico da livre discuss�o e do sistema de opini�o, s� pode exercer-se entre termos mais ou menos indiferentes, ou entre os quais n�o existam estado agudo de tens�o, de conflito polar ou de extremada antinomia. As decis�es pol�ticas fundamentais s�o declaradas tabu e integralmente subtra�das ao princ�pio da livre discuss�o. O sistema constitucional � dotado de um novo dogma, que consiste em pressupor acima da constitui��o escrita uma constitui��o n�o escrita, na qual se contem a regra fundamental de que os direitos de liberdade s�o concedidos em sobre a reserva de se n�o envolverem no seu exerc�cio os dogmas b�sicos ou as decis�es constitucionais relativas � subst�ncia do regime. A opini�o se demarca, dessa maneira, um campo reduzido de op��o, no qual t�o-somente se encontram as decis�es secund�rias ou os temas partid�rios que n�o interessa aos p�los extremos do processo pol�tico, exatamente aqueles em torno dos quais se organizam e concentram as constela��es de interesse e de emo��o de maior poder ou de mais intensa carga din�mica. Assim, a democracia, para salvar as apar�ncias de racionaliza��o do sistema pol�tico, recorre, como �ltima ratio ou como recurso de defesa dos res�duos do liberalismo, a que ela sempre me esteve t�o intimamente� associada, aos processos irracionais de integra��o pol�tica, transformando as decis�es fundamentais, sobre cuja corre��o n�o admite controv�rsias, em dogma em rela��o aos quais, como nas ideologias pol�ticas anti-liberais, exige, pelo menos, as marcas exteriores do assentimento e da conformidade. Eliminando do seu sistema o princ�pio de liberdade de op��o, com a amplitude em que o havia a formulado o liberalismo, a democracia perde o seu car�ter relativista e c�tico, tra�o secund�rio que ela devia � sua fortuita associa��o como a doutrina liberal, passando a ser um sistema monista de integra��o pol�tica, em que as decis�es fundamentais s�o abertamente subtra�das ao processo dial�tico da discuss�o, da propaganda e e da publicidade, para serem imputadas a um centro de vontade, de natureza para o irracional como os centros de decis�o pol�tica dos regimes de ditadura. A press�o determinada pelo advento hist�rico das massas determinou, assim, uma crise interna do regime democr�tico, levando-o, pelo abandono da suas premissas liberais, ao estado de permanente contradi��o consigo mesmo, estado este que n�o poder�, evidentemente, contribuir, n�o de maneira transit�ria, para manuten��o dos �ltimos tra�os que ainda conserve da sua associa��o com o liberalismo. As condi��es de que resultou essa crise interna das institui��es democr�ticas tendem, necessariamente, a desenvolver o o seu poder de decomposi��o dos res�duos liberais, estendendo a outros termos, entre os quais se venha a estabelecer um estado agudo de conflito, a imunidade � discuss�o, j� decretada pela democracia em rela��o a certas quest�es em torno das quais veio a criar-se um estado mais acentuado de tens�o ou de �nfase o emotiva da opini�o p�blica. Ora, como as quest�es subtra�das � livre discuss�o� pertencem ao n�mero daquelas sobre as quais se concentra a maior carga de interesse, as for�as que se polarizam no seu sentido tendem a abrir outros caminhos suscet�veis de levar � solu��o� daquelas quest�es. Desta maneira, crescendo a tens�o entre os m�todos liberais da democracia e as for�as a que se recusa o uso dos instrumentos democr�ticos, cresce, evidentemente, em correspond�ncia com aquela tens�o, a conting�ncia, para as institui��es democr�ticas, de recorrer ao emprego, em escala cada vez maior, dos processos irracionais de integra��o pol�tica. A conseq��ncia do desdobramento desse processo dial�tico ser�, necessariamente, a transforma��o da democracia, de regime relativista ou liberal, em estado integral ou totalit�rio, deslocado, com velocidade crescente, o centro das decis�es pol�ticas da esfera intelectual da discuss�o para o plano irracional ou ditatorial da vontade. � o que j� se vem observando nos regimes democr�ticos, em que dia