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Leituras recomendadas – 136

 

O testemunho de Hilferding

Por Alceu Garcia
17 de mar�o de 2002

 

�Quando eu era crian�a, acreditava em Papai Noel. Quando adolescente, eu podia jurar que o nazismo e o fascismo foram movimentos reacion�rios patrocinados e dirigidos pela alta burguesia em sua luta abjeta contra o her�ico proletariado e sua zelosa vanguarda de intelectuais. Por�m, na medida em que me debrucei sobre o assunto com um m�nimo de objetividade e isen��o, essa s�lida convic��o foi se dissolvendo. Como negar que Mussolini foi um destacado e virulento socialista marxista na It�lia de antes da Primeira Guerra, elogiado at� por Lenin? O programa pol�tico do Partido Nazista - ali�s Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alem�es - poderia ser subscrito tranquilamente pelo nosso PT, se omitidas as men��es aos judeus, sem que ningu�m notasse nada de estranho. Ademais, ambos os movimentos tiveram amplo apoio popular, mas do que o comunismo. Havia algo de profundamente errado na teoria que eu aprendera da propaganda esquerdista dominante. Tudo se esclareceu totalmente quando travei contato com a obra de autores liberais, tais como Ludwig von Mises (Omnipotent Government e Uma Cr�tica ao Intervencionismo) e Friedrich Hayek (O Caminho da Servid�o). Esses estudiosos alegaram e provaram mais do que satisfatoriamente que tanto o comunismo quanto o nazifascismo foram movimentos socialistas revolucion�rios e anticapitalistas. Seu parentesco decorre do fato de que todos beberam nas mesmas fontes doutrin�rias: Hegel, Blanqui, Marx, Sorel e outros.

�Fu�ando as bibliotecas, descobri o testemunho robusto nesse mesmo sentido de um marxista puro-sangue, Rudolf Hilferding (1877-1941), perdido entre dezenas de depoimentos de comunistas arrependidos reunidos por Julien Steinberg no livro Verdict of Three Decades: >From the Literature of Individual Revolt against Communism, 1917- 1950. Hilferding, um eminente marxista austr�aco, chegou por caminhos diferentes �s mesmas conclus�es de seus compatriotas liberais a respeito da identidade essencial entre comunismo e nazi- fascismo.

�N�o se trata de uma opini�o qualquer. Hilferding foi talvez o �nico economista marxista dotado de originalidade e esp�rito independente al�m do pr�prio Marx. Ele estreou na arena das pol�micas teor�ticas, ainda muito jovem, desafiando, para o debate sobre da teoria do valor- trabalho, pedra fundamental da doutrina da mais-valia, ningu�m menos do que o consagrado Eugen von B�hm-Bawerk, ent�o reconhecido mundialmente como um dos maiores economistas de seu tempo. Bohm- Bawerk publicara uma cr�tica demolidora � essa concep��o fundamental do marxismo. Marx, asseverou o pioneiro do marginalismo, reduz erradamente o valor de uma mercadoria � quantidade de trabalho necess�ria � sua produ��o, com isso ignorando exce��es �bvias como a terra, que tem valor e n�o � fruto do trabalho. Ademais, o valor de uso dos produtos � abstra�do da an�lise geral do valor, abstra��o arbitr�ria e descabida que invalida irremediavelmente essa teoria como meio adequado de compreens�o de seu objeto. Por outro lado, Marx admite que os pre�os das mercadorias raramente ou mesmo nunca coincidem com o valor de troca supostamente decorrente do trabalho nelas cristalizado, sendo que, ali�s, n�o h� como reduzir o trabalho, heterog�neo por defini��o, a uma unidade de conta homog�nea e constante.

�Hilferding retrucou ressaltando que no capitalismo o valor de uso das mercadorias � irrelevante, de vez que se trata de um modo de produ��o fundado apenas no valor de troca. Segundo ele, na economia capitalista as rela��es se d�o entre coisas, n�o entre pessoas, posto que tudo, inclusive o trabalho, � "reificado", reduzido � mercadorias. A conclus�o � que, no contexto anal�tico marxista, a precis�o e a quantifica��o n�o s�o importantes, mas sim a revela��o das leis globais da troca, as quais, "em �ltima inst�ncia", s�o regidas pela lei do valor. Essa r�plica n�o convence. Apartar da an�lise o valor de uso, ou seja, as valora��es subjetivas, � um absurdo. � extirpar o que h� de humano nos homens e, a� sim, "reific�- los". De resto, se no exame marxista nem o valor de troca nem a quantidade de trabalho servem para determinar com precis�o os pre�os, ent�o n�o servem para nada. � mera impostura travestida de ci�ncia. A resposta de Hilferding, entretanto, bastou para satisfazer a sect�ria ortodoxia marxista de seu tempo e granjeou fama para o autor.

