Sapientiam Autem Non Vincit Malitia - Foto da águia: Donald Mathis Mande um e-mail para o Olavo Links Textos Informações Página principal

Leituras recomendadas – 122

 

O fenômeno Merquior

por José Mário Pereira
novembro de 2001

 

Ningu�m mais habilitado para escrever um depoimento limpo e exato sobre Jos� Guilherme Merquior do que o jornalista (e editor da Topbooks) Jos� M�rio Pereira, que foi por muitos anos amigo e colaborador do grande cr�tico e fil�sofo liberal. Depoimento, na verdade, mais que limpo e exato: comovente, como bem ressaltou Wilson Martins num de seus rodap�s semanais. Escrito para uma obra coletiva organizada por Alberto Costa e Silva (O Itamarati na cultura brasileira, Bras�lia, Instituto Rio Branco, 2001), �O fen�meno Merquior� n�o s� desfaz um punhado de lendas maldosas criadas pela incans�vel m�quina de difama��o esquerdista, mas mostra como a incr�vel mesquinharia ambiente buscou por todos os meios sufocar a express�o de uma alt�ssima e nobre intelig�ncia, que sempre retribuiu o mal com o bem. -- O. de C.

"A mais fascinante m�quina de pensar do Brasil p�s-modernista � irreverente, agudo, s�bio", na feliz express�o de Eduardo Portella, Jos� Guilherme Merquior espantava pela versatilidade e capacidade de metabolizar id�ias. No Brasil do s�culo XX sua obra foi um marco, e sua morte prematura, aos 49 anos, no dia 7 de janeiro de 1991, um desastre incontorn�vel para a cultura brasileira, que dele ainda tinha muito a receber. Identificado quase sempre como polemista � o que, em se tratando de Merquior, � redutor � a riqueza heur�stica de sua produ��o intelectual est� ainda por ser enfrentada sem a leviandade e a pregui�a mental contra as quais tanto se bateu.

Por muitos meses hesitei em escrever estas notas. Somente a paci�ncia e a compreens�o do poeta e historiador Alberto da Costa e Silva, o organizador deste volume, conseguiram p�r a nocaute meu quase p�nico em depor sobre o amigo cuja vida, no seu momento de maior esplendor� criativo, acompanhei de perto. O fato � que sua morte abrupta chocou a todos, em especial os que esper�vamos poder desfrutar de sua verve e intelig�ncia por muitos anos. Imagino que a seus leitores tamb�m. A id�ia de condensar num texto sua trajet�ria intelectual e humana, e tamb�m o drama dos dias finais, que ele encarou com estoicismo, n�o � uma f�cil tarefa.�

Merquior completaria agora em abril 60 anos; n�o obstante, continua a ser denegrido por muitos que n�o o conheceram nem o leram. N�o poderia eximir-me, portanto, de dar� um testemunho e fornecer alguns elementos para um retrato da maior figura intelectual de sua gera��o, diplomata exemplar e ser humano inesquec�vel. Espero, pelo menos, desenhar um esbo�o, p�lido que seja, do que Jos� Guilherme Merquior representou como personalidade e presen�a vital no mundo da cultura brasileira e internacional.

*****

Nascido sob o signo de Touro, em 22 de abril de 1941, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, filho de Maria Alves Merquior (D. Belinha) e Danilo Merquior, advogado, Jos� Guilherme era irm�o mais velho de Carlos Augusto, Marco Aur�lio e Maria Cristina. A fam�lia morava ent�o na rua Dr. Satamini, 94, apto. 402, perto do Col�gio Lafayette, onde ele estudou e, desde cedo, impressionou pela intelig�ncia e precocidade. Da primeira viagem � Europa, ainda adolescente, trouxe um busto de Voltaire � t�o pesado que seu transporte se transformou num pesadelo familiar. E um dos primeiros presentes que ganhou do pai foi a abertura de uma conta sem limite na livraria Leonardo da Vinci, de D. Vanna Piracini, no centro do Rio.

Na universidade cursou Direito, mas entre os professores a quem mais se afei�oou est�o Dirce Cort�s Riedel, de Literatura, e Antonio Gomes Penna, de Psicologia. � primeira dedicou seu livro sobre Drummond, lan�ado na d�cada de 70, afirmando� que ela "despertou em mim o amor da literatura do nosso tempo"; e era na casa do segundo que muitas vezes preferia hospedar-se quando, j� diplomata, passava pelo Rio.