a dia aumenta a zona de transcri��o ou de ostracismo pol�tico a que v�o sendo relegadas massas de opini�o cada vez mais volumosas e significativas. A t�cnica do Estado totalit�rio ao servi�o da democraciaObserva-se, ainda uma vez, no dom�nio pol�tico, esse estranho e obscuro processo dial�tico, em virtude do qual o processo de crescimento das institui��es humanas al�m de certo limite virtual sofre uma brusca muta��o em sentido contr�rio aos princ�pios que pareciam haver presidido ao seu nascimento ou �s fases mais caracter�sticas da sua forma��o. No curso de algum tempo, adotada pela democracia a t�cnica do Estado totalit�rio, � qual ela foi for�ada a recorrer (por mais contradit�rio que pare�a) para salvar as suas apar�ncias liberais, a democracia acabar� por assimilar o conte�do espiritual do advers�rio, fundindo-se dessa maneira em um p�lo o �nico do as concep��es do mundo t�o aparentemente inconcili�veis ou antit�ticas. Ali�s, a crise do liberalismo no seio da democracia � que suscitou os regimes totalit�rios, e n�o estes aquela crise. A democracia havia criado, com efeito, um aparelhamento de apar�ncia racional destinado a conduzir o processo pol�tico, sem maiores crises de tens�o, a solu��es ou decis�es suscet�veis do mais largo e compreensivos assentimento. A irracionalidade dos seus m�todos, uma vez que se ampliou a a escala dos acontecimentos e um vulto das quest�es, tornou-se, por�m, de evid�ncia lapidar. O princ�pio b�sico do regime liberal era, com efeito, que as quest�es deveriam ser propostas e discutidas perante o f�rum da opini�o p�blica, a fim de que ela �tomasse as decis�es depois de suficientemente esclarecida. Enquanto a �rea do governo se restringia a uma reduzida a esfera de neg�cios, e particularmente aos mais simples e elementares, foi poss�vel deliberar por aqueles processos ou, melhor, submeter ao voto da opini�o� solu��es sobre as quais j� n�o havia diverg�ncias agudas ou conflito irritantes. As �ltimas conseq��ncia da revolu��o industrial criaram, por�m, aos governos, novas e complexas fun��es, estendendo a �rea do seu controle de maneira a envolver na sua delibera��o quest�es para a elucida��o das quais se exigem conhecimentos t�cnicos e especializados cada vez mais remotos ainda � compreens�o das pessoas cultivadas. A densidade e a extens�o da �rea de governo torna, cada vez mais, inacess�veis � opini�o, os problemas do governo. Enquanto se tratava de quest�es suscet�veis de serem colocadas em termos de sentimento ou de encontrar resposta adequada ou satisfat�ria na atmosfera de emo��o originada dos debates p�blicos, ainda era poss�vel o funcionamento do regime de opini�o. Eram quest�es humanas por excel�ncia, no sentido de acess�veis ao entendimento ou ao sentido geral. As quest�es que se encontram hoje no plano das cogita��es do governo s�o, por�m, de outra natureza. Ou s�o quest�es remotas � compreens�o geral, ou estranhas ao interesse geral, por n�o serem suscet�veis de despertar emo��es sem as quais n�o se estabelece nenhuma corrente de opini�o p�blica, ou s�o quest�es que envolvem no seu seio, pelo menos em estado de lat�ncia, tais possibilidades de antagonismo ou de conflito, que prop�-las ao pronunciamento da opini�o seria, evidentemente, expor-se ao grave risco de provocar contra a sua decis�o a resist�ncia violenta dos interesses em cujo preju�zo fosse ela proferida, e portanto tornaria inevit�vel uma forma de luta que o processo democr�tico se prop�e precisamente a evitar. De maneira que se restringe sempre mais o campo de op��o reservado aos processos deliberativos caracter�sticos das democracias liberais. Cumulativamente com esses fatores, como a nova circunst�ncia contribui para tornar o regime de opini�o impr�prio �s fun��es que lhe foram atribu�das. As prodigiosas conquistas cient�ficas e t�cnicas, que costumam ser um dos temas preferidos do otimismo beato nas suas exaltadas esperan�as em rela��o � esp�cie humana e ao seu aperfei�oamento moral e pol�tico, conferiram ao imp�rio do