Sapientiam Autem Non Vincit Malitia - Foto da águia: Donald Mathis Mande um e-mail para o Olavo Links Textos Informações Página principal

Leituras recomendadas – 145

 

Filosofia de verão: "Gabriela, a Pensadora"

Por José Maria e Silva
21 de Abril de 2002

 

            N�o h� limites para a decad�ncia do pensamento brasileiro. A pretexto de ser cr�tico, ele tornou-se lun�tico e j� n�o mostra qualquer liame com a realidade que o cerca. O paradigma dessa decad�ncia �, sem d�vida, a fil�sofa Marilena Chau�. Professora da USP e autora de textos can�nicos nas universidades, Chau� consagrou-se como uma esp�cie de Che Guevara da filosofia. Valendo-se da fluente orat�ria, n�o dava aulas nem proferia palestras --- fazia passeatas verbais em que o pensamento universal, sublevado por Marx e Sartre, reduzia-se a palavras de ordem contra a burguesia. Financiadas com dinheiro p�blico, essas palestras viraram livros, que se tornaram leitura obrigat�ria nas escolas, al�m de elogiados na imprensa como �ltima palavra do pensamento nacional.

Todavia, Marilena Chau� � uma metamorfose. Depois de madura, resolveu fazer o que parece n�o ter feito na juventude --- aplicou-se ao estudo s�rio da filosofia e recolheu-se �s bibliotecas, lendo antes de escrever, pensando antes de falar. E, ao afastar-se das reda��es e das passeatas, --- prometendo aquele que seria o livro de sua vida, --- deu a impress�o de que iria retribuir, finalmente, os alt�ssimos investimentos que o pa�s tinha feito nela, financiando-lhe os estudos, patrocinando-lhe as viagens, subsidiando-lhe os livros. Mas para desencanto daqueles que esperavam alguma contribui��o c�vica da fil�sofa uspiana, eis que ela trouxe de seu retiro espiritual um tratado sobre Espinosa --- o presun�oso A Nervura do Real, com suas mais de 1.200 p�ginas.

A exce��o dos revisores da Companhia das Letras, ningu�m parece ter lido esse livro. Enfrentei-lhe as 300 primeiras p�ginas (contando as infind�veis notas no volume anexo) e, at� onde o li, pareceu-me trabalho de amanuense, n�o de fil�sofo. Nada vi de original. Mas, antes que me acusem de amofinar o livro sem t�-lo lido inteiro, lembro que a maioria dos que elogiaram febrilmente A Nervura do Real sequer leu-lhe as orelhas. Resultado: a �obra da vida� de Chau� tornou-se a obra-prima da filosofia nacional --- n�o pelos m�ritos, mas pelo mito. Confesso n�o descartar a hip�tese de que o livro seja bom (julgamento que os especialistas da �rea est�o a dever ao pa�s), mas desconfio que � quase in�til. Qualquer europeu escreveria um tratado semelhante sobre Espinosa em muito menos tempo e com muito menos custo.

A pr�pria Marilena Chau� parece saber disso, porque, quando publicou A Nervura do Real, tratou de p�r um pouquinho de gelo na fervura da imprensa. Enquanto as resenhas diziam que finalmente a filosofia brasileira ganhara sua obra-prima, Chau� --- provavelmente com receio de Olavo de Carvalho e j� adivinhando Gon�alo Pal�cios --- ressalvou que n�o era propriamente �filosofia� o que tinha feito, mas �hist�ria da filosofia�. Isso revela ainda mais a impropriedade do livro. Por que recontar parte da surrada hist�ria da filosofia europ�ia se toda a hist�ria da filosofia brasileira ainda est� praticamente por ser contada? Claro que a reflex�o filos�fica n�o tem fronteiras geogr�ficas, mas o financiamento p�blico de pesquisas cient�ficas tem. O pa�s n�o investiu em Marilena Chau� como sua maior fil�sofa para que ela se tornasse simples maquiladora do pensamento europeu.