No in�cio da d�cada de 60, Merquior dava aulas de est�tica em seu apartamento de Santa Teresa a alunos atra�dos por um an�ncio de jornal que ele mandara publicar. E foi a� que, j� casado com Hilda, sua companheira de col�gio, recebeu para um jantar em torno do soci�logo americano Talcott Parsons, em julho de 1965. Mas n�o quis tornar-se professor universit�rio: preferiu fazer concurso para o Itamaraty, onde tirou o primeiro lugar. Em 1963, Manuel Bandeira o convidou para organizar com ele a antologia Poesia do Brasil. Colaborava ent�o em revistas como Praxis, Senhor, Cadernos brasileiros e Arquitetura. Embora j� tivesse publicado artigos no Jornal do Brasil em 1959, s� no ano seguinte se vincula ao Suplemento Dominical, ent�o dirigido por Reynaldo Jardim. Numa nota intitulada "Bilhete de editor", publicada no alto da p�gina em 30 de abril de 1960,� l�-se:

A primeira colabora��o de JGM nos chegou como centenas de outras atrav�s de nossa se��o Correspond�ncia. Bastou ler o primeiro artigo para constatarmos que est�vamos frente a um leg�timo escritor amplamente capacitado a colaborar conosco. Publicamos o artigo e tempos depois chegou outro comprovando a categoria intelectual de seu autor. Mais um ou dois artigos de JGM vieram �s nossas m�os sem que o conhec�ssemos pessoalmente.

E finaliza o editorial:

Aqui estar� ele, sem o compromisso do aparecimento semanal, mas mantendo um certo ritmo em sua colabora��o que pretendemos venha contribuir para a melhoria do n�vel de produ��o po�tica em nosso meio.

Neste Suplemento Dominical do JB Merquior assinou mais de 50 ensaios entre 1959 e 1962, alguns de p�gina dupla. Os temas s�o est�ticos, liter�rios e filos�ficos. "Neoolakoon ou da espacio-temporalidade" (17.10.59) n�o foi inclu�do em livro; "Galat�ia ou a morte da pintura I e II" (26.11.60 e 07.01.61) tamb�m n�o. H� aprecia��es devastadoras sobre livros de poetas � O p�o e o vinho, de Moacyr F�lix, em 07.05.60; O dia da ira, de Antonio Olinto, em 20.08.60; Oper�rio do canto, de Geir Campos, e Vento geral, de Thiago de Mello, em 12.06.60; Ode ao crep�sculo, de L�do Ivo, em 03.06.6l; Tr�s pavanas, de Gerardo Mello Mour�o, em 03.06.61.� Mas h� tamb�m elogiosas considera��es sobre� Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Marly de Oliveira, e at� para o hoje desconhecido Edmir Domingues, cujo Corcel de espuma comentou em 04.02.61.

No pref�cio ao volume Cr�tica (1964-1989), de 1990, afirmava, rigoroso,� sobre estes artigos:

Na �poca, os artigos nada indulgentes de minha coluna de cr�tica no SDJB, "Poesia para amanh�", incomodavam bastante v�rios versejadores. Hoje receio que eles incomodem principalmente o pr�prio autor, menos pela contund�ncia que pela sua superficialidade.

Qualificado por Haroldo de Campos, em artigo no caderno Mais! da Folha de S. Paulo, de "cr�tico conservador" (19.04.92), j� em outubro de 1960 Merquior percebia� � e elogiava � a novidade do trabalho de tradu��o de Augusto, irm�o dele, em E. E. Cummings. 10 poemas:

O livro � muito bem apresentado � traz inclusive uma objetiva introdu��o de A. C. � t�cnica de E. E. C. Quanto � vers�o para o portugu�s, � a melhor desej�vel. De uma maneira geral, A. C. manteve uma fidelidade digna de aplauso, e ainda por cima sem se restringir a um servilismo antipoesia. N�s sabemos quantas vezes o traddutore, por n�o querer ser traditore, acaba mais traidor do que nunca... Mas a lealdade de A. C. � muito mais ampla. Ela acompanhou a inven��o de Cummings quando n�o � mais poss�vel a simples tradu��o.