irracional poderes verdadeiramente extraordin�rios, m�gicos ou surpreendentes. A� est� mais uma das antinomias que parecem inerentes � estrutura do esp�rito humano: a intelig�ncia contribuindo para tornar mais irracional, o intelig�vel, o processo pol�tico. � poss�vel hoje, efetivamente, e � o que acontece, transformar a tranq�ila opini�o p�blica do s�culo passado em um estado de del�rio ou de alucina��o coletiva mediante os instrumentos de propaga��o, de intensifica��o e de contagem de emo��es, tornadas poss�veis precisamente gra�as aos progressos t�cnicos, que nos deram a imprensa de grande tiragem, com sua nova t�cnica de apresenta��o e de aprecia��o dos fatos, a radiodifus�o, o cinema, os recentes processos de comunica��o que conferem ao homem um tom aproximado ao da ubiq�idade, e, dentro em pouco, a televis�o tornando poss�vel a nossa presen�a simult�nea em diferentes pontos do espa�o. N�o � necess�rio o contato f�sico para que haja multid�o. Durante toda a fase de campanha ou de propaganda pol�tica toda a na��o � mobilizada em estado multitudin�rio. Nessa atmosfera de contempla��o emotiva, seria rid�culo admitir que os pronunciamentos da opini�o possam ter outro car�ter que n�o sejam o ditado por prefer�ncias ou tend�ncias de ordem absolutamente irracional. J� se disse das campanhas presidenciais americanas, para traduzir o ambiente desordenado em que se processam, que cada uma delas � uma libertinagem que dura quatro meses. A opini�o n�o pode manifestar-se sobre a subst�ncia de nenhuma quest�o. Ela toma simplesmente seu partido, e por motivos t�o remotos ou estranhos a qualquer nexo l�gico ou reflexivo, que se torna intelig�vel ou irredut�vel a termos de raz�o o processo das suas infer�ncias. A ainda h� pouco, nos Estados Unidos, All Smith n�o foi eleito presidente da Rep�blica pela �nica circunst�ncia de ser cat�lico, fato do qual somente por via de infer�ncias irracionais poderia resultar a conseq��ncia da sua inaptid�o para o governo. � sabido que na primeira elei��o geral na Inglaterra, logo depois da guerra e ainda na aura emotiva que esta deixou atr�s de si por muito tempo, Lloyd George conseguiu a maioria nadando como tema central da sua propaganda a promessa do enforcamento do Kaiser, circunst�ncia da qual n�o se poderiam inferir que nem a sua capacidade de administrador nem os m�ritos de seu programa de governo. Queremos Barrab�s!Deixemos, por�m, com o maior dos exemplos, porque depois do seu nome nenhum mais poder� ser ouvido: Cap�tulo XVIII do Evangelho de S�o Jo�o. "Eles conduziram Jesus da casa de Caifas ao pret�rio; era de manh�. Mas, eles n�o quiseram entrar no pret�rio para n�o se manchar e a fim de comer as p�scoa. Pilatos saiu, pois, ao seu encontro e disse: "Que a acusa��o tendes contra este homem?". Eles lhe responderam: "Se n�o se tratasse de um malfeitor, n�o o ter�amos trazido � tua presen�a". Pilatos e exigisse: "Julgai-o v�s mesmos segundo a vossa lei". Os judeus lhe responderam: "N�o nos � permitido dar a morte a ningu�m" -- a fim de que se realizasse a palavra e a pele que Jesus tinha dito, em indicando de que morte ele deveria morrer. Pilatos, voltando ao pret�rio, chamou Jesus e lhe disse: "�s o rei dos judeus?" Jesus respondeu: "�s tu que dizes isto ou os outros t�o disseram?" Pilatos respondeu: "� que eu sou judeu? A na��o que o chefe dos sacerdotes que entregaram a mim: que fizesse?" Jesus respondeu: "Meu reino n�o � deste mundo; se meu reino fosse deste mundo, aqueles que me servem ter-se-iam oposto a que fosse entregue aos judeus, mas agora meu reino n�o � deste mundo". Pilatos lhe disse: "�s rei?" Jesus respondeu: "Tudo dizes, eu sou o rei e vim a este mundo para dar testemunho da verdade; quem � da verdade, escuta a minha palavra". Pilatos lhe disse: "Que � a verdade?" dizendo isto, ele saiu de novo ao encontro dos judeus ele disse: "Para mim ele n�o tem crime. Mas a costume que eu vos entregue algu�m na festa de P�scoa. Quereis que eu vou entregue o rei dos judeus?" ent�o, todos