�Hilferding fez jus a essa notoriedade com sua obra-prima, o tratado sobre o capital financeiro Das Finanzkapital, de 1910. � com efeito um livro interessante, escrito com lucidez e sobriedade raras num autor dessa escola. Ele reitera o insight de Marx de que o sistema capitalista tende inexoravelmente para a superconcentra��o do capital, face aos vultosos recursos necess�rios para se fazer frente �s despesas com uma produ��o cada vez mais dependente da alta tecnologia. As pequenas e m�dias empresas s�o varridas do mercado e absorvidas pela concorr�ncia dos grandes conglomerados. Esse processo � acompanhado pelo crescimento do capital l�quido controlado pelos bancos, o capital financeiro, que subjuga as ind�strias escravas de suas necessidades insaci�veis de capital circulante. Ocorre ent�o uma muta��o na ideologia burguesa, do livre-com�rcio e livre-concorr�ncia para os mercados fechados e estratificados em cart�is e oligop�lios. Deflagram-se disputas entre as pot�ncias capitalistas avan�adas pelos mercados globais, que resultam em guerras imperialistas. O autor n�o exclui a possibilidade de que toda a economia mundial termine englobada em um �nico e vasto supercartel.

�A interpreta��o de Hilferding, conquanto fundada numa descri��o razoavelmente acurada dos fatos, est� errada merc� das categorias anal�ticas equivocadas que utiliza. Na verdade, o que ocorria na �poca era um retorno ao mercantilismo sob nova capa socialista, gra�as ao fortalecimento do poder pol�tico e sua ascend�ncia sobre a ind�stria e a finan�a. O pr�prio Hilferding reconheceu posteriormente, como veremos, que o poder pol�tico tem uma din�mica pr�pria que transcende e absorve o econ�mico. Nada impede que uma economia de mercado avan�ada global opere com base nos princ�pios do livre-com�rcio e da livre-concorr�ncia. Monop�lios s� s�o efetivos, i.e., s� conseguem impor pre�os de monop�lio, quando o governo pro�be tout court a competi��o, ou a inviabiliza indiretamente, como no caso do protecionismo. Cart�is e oligop�lios s�o combina��es inerentemente inst�veis e tendentes � dissolu��o, posto que os seus membros mais competitivos logo se cansam de carregar os menos eficientes nas costas e baixam seus pre�os. Novamente, apenas a coer��o estatal confere estabilidade e durabilidade a tais combina��es de produtores. O fato de existirem grandes empresas n�o anula a soberania dos consumidores. Tamanho n�o � documento. Se fracassar em sua tarefa de satisfazer seus clientes, a empresa, seja de que tamanho for, quebra ou � suplantada por outras mais �geis. Estamos carecas de testemunhar casos assim. Por outro lado, uma economia mundial sujeita a um �nico supercartel � t�o invi�vel quanto o socialismo global puro, uma vez que, como Ludwig von Mises provou, num e noutro caso inexistiriam pre�os para os fatores de produ&c cedil;�o, todos de propriedade de um �nico dono, de modo que o c�lculo econ�mico racional seria imposs�vel. Por fim, o que Hilferding descreve como transforma��o da ideologia burguesa � na realidade a ascens�o da ideologia antiburguesa, socialista, que resultaria no comunismo e no nazi-fascismo.