Basta examinar a rela��o desses artigos no JB, alguns inclu�dos em Raz�o do poema, para verificar o grau de maturidade intelectual alcan�ado precocemente por Merquior. Exigente consigo mesmo, resistiu a todos os apelos para reeditar seus livros iniciais. Desculpava-se dizendo que muito tinha a publicar antes de come�ar a reeditar. Na antologia de ensaios lan�ada um ano antes de sua morte referia-se aos artigos n�o inclu�dos no primeiro livro:

Exclu� desta antologia todos os meus ensaios de estr�ia, todos os que publiquei desde l959 no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, na revista Senhor e em outros lugares e n�o recolhi em minha primeira colet�nea cr�tica, Raz�o do poema, de l965. (...) Barrei sem remorso a minha juven�lia. Como dizia meu saudoso amigo Murilo Mendes, precisamos ser contempor�neos, e n�o apenas sobreviventes, de n�s mesmos.

*****

Na confer�ncia que fez no PEN Club, em junho de 1991, por sugest�o afetuosa do cientista pol�tico Celso Lafer, que o trouxe ao Rio, Antonio Candido falou pela primeira vez, demoradamente, de Merquior. Em 18 de setembro de 1995, a meu pedido, o cr�tico enviou-me a vers�o escrita de trecho dessa fala,� que reproduzi, em parte, na contra-capa da reedi��o de Raz�o do poema, pela Topbooks, em 1996. Transcrevo, por sua import�ncia, a p�gina integral, s�ntese perfeita da� forma mentis de Merquior:

... foi sem d�vida um dos maiores cr�ticos que o Brasil teve, e isto j� se prenunciava nos primeiros escritos. Lembro como sinal precursor o ensaio que escreveu bem mo�o sobre A can��o do ex�lio, de Gon�alves Dias, fazendo uma descoberta que dava a medida de sua imagina��o cr�tica, � entendendo-se por imagina��o cr�tica a capacidade pouco freq�ente de elaborar conceitos que t�m o teor das express�es metaf�ricas ou o v�o das cria��es ficcionais. Estou falando do seguinte: ao comentar a afirma��o costumeira que o famoso poema � t�o bem realizado porque n�o tem adjetivos, ele mostrou que a sua efici�ncia prov�m na verdade do fato de ser todo ele, virtualmente, uma esp�cie de grande express�o adjetiva, uma qualifica��o sem qualificativos, devido � tonalidade do discurso.

Num de seus ensaios mais recentes ele disse que a falta de informa��o filos�fica prejudicava a maioria da cr�tica brasileira. Ora, deste mal ele estava galhardamente livre. A sua acentuada voca��o especulativa e a vasta erudi��o que a nutria lhe permitiram fazer do trabalho cr�tico uma investiga��o que n�o se satisfazia em descrever e avaliar os textos, mas desejava descobrir o sentimento entesourado e em seguida lig�-lo a outros produtos da cultura. Da� um cruzamento fertilizador, caracter�stico do seu trabalho: o pensador Jos� Guilherme Merquior era capaz de expor os seus pontos de vista com a expressividade de um escritor versado na melhor literatura, enquanto o cr�tico Jos� Guilherme Merquior era capaz de interpretar os textos ou tra�ar a articula��o dos movimentos com a capacidade dial�tica de discriminar e integrar, pr�pria da mente filos�fica. Por isso, poucos foram t�o capazes de associar o impulso do pensador ao olhar do leitor penetrante. Nele, era not�vel a combina��o de gosto fino, arg�cia anal�tica, precis�o da s�ntese e transfigura��o reflexiva.

N�o espanta que, sendo dotado de tais qualidades, Merquior tenha podido com igual maestria fazer an�lises fin�ssimas e construir vis�es integradoras. Ele sabia desmontar a fatura dos textos sem os reduzir � mec�nica formalista e inscrever as obras na seq��ncia temporal sem deslizar para o esquema. Sobrevoando esses dons, a linguagem adequada, expressiva, cheia de flama, parecendo comunicar � p�gina o ritmo trepidante que foi a sua vida de impetuosa dedica��o �s coisas mentais.

Em algumas passagens de seus livros Merquior esbo�a uma autobiografia intelectual, como, por exemplo, em A natureza do processo (l982),� escrito em cinco semanas por provoca��o do editor S�rgio Lacerda:

...o autor n�o deixa de considerar este livro um reflexo de algumas das preocupa��es mais vivas de sua gera��o � uma gera��o condenada a aprender, na velhice do s�culo, as li��es que a hist�ria contempor�nea j� permite extrair da longa emula��o de sistemas sociais no nosso tempo.