gritaram: "Ele n�o, mas Barrab�s!" Ora, Barrab�s era um ladr�o -- termina o evangelista. Deslocamento do centro da decis�o pol�ticaSe os processos democr�ticos nunca se destinam a convencer da verdade o advers�rio, mas a conquistar a maioria para, por interm�dio da sua for�a, dominar ou governar o advers�rio, claro � que, dadas as circunst�ncias caracter�sticas do mundo contempor�neo, os processos de capta��o da maioria s� podem consistir em instrumentos de utiliza��o da substancial irracional de que se comp�e o tecido difuso � incoerente e da opini�o. Assim, as institui��es representativas j� n�o t�m um conte�do espiritual que sirva de p�lo a um sistema de cren�as essencial para garantir a dura��o de todas as institui��es humanas. A categoria da discuss�o, que era um processo forjado pelo liberalismo para instrumento intelectual das decis�es pol�ticas j� n�o comporta, pela pr�pria natureza de que se reveste o fen�meno pol�tico, os termos entre os quais se arma a curva de tens�o dos conflitos sociais e econ�micos do mundo contempor�neo. As formas parlamentares e da vida pol�tica s�o hoje resido os destitu�dos de qualquer conte�do ou significa��o espiritual. As pr�prias massas j� perceberam que as tens�es pol�ticas se deslocam para outro plano de dimens�es proporcionais �s das for�as em conflito, e que n�o se trata, no processo pol�tico, de resolver uma diverg�ncia de id�ias ou de pontos de vista intelectuais, mas de compor o antagonismo de interesses, cada um dos centros de conflito fazendo o poss�vel para reunir a maior massa de for�as a fim de que a decis�o final lhe seja inteiramente favor�vel. Na pr�pria imprensa, em que de modo mais fiel se refletem os interesses do dia, observa-se em todos pa�ses com uma indiferen�a crescente pelo que se passa nos parlamentos. Ningu�m hoje tem d�vidas de que o meridiano pol�tico n�o passa mais pela sua antec�maras ou pela suas salas de sess�es. O centro de gravidade do corpo pol�tico n�o cai com de reina a discuss�o, mas onde impera a vontade. Os corpos deliberativos deixaram de deliberar. A linguagem pol�tica do liberalismo s� tem um conte�do de significa��o did�tica, ou onde reinam os professores, cuja fun��o � conjugar o presente e o futuro nos tempos do pret�rito. Para as decis�es pol�ticas uma sala de parlamento tem hoje a mesma import�ncia que uma sala de museu. A um epis�dio que desenha, com tra�os de caricatura, a situa��o de perplexidade a que atingiram os parlamentos. Um conto chin�sConta Spender, no seu livro sobre a vida p�blica na Inglaterra, que em 1920 recebeu na sala de reda��o do seu jornal a visita de tr�s simp�ticos de inteligentes chineses que desejavam ouvir a sua opini�o sobre os neg�cios p�blicos da China e particularmente sobre o impasse verdadeiramente extraordin�rio em que ent�o se encontravam. Era o caso que o parlamento se achava instalado, os deputados eram ass�duos, assentavam-se regularmente, falavam, tornavam assentar-se e falavam de novo. O cerimonial n�o deixava a desejar. Nada, por�m, acontecia. Como Mr. Asquith n�o exercesse no momento nenhuma fun��o oficial na Inglaterra e lhes parecesse que somente um ingl�s poderia dar rem�dio � situa��o, pediam a Spender que os aproximasse de Mr. Asquith, a ver se ele podia passar alguns meses em Pequim, de maneira a transmitir aos chineses a ci�ncia ou a t�cnica de fazer acontecer alguma coisa num parlamento. Mas, se nada acontecia no parlamento chin�s, n�o era, evidentemente, por falta de congenialidade dos processos intelectuais que lhe s�o pr�prios com o temperamento de uma ra�a t�o not�ria e abundantemente adotada para os jogos da intelig�ncia e a sutileza das id�ias. Nada acontecia no parlamento chin�s porque nada acontecia em nenhum parlamento do mundo, porque o parlamento �, precisamente, o lugar onde nada acontece e nada se decide. Mas, a pol�tica vive de de acontecimentos de decis�es. Seu centro a que a decis�o � juridicamente imputada nada decide, forma-se imediatamente ao seu lado um centro de decis�es