�Com a cis�o entre a social-democracia e o comunismo em 1917, Hilferding preferiu a primeira, tendo inclusive ocupado altos cargos ministeriais em governos de seu partido na Alemanha de Weimar. Jamais, por�m, abjurou de sua filia��o marxista, nem deixou de pensar segundo categorias estritamente marxistas. Comparado � ral� intelectual que seguiu os comunistas, Hilferding se destaca como um grande pensador. E foi como marxista que ele comparou e igualou comunismo e nazi-fascismo no citado artigo, escrito em 1940, que passamos a analisar. O austr�aco ridiculariza ab initio a caracteriza��o do comunismo sovi�tico como "capitalismo de estado". Se o governo � dono de todos os meios de produ��o, a economia capitalista est� morta. A economia de mercado tem natureza mercantil, fundada no motivo do lucro e na propriedade privada, na concorr�ncia e nos pre�os formados pela intera��o entre oferta e procura. Ora, a economia de estado "elimina a autonomia das leis econ�micas". A dire��o da produ��o deixa as m�os dos empres�rios, pois � uma "comiss�o planejadora que passa a determinar o que � produzido e como". Os pre�os perdem sua fun��o param�trica para o processo econ�mico e se tornam simples decretos estatais arbitr�rios. N�o existem mais mercadorias, porque as trocas foram suprimidas. A acumula��o subsistente n�o � mais a mesma da l�gica capitalista. Hilferding nega, ademais, que a burocracia seja uma "nova classe dirigente", como queria Trotsky. A burocracia, na sua �tica, � um estamento rigidamente hierarquizado, um instrumento male�vel nas m�os de quem realmente det�m e exerce o poder: o autocrata supremo. � ele quem d� as ordens; cabe &a grave; bucracia obedec�-las e execut�-las. A economia � subjugada pela pol�tica e suas leis deixam de ter validade. A oposi��o cl�ssica entre burguesia e proletariado � superada e absorvida pelo Estado Totalit�rio, o qual opera de acordo com suas pr�prias leis e reduz a si toda a sociedade. "Apesar das grandes diferen�as em seus pontos de partida, os sistemas econ�micos dos Estados Totalit�rios est�o se aproximando cada vez mais uns dos outros", escreve o autor. Ele, por�m, recusa-se a reconhecer o comunismo russo como materializa��o da doutrina marxista, visto que, segundo pensa, esta � insepar�vel da democracia. Para Hilferding � irrelevante a controv�rsia sobre o car�ter socialista ou capitalista da Uni�o Sovi�tica. "N�o � uma coisa nem outra. Ela representa uma economia de Estado Totalit�rio (grifo do autor), isto �, um sistema do qual os sistemas econ�micos da Alemanha (nazista) e da It�lia (fascista) est�o se aproximando cada vez mais".

�Por mais fascinante e honesta que seja essa opini�o, n�o podemos endoss�-la integralmente. As leis e regularidades econ�micas jamais s�o revogadas, como pensava Hilferding. O Estado Totalit�rio n�o � onipotente, nem pode violar impunemente as regras da economia. Mais cedo ou mais tarde � o Estado Totalit�rio quem leva a pior e acaba se auto-destruindo, como a experi�ncia sovi�tica ilustra. Outro ponto a ser impugnado nas alega��es do austr�aco � a recusa de considerar socialista o que de fato era socialista. A supress�o da propriedade privada, dogma do marxismo, s� pode gerar um v�cuo que fatalmente ser� preenchido pela propriedade coletiva concentrada no Estado. O Estado s� pode se estruturar burocraticamente, n�o h� outro meio. E uma sociedade reduzida ao Estado s� pode engendrar uma ordem totalit�ria. O socialismo �, pois, intrinsecamente totalit�rio e incompat�vel com a democracia. Deve-se discordar da distin��o que Hilferding tra�a entre os pontos de partida do nazismo, fascismo e comunismo. Todos foram essencialmente socialistas e violentos, e recorreram � m�todos similares para alcan�ar e manter o poder. Quanto � burocracia, ela era realmente uma nova classe dominante. Trotsky estava certo nesse particular. � verdade que se tratava de um estamento sujeito aos caprichos de um autocrata. Mas como esse autocrata prevalecia em sua luta pelo poder contra outros candidatos � autocracia? A burocracia o escolhia e acatava. O terror do ditador contra os burocratas, embora comum, n�o durava para sempre. Ele acabava por se abrandar e a burocracia consolidava ent�o o seu poder em uma mir�ade de feudos e alian�as, em meio � frouxid�o crescente da hierarquia. Pelo menos foi assim na URSS.

�Rudolf Hilferding foi capturado e executado pelos nazistas em 1941. N�o teria tido sorte diferente nas m�os dos comunistas.