Ou nas p�ginas introdut�rias de Cr�tica (1964-1989), que reviu no M�xico, e lhe provocava recorda��es dos primeiros anos de atividade:

Meu trajeto ideol�gico foi passavelmente err�tico at� desaguar, nos anos oitenta, na prosa quarentona de um liberal neo-iluminista. Se desde cedo mantive uma posi��o constante � a recusa dos m�todos formalistas, ent�o em pleno fast�gio � por outro lado meu quadro de valores mudou muito, especialmente no que se refere � atitude frente �s premissas est�ticas e culturais do modernismo europeu, ber�o da doxa huma�istica de nosso tempo.

Antes, em abril de 1981, no discurso de agradecimento pelo pr�mio de ensaio do PEN Club, que li em seu nome na cerim�nia a que n�o p�de comparecer, declarou:

Ensa�sta que procura n�o fugir �s necess�rias tomadas de posi��o, e insiste em exercer a escrita como discurso eminentemente cr�tico e autocr�tico, n�o posso deixar de receber a distin��o t�o expressiva com o sentimento de que o combate por uma literatura menos formalista, mais racional e mais humana, n�o � uma luta v� � embora seja travada contra v�rias das mais poderosas mitologias da nossa �poca. A honra � grande, o est�mulo ainda maior; meu agradecimento s� pode tomar a forma de uma renovada fidelidade � defesa das letras contra toda supersti��o ideol�gica.

*****

Em 1966 seguiu para Paris, seu primeiro posto internacional, como terceiro-secret�rio, levado por Bilac Pinto. Nessa �poca Merquior correu o risco de ser cassado: dera confer�ncias no ISEB, participara da organiza��o de um festival de cinema russo no MAM, e, em Bras�lia, ajudara a coordenar uma exposi��o de fot�grafos cubanos, pelo que teve de responder a inqu�rito. Depois trabalhou em Bonn, Londres, Montevid�u, novamente em Londres, uma r�pida volta a Bras�lia, a seguir no M�xico, e mais uma vez em Paris, onde estava como embaixador junto � Unesco quando foi surpreendido pela doen�a que o mataria, meses depois, nos Estados Unidos, em janeiro de 1991.

Jos� Guilherme Merquior fez no Itamaraty uma carreira r�pida e brilhante, o que n�o significa que tenha sido f�cil. Algumas vezes o vi irritado com intrigas e persegui��es veladas. Azeredo da Silveira, por exemplo, perseguiu-o o quanto p�de, por identific�-lo como funcion�rio e amigo de confian�a de Roberto Campos. Depois que Merquior foi promovido, mandou-lhe um telegrama de cumprimentos. Recebeu imediatamente outro de Merquior, repudiando as felicita��es. E um embaixador da fam�lia e do staff de Collor se op�s decisivamente � id�ia de sua� nomea��o� para o posto de chanceler.

Mas pertenciam tamb�m ao Itamaraty alguns dos amigos que mais estimava na vida: Paulo Renato Rocha Santos, a quem dedicou o ensaio sobre Gon�alves Dias; Jer�nimo Moscardo de Souza, que chegou a morar em sua casa no per�odo de prepara��o para o concurso do Itamaraty; Alberto da Costa e Silva, que o ajudou a se safar de problemas burocr�ticos, numa amizade ainda mais fortalecida pelo apre�o que Merquior tinha pela obra po�tica de Da Costa e Silva, pai; Marc�lio Marques Moreira, o interlocutor permanente e elo afetivo com San Tiago Dantas; Rubens Ricupero, cuja clareza mental e conhecimentos de pol�tica externa e economia eram para ele fonte de permanente consulta; e Roberto Campos, que sempre procurou ajud�-lo na carreira, como provam algumas cartas do arquivo pessoal de Merquior. Fascinado por sua intelig�ncia, Campos costumava enviar textos de sua autoria para que ele comentasse. Foi ainda na casa de Merquior em Bras�lia, na noite do dia em que Henry Kissinger fez confer�ncia na UnB interrompida pelos estudantes, que Campos acertou os �ltimos detalhes de sua� candidatura ao Senado por Mato Grosso.

No come�o da carreira conheceu San Tiago Dantas, que se tornou seu amigo. Por especial empenho de Merquior, San Tiago foi o paraninfo da turma de 1963 do Instituto Rio Branco, que escolheu o jovem cr�tico para orador. O conv�vio deles foi curto, mas afetuoso. Sempre que se referia ao autor de Dom Quixote � um ap�logo da alma ocidental, fazia-o com admira��o, e gostava de recordar suas idas � casa dele na rua D. Mariana, em Botafogo, onde a filosofia alem� e a literatura francesa � notadamente Proust, uma das paix�es liter�rias do anfitri�o � eram o tema dominante. Relembrava tamb�m, com especial emo��o, uma visita � casa de San Tiago em Petr�polis na companhia de Hilda, Marc�lio Marques Moreira e Jer�nimo Moscardo de Souza, ocasi�o em que o pol�tico serviu canjica com coco, sobremesa muito apreciada por Merquior.