de fato. Assim se resolveu na pr�pria China, sem as luzes de Mr. Asquith, o o estado de perplexidade do seu parlamento. Na Alemanha, enquanto um parlamento em que j� houve o maior n�mero de partidos procurava inutilmente chegar a uma decis�o pol�tica mediante os m�todos discursivos da liberal-democracia, Hitler organizava nas ruas, ou fora dos quadros do governo, pelos processos realistas e t�cnicos por meio dos quais se subtrai da nebulosa mental das massas uma fria, dura e l�cida subst�ncia pol�tica, o controle do poder e da na��o. Na Fran�a, quando se trata das grandes e graves quest�es, em que a op��o envolve riscos e abre margem ao perigo, o parlamento, numa ostensiva confiss�o da sua abulia, transmite os plenos poderes a um C�sar tempor�rio. Como se forma a vontade dos povosQuem quiser saber qual o processo pelo qual se formam efetivamente, h� hoje em dia, as decis�es pol�ticas, contemple a massa alem�, medusada sobre a a��o carism�tica do F�hrer, e em cuja mascarar os tra�os de tens�o, de ansiedade e de ang�stia traem o estado de fascina��o e de hipnose. S� podem ter d�vidas sobre o �spero clima pol�tico, em cuja atmosfera carregada de tens�o mal come�amos a penetrar, os homens que vivem em estado de ingenuidade em rela��o � experi�ncia imediata, ou num mundo de satisfa��o simb�lica de desejos em que tudo se passa como nos contos azuis, ou no parlamento da China. Esse mesmo estado de esp�rito � que julga poss�vel realizar, por processos racionais, n�o s� a integra��o pol�tica nacional, mas igualmente a internacional, ou a organiza��o de toda a humanidade numa comunh�o de interesses e de fins. Para ele, com efeito, o conceito de pol�tica � o conceito que os professores costumam dar da pol�tica nos recintos herm�ticos onde se fabricam modelos da realidade n�o � imagem desta mais � imagem dos sonhos ou dos arqu�tipos plat�nicos que a imagina��o prop�e aos nossos desejos. O mesmo pensamento liberal, que concebia a pol�tica interior como um conflito de id�ias, suscet�vel de resolver-se mediante os m�todos da intelig�ncia discursiva ou da dial�tica forense, transpondo esse conceito para o plano mundial julgou poss�vel realizar a organiza��o de uma comunidade internacional, criando um Forum Mundi em que um grupo de juristas, assistido por uma equipe de t�cnicos, ponha e resolva em termos de raz�o a massa racional de motivos por for�a dos quais se arma entre as na��es um arco de tens�o pol�tica e econ�mica sempre mais refrat�rio a qualquer tratamento racional ou ideol�gico. Assim, por�m, como o processo democr�tico de integra��o pol�tica deixou de funcionar quando cresceu em extens�o e intensidade �rea dos antagonismos, das tens�es e dos conflitos internos, n�s assistimos, no dom�nio intelectual, avolumar-se a massa das tens�es econ�micas e pol�ticas, particularmente as determinadas pela ressurrei��o do mito nacional e do conseq�ente Estado totalit�rio ou estado de massas. Ao armamentismo, � luta pelos mercados consumidores e pelas mat�rias-primas -- fatores que tendem a revestir um car�ter pol�tico cada vez mais agudo -- junta-se o mito nacional, cuja fun��o, na hist�ria, foi sempre a de polarizar intensas cargas pol�ticas, isto �, constela��es dos mais poderosos motivos de antagonismos, de conflitos e de guerras. A integra��o pol�tica totalit�ria, apesar do nome, n�o consegue eliminar, de modo completo, as tens�es pol�ticas internas. Se conseguisse, deixaria de existir Estado, que �, precisamente, a express�o de um modo parcial de integra��o pol�tica das massas humanas. O que o Estado totalit�rio realiza � -- mediante o emprego da viol�ncia, que n�o obedece, como nos Estados democr�ticos, a m�todos jur�dicos nem � atenua��o feminina da chicana forense -- a elimina��o das formas exteriores ou ostensivas da tens�o pol�tica. H�, por�m, elementos refrat�rios a qualquer processo de integra��o pol�tica. No Estado totalit�rio, se desaparecem as formas atuais do conflito pol�tico, as formas potenciais aumentam contudo de intensidade. Da� a