Todavia, Marilena Chau� n�o se limitou a passar de panflet�ria a amanuense. Ela sofreu novas metamorfoses. Recentemente, apareceu na grande imprensa revelando que sua nova preocupa��o j� n�o � a �tica, mas a etiqueta --- acabara de dar ao mundo um tratado de culin�ria. A �Che Guevara� das passeatas estudantis dava lugar � �Danusa Le�o� das revistas femininas. Isso num momento que se dizia reclusa, por estar cuidando da segunda parte de seu monumento a Espinosa. Agora, a ex-Che Guevara e ex-Danusa Le�o assumiu de vez sua verdadeira face --- a de �cara-pintada� da cultura brasileira. Numa entrevista ao Megazine (suplemento juvenil do jornal O Globo), Marilena Chau� anunciou a �filosofia pop� --- vai trocar o pensamento grego cl�ssico pelo rap das gangues urbanas. No lugar de S�crates, Sabotage; no lugar de Descartes, Racionais MC.

Foi a pr�pria Marilena Chau� quem explicou a filosofia que pretende emplacar neste ver�o: �No primeiro Convite � Filosofia eu usei a literatura brasileira para fazer esses paralelos. Professores amigos meus sugeriram que eu usasse algo mais pr�ximo do cotidiano dos estudantes na nova edi��o do livro. Por conta disso estou ouvindo toda a produ��o atual de rap. Quero usar as letras das m�sicas para tratar de �tica e pol�tica�. (Sintomaticamente, o ditador Fidel Castro tamb�m aparece elogiando o rap na revista Reportagem de mar�o). Na entrevista, de Marilena n�o falta nem a dica sobre o fil�sofo da hora: �Atualmente, o mais festejado nos meios universit�rios � Nietzsche, que est� ocupando o lugar que foi de Sartre nas �ltimas d�cadas. Ele conquista os jovens com sua linguagem corrosiva�. Ser� que nesta nova edi��o de Convite � Filosofia o taciturno Nietzsche aparece �descolado�, vestindo a nova griffe Chau�?

Ali�s, Marilena Chau� comprova, nesta entrevista, que n�o passa de uma fals�ria intelectual. Recentemente, numa entrevista � Folha de S. Paulo, fingiu-se espantada ao saber que seu livro Introdu��o � Filosofia era adotado nas universidades. Disse que o escrevera para o ensino m�dio, como se a educa��o dos mais jovens --- exatamente por serem mais jovens --- n�o fosse a que merece os maiores cuidados do educador. Para n�o saber que sua obra � obrigat�ria nas faculdades, s� se Marilena Chau� fosse autista. Todavia, ela � at� ligada demais ao mundo --- sua filosofia � comercial, feita de olho na lista dos mais vendidos. Creio, inclusive, que s� falou que seu livro se destinava ao ensino m�dio, porque deve ter lido �s cr�ticas devastadoras do fil�sofo Gon�alo Pal�cios no Jornal Op��o.

Uma intelectual como Marilena Chau� me faz rever antigos conceitos e respeitar o escritor Paulo Coelho. Ainda n�o li o Mago, mas j� n�o hesitaria em l�-lo --- deve fazer menos mal que Marilena Chau�, essa esp�cie de �Jorge Amado� da filosofia. Da mesma forma que o autor de Gabriela, Cravo e Canela, come�ou produzindo o digno regionalismo de 30 mas acabou rendendo-se �s facilidades do carnaval, do futebol e das mulatas, Marilena Chau� est� decaindo de Sartre a Che, de Che a Danusa, de Danusa a cara-pintada. Marilena j� n�o pensa --- veste a filosofia da moda. O problema � se ela vestir um fil�sofo novo a cada ver�o. Gabriel, o Pensador vai ficar desempregado. E nos audit�rios de Gugus e Faust�es, o hit ser� o �Rap da Caverna� de Plat�o --- na vers�o de �Marilena, a Pensadora�.