Em sua biblioteca, hoje no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, h� alguns livros de San Tiago, entre eles um exemplar de Figuras do Direito (ed. Jos� Olympio, 1962) dedicado: "A J. Guilherme Merquior, com a estima e admira��o de San Tiago Dantas". A data � 24 de julho de 1964, menos de dois meses antes da morte do ex-chanceler, �s 6 da manh� do dia 6 de setembro. Sob o impacto dessa morte, Merquior escreveu um artigo e, como de praxe, consultou o Itamaraty antes de divulg�-lo. Era seu desejo publicar no Jornal do Brasil, conforme se l� no pedido que o ent�o terceiro-secret�rio enviou, no dia 16 de setembro de 1964, ao chefe do Departamento Consular e de Imigra��o do Itamaraty, solicitando "ju�zo favor�vel � publica��o do referido texto". No protocolo, h� quatro rubricas e apenas uma assinatura leg�vel � a do secret�rio-geral A. B. L. Castelo Branco. No parecer final, l�-se: "S� poder� ser autorizada a publica��o se o funcion�rio escoimar do artigo toda opini�o pol�tica, na forma dos regulamentos em vigor. Nada h� a opor aos merecidos elogios pessoais". Como o artigo nunca apareceu nas p�ginas do JB, � de se supor que Merquior, a ter que suprimir passagens do texto, preferiu n�o public�-lo. Contratempos � parte, ele n�o deixava de reconhecer que devia ao Itamaraty o fato de ter realizado a trajet�ria intelectual que conhecemos.

O� emocionado artigo de Merquior� come�a assim:

Junto ao t�mulo de San Tiago Dantas, Afonso Arinos e Roberto Campos falaram dele como do mais dotado� representante de sua gera��o;� disseram da invenc�vel tristeza de ver desaparecer, colhido aos cinq�enta e poucos anos, aquele exemplo superior de uma gera��o que, tendo chegado tarde ao poder, parece destinada a sofrer a sua fugacidade at� mesmo na perda prematura de alguns de seus melhores membros.

In�dito at� a morte de Merquior, este texto destaca o sentido pedag�gico da atua��o p�blica de San Tiago para as novas gera��es e reconhece a originalidade de sua vis�o da sociedade brasileira e das rela��es internacionais, ressaltando que sempre sobrep�s ao tosco moralismo � tendo na �poca na UDN a mais alta representa��o � uma vis�o larga dos problemas, amparada permanentemente numa �tica e num entendimento �ntimo da "raz�o hist�rica". Em 1969, Merquior dedicou � mem�ria de San Tiago Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, primeiro tratamento sistem�tico, entre n�s, sobre a Escola de Frankfurt.

Em todos os postos onde esteve procurou difundir a cultura brasileira. Embaixador no M�xico, criou a c�tedra Guimar�es Rosa, al�m de ter realizado a compra da atual sede da embaixada por empenho pessoal junto ao presidente Jos� Sarney. Ali tornou-se �ntimo do poeta e ensa�sta Octavio Paz, que viria a saud�-lo na sua despedida, em nome dos mexicanos, numa simp�tica festa organizada por Hilda nos jardins da embaixada. A convite de Paz, voltaria ao M�xico, j� doente, para o semin�rio "El siglo XX: La experiencia de la liberdad", organizado pela revista Vuelta e a Televisa,�� participando do debate sobre "La nueva Europa, Estados Unidos y America Latina", ao lado de Daniel Bell, Hugh Thomas, Mario Vargas Llosa, Jean Fran�ois Revel. Teve alguns livros editados pelo Fondo de Cultura Econ�mica, a mais prestigiosa editora mexicana, e colaborou em revistas como Vuelta, de Octavio Paz e Enrique Krause; Cuadernos y Libros Americanos, de Leopoldo Zea, e Nexos, de Hector Aguilar Cam�n. Foi Krause, historiador que estimava por sua corajosa revis�o da hist�ria mexicana, quem melhor escreveu sobre Merquior depois de sua morte, no artigo "O esgrimista liberal" (Vuelta, janeiro de 1992).

(...) Sua maior contribui��o � diplomacia brasileira no M�xico n�o ocorreu nos corredores das chancelarias ou atrav�s de relat�rios e telex, mas na tert�lia de sua casa, com gente de cultura deste pa�s. (...) A Embaixada do Brasil se converteu em lugar de reuni�o para grupos diferentes e at� opostos de nossa vida liter�ria. L� se esqueciam por momentos as pequenas e grandes mesquinhezas e se falava de livros e id�ias e de livros de id�ias. Merquior convidava a gregos e troianos, escrevia em nossas revistas e procurava ligar-nos com publica��es hom�logas em seu Brasil. (...) Merquior cumpriu um papel relevante: foi uma inst�ncia de clareza, serenidade e amplitude de alternativas no di�logo de ambos os governos.

*****

Professor no� King's College, em Londres,� doutorou-se em letras pela Sorbonne, orientando de Raymond Cantel, com tese sobre Carlos Drummond de Andrade aprovada com louvor em junho de 1972. Depois de levar meses para� acusar a remessa dos cap�tulos que Merquior lhe enviava, Drummond respondeu:

Eu poderia� tentar justificar-me alegando que esperava o recebimento do texto completo para lhe escrever. Mas a verdade verdadeira � que, desde a leitura das primeiras p�ginas, me bateu� uma esp�cie de inibi��o que conhe�o bem, por ser velha companheira de minhas emo��es mais puras. Se voc� estivesse ao meu lado nos momentos de leitura, decerto acharia gra�a na dificuldade e confus�o das palavras que eu lhe dissesse. Talvez at� nem dissesse nenhuma. E na minha cara a encabula��o vis�vel diria tudo... ou antes, n�o diria nada, pois o melhor da sensa��o escapa a esse c�digo fision�mico. Senti-me confortado, vitalizado, vivo. Meus versos saem sempre de mim como enormes pontos de interroga��o, e constituem mais uma procura do que um resultado. Sei muito pouco de mim e duvido muito � voc� vai achar gra�a outra vez � de minha exist�ncia. Uma palavra que venha de fora pode trazer-me uma certeza positiva ou negativa. A sua veio com uma afirma��o, uma for�a de convic��o que me iluminou por dentro. E tamb�m com uma sutileza de percep��o� e valoriza��o cr�tica diante da qual� me vejo orgulhoso de nobre orgulho e... esmagado. Eis a�, meu caro Merquior. Estou feliz, por obra e gra�a de voc�, e ao mesmo tempo estou bloqueado na express�o dessa felicidade.

Tamb�m doutorou-se na London School of Economics, sob a batuta de Ernst Gellner � de quem viria a se tornar amigo e introdutor da obra entre n�s � com tese sobre a teoria da legitimidade em Rousseau e Weber, publicada depois pela Routledge & Kegan Paul, e que, no posf�cio, em 1990, � edi��o brasileira finamente traduzida por Margarida Salom�o,� qualificou de "meu livro mais elaborado". Este passou quase despercebido no Brasil, embora tenha provocado na Inglaterra o mais vivo interesse acad�mico, ganhando elogios de Peter Gay, John Hall e Wolfgang Mommsen,� o grande especialista em Weber.

Ele poderia ter sido igualmente um cr�tico imbat�vel de artes pl�sticas, porque acompanhava tudo a respeito, mantendo-se atualizado sobre as novidades te�ricas no setor. Adorava Poussin, Tiepolo, mas tamb�m escreveu sobre Degas, Hodler, Lygia Clark, Lygia Pape, e outros. Veja-se os eruditos ensaios que dedica ao tema em Formalismo e tradi��o moderna. Em viagem a Floren�a, j� doente, fez quest�o de rever a capela Brancacci, onde se encontram os afrescos de Masaccio,� pintor� que tanto estimava. Pode-se mesmo dizer que a It�lia foi a sua p�tria art�stica, e n�o escondia o desejo de, um dia, ser nomeado� embaixador neste pa�s.

* * *

Quando decidiu candidatar-se � Academia Brasileira de Letras n�o imaginava que a disputa com Arnaldo Niskier iria se prolongar por mais de um ano. Examinou as possibilidades. Escreveu � m�o uma tabela com os nomes dos acad�micos por estado: na Bahia, onde supunha ter mais votos, os de Luiz Viana Filho, Jorge Amado, Herberto Sales e Eduardo Portella. Ao lado do �ltimo nome desenhou um envelope, ou seja, Portella votaria por carta. O mesmo desenho aparece ao lado do nome de Jo�o Cabral. Na horizontal lia-se a lista por estados; na vertical� os nomes dos membros da ABL agrupados segundo as expectativas de voto: "certos, prometidos, prov�veis, poss�veis, certos para Niskier". Na primeira vota��o ningu�m conseguiu quorum. Niskier tinha em Austreg�silo de Athayde, presidente da casa, seu mais poderoso aliado.