necessidade de trazer as massas em estado permanente de excita��o, de maneira a tornar poss�vel, a todo momento, a sua passagem do estado latente de viol�ncia ao emprego efetivo da for�a contra as tentativas de quebrar a unidade do comando pol�tico. Ora, n�o � em v�o que se libertam, em t�o grande escala, as reservas de viol�ncia por tanto tempo acumuladas na alma coletiva. Essas reservas, que n�o podem ser restitu�das ao estado de ina��o, precisam ser permanentemente utilizadas. De onde o fato do Estado totalit�rio ou nacional tender a derivar o estado de tens�o interna para um estado de tens�o internacional -- manobra que torna poss�vel exaltar ainda mais os fatores de irracionalidade que operaram e que continuam a garantir a integra��o totalit�ria. Essas as for�as elementares que os juristas pretendem fascinar, n�o com a m�scara de Medusa com que o C�sares paralisam o inconsciente coletivo em que se desencadeou o estado de viol�ncia pela hipnose do medo ou do terror, mas com os sortil�gios de f�rmulas ou de cerim�nias j� destitu�das de qualquer significa��o ou subst�ncia espiritual. O processo pol�tico, assim o nacional como o internacional, tem por medula uma constela��o polar, ou uma constela��o em que existem, ao menos em estado virtual, dois campos nitidamente separados por uma linha ou uma zona de tens�o. Esta constela��o pode, em determinados momentos, apresentaram o estado de tens�o atenuada, quando os conflitos, que constituem o seu conte�do, n�o se armam entre termos extremos ou polares. H�, contudo, no processo pol�tico, um estado latente de viol�ncia, que pode resolver-se em estado de agress�o atual. Essa passagem do estado latente ao estado atual de viol�ncia, que � uma possibilidade imanente ao processo pol�tico, � o que se verifica, com freq��ncia, em certas democracias, em que ao julgamento de Deus das elei��es se segue, com espantosa regularidade, o julgamento de Deus das revolu��es. Toda integra��o pol�tica, por mais inintelig�vel que seja o seu processo, � sempre uma tentativa de racionaliza��o do irracional. O irracional, por�m, cont�m elementos absolutamente refrat�rios a todos os processos de racionaliza��o. Ora, o processo pol�tico, definido pela constela��o polar, � eminentemente do dom�nio do irracional ou do inintelig�vel. N�o � poss�vel nenhuma integra��o pol�tica total enquanto o homem, definido por si mesmo como animal racional, conservar e defender, como vem fazendo com crescente veem�ncia, o seu patrim�nio heredit�rio. No dia em que a massa nacional fosse integrada politicamente de maneira a n�o deixar res�duos ela deixaria simplesmente de ser Estado, que � um conceito pol�tico, isto �, um conceito pol�mico, a menos que, como entidade nacional, entrasse em rela��o de tens�o com outras massas nacionais. De igual modo, admitir a integra��o pol�tica da humanidade � postular um estado apol�tico do homem, porque a humanidade n�o poderia constituir um termo da constela��o polar em falta de outro termo que pudesse entrar em rela��o de conflito. A Sociedade das Na��es, no dia em que, como Forum Mundi, pudesse exercer a fun��o, que lhe � atribu�da, de integrar politicamente a humanidade, deixaria de ser sociedade de na��es, porque n�o haveria mais na��es ou Estados para integrar. Amor FatiEu desejaria fazer as minhas despedidas com um conjunto azul. � salutar, por�m, de vez em quando, olhar a realidade na face e ler na sua m�scara a mensagem que o destino a encarregou de transmitir�o os homens. J� soou quase simultaneamente em todos medianos a hora da advert�ncia e do alerta. J� se ouve, ao longe, traduzido em todas as l�nguas, o tropel das marcha sobre Roma, isto �, sobre o centro das decis�es pol�ticas. N�o tardar�o a fechar-se as portas do f�rum romano e abrir-se as do Capit�lio, colocado sob o sinal e a invoca��o de J�piter, ou da vontade, do comando, da AUTORITAS, dos elementos masculinos da alma, e gra�as aos quais ainda pode a humanidade encarar de frente e amar o seu destino: AMOR FATI. |