Marcou-se nova elei��o para meses depois. O poder de que diziam estar Merquior aureolado n�o contou. N�o houve ministro nem presidente Figueiredo fazendo pedidos constrangedores aos votantes. Merquior teve de acompanhar sozinho o desenrolar da campanha. O empres�rio Jos� Carlos Nogueira Diniz, amigo e compadre, p�s � sua disposi��o um pequeno apartamento na S� Ferreira �� rua� onde morava sua m�e, Dona Belinha � e ele vinha para o Rio nos fins-de-semana encontrar-se com eleitores e amigos. Em novembro de 1982, elegeu-se, depois de longa disputa, � vaga de Paulo Carneiro na ABL, vencendo por 22 votos contra 15 dados a Niskier e um a Geir Campos. A recep��o, na vit�ria, foi patrocinada pelo mesmo Nogueira Diniz, que recebeu, em seu apartamento na Barra da Tijuca, convidados em grande maioria da rep�blica das letras. O discurso de posse, que muitos levam meses a escrever, Merquior fez num fim de semana, e no dia da cerim�nia, 11 de mar�o de 1983, chegou � Academia de t�xi. Nada que sugerisse o poder que lhe era atribu�do.

Nesta ocasi�o entrevistei-o para a �ltima hora (13.11.1982) e, entre outros assuntos, perguntei-lhe sobre o liberalismo. Sua resposta:

O liberalismo moderno � um social-liberalismo, � um liberalismo que n�o tem mais aquela ingenuidade, aquela inoc�ncia diante da complexidade do fen�meno social, e em particular do chamado problema social, que o liberalismo cl�ssico tinha. O liberalismo moderno n�o possui complexos frente � quest�o social, que ele assume. � a essa vis�o do liberalismo que eu me filio.

Sobre a validade dos conceitos de direita e esquerda afirmou:

Eu acho que esse tipo de conceitua��o est� em grande parte esvaziado pelo uso demasiado sloganesco que dele tem sido feito. O problema da direita versus esquerda, usado na base do clich�, tem levado realmente a muito pouca an�lise. � o caso t�pico em que a discuss�o produz mais calor do que luz. Trata-se de palavras dotadas de uma grande carga emocional e que s�o usadas para fins puramente pol�micos na vida pol�tica e no combate ideol�gico. Eu hoje sou um c�tico em rela��o ao uso dessas categorias.

*****

O �ltimo ensaio de Merquior chamou-se "Situa��o de Miguel Reale", para o volume Direito Pol�tica Filosofia Poesia, coordenado por Celso Lafer e T�rcio Sampaio Ferraz Jr. para a editora Saraiva, comemorativo do octog�simo anivers�rio de Reale. Embora escrito em meio a exames m�dicos, pois a doen�a� estava avan�ada,� provocou o entusiasmo de Reale, que em carta de 7 de dezembro de l990 assim o expressou:

� uma an�lise abrangente e profunda, ponto de partida essencial a qualquer nova indaga��o, a come�ar pelas observa��es sobre o culturalismo. Voc� viu bem a correla��o de meu pensamento com o de Croce, pois bem cedo fui um leitor entusiasta de sua revista, Critica, que renovou o pensamento italiano. (...) A influ�ncia de Hegel e Marx em minha forma��o foi atenuada pela filtragem croceana, revelando-se logo minha oposi��o a Gentile e seu idealismo "attualista". (...) Outro ponto que me impressionou foi o seu paralelo com Raymond Aron, a quem me aproximo� pela constante viv�ncia� da problem�tica filos�fica em sintonia com a pol�tica.

Trabalhador intelectual incans�vel e extremamente organizado, Merquior escrevia com rapidez, praticamente sem corrigir. Uma vez, j� no aeroporto, de volta para Londres, se deu conta de que n�o preparara seu artigo semanal para o JB. Pediu-me que conseguisse umas folhas de papel e voltasse em meia hora. Fui passear pelo aeroporto e, quando retornei, recebi o manuscrito e um novo pedido: que fizesse a gentileza de mandar datilografar e enviar, no dia seguinte, ao Mario Pontes, do JB. Escrevendo de Londres, em l6 de outubro de l984, ao mesmo Miguel Reale, que lhe estranhara o sil�ncio dos �ltimos meses, conta:

A raz�o do meu sil�ncio � a infind�vel labuta de minha pena este ano, ora em pleno terceiro livro. No primeiro semestre, redigi um estudo sobre Foucault, a sair aqui dentro de um ano, e um exame cr�tico algo alentado do estruturalismo e sua seq�ela: From Saussure to Derrida (350 pgs.). Agora me encontro todo entregue a um volume, mais conciso, sobre o marxismo ocidental. Todos encomendas locais. Mas deram e d�o trabalho: releituras, novas leituras, reaprecia��es....

*****

Um artigo fundamental para a compreens�o do modo como Merquior pensava o Brasil publicou-se na Folha de S. Paulo em l0.03.l985. "Nova Rep�blica: o horizonte social-liberal" come�ava dizendo:

Como imaginar o Brasil da Nova Rep�blica? Talvez n�o seja mau come�ar por uma constata��o: a de quanto o nosso pa�s, at� aqui, j� conseguiu desmentir os estere�tipos mais renitentes sobre a Am�rica Latina em seu conjunto

E finalizava com um agudo perfil de Tancredo Neves:

Gra�as a seu senso hist�rico-filos�fico do papel do Estado, Tancredo regenera a no��o da autoridade leg�tima entre n�s. Da� a tranq�ila, suave impress�o que cerca, nesse homem proverbialmente af�vel, o sentido no entanto viv�ssimo da autoridade. Reparem nas montanhas de Minas: delas emana uma majestade amena, muito diversa da monumentalidade abrupta de outros relevos. Algo semelhante deflui da imago potestatis de Tancredo. Essa majestas sem pompa, mas sempre c�nscia da pr�pria dignidade, � a que melhor consulta os requisitos do poder em reconstru��o na transi��o democratizante. (...) No discurso de Vit�ria, Tancredo preconizou o refor�o da democracia e a reanima��o do princ�pio federal. O poder, na Nova Rep�blica, admite, deseja desconcentrar-se. E pode faz�-lo, porque o que perder em concentra��o ser� ganho em autoridade. No ciclo atribulado da nossa Quarta Rep�blica, Juscelino nos ensinou o conv�vio com o desenvolvimento. A grande, s�bria esperan�a da Nova Rep�blica � que com Tancredo, nosso pr�ncipe civil, a na��o interiorize de vez a viv�ncia da democracia. Qualquer coisa aqu�m disso seria indigna do Brasil moderno.

O desejo de interferir no debate social brasileiro levou Merquior a escrever, em diversas ocasi�es, a pol�ticos com quem tinha rela��es de amizade. A Jos� Sarney, ent�o presidente, endere�ou cartas hoje preciosas para a an�lise do seu pensamento pol�tico, como � exemplo a que mandou de Londres, em 15 de abril de 1985.

(...) A meu ver, seu governo ser� um bombom: o recheio � castelista (Sarney, Le�nidas), mas o envelope de chocolate ser� a Alian�a Democr�tica, com dominante PMDB.

A alternativa: governar tamb�m com o PDS,� me parece ir, se a dose for muito alta, contra a aspira��o de mudan�a que anima o pa�s, e portanto poderia impopularizar. O que, evidentemente, n�o pro�be o aproveitamento de um que outro nome nacional do PDS.

A perman�ncia do Presidente no PMDB torna-se, por essa l�gica, a essa altura, imprescind�vel. Se V. l� est�, para que sairia? O �nico resultado pr�tico de uma eventual prefer�ncia pelo PFL seria entregar o maior partido ao her�i de Homero.

Quando o que seria conveniente cont�-lo, em sua condi��o de alternativa latente para seu poder presidencial, aliciando para tanto boa parte do PMDB. Como? Refor�ando a liga��o Sarney-Lyra. Fazendo talvez Fernando Henrique ministro (do exterior? da pr�pria Casa Civil?). E sobretudo fazendo desde j� certos gestos simp�ticos � esquerda, embora � �a va sans dire � sem comprometer a linha moderada, social-liberal, que presidiu o nascimento da nova rep�blica. Uma 'apertura a sinistra', sem exagero.

Que gestos poderiam ser esses? De imediato, vejo dois. Um, o seu programa de emerg�ncia, desde que assegurada a sua compatibilidade com o refor�o efetivo do combate � infla��o.

Este ponto, meu caro Sarney, � absolutamente vital. V. est� sendo � injustamente � acusado de n�o ligar para a severidade indispens�vel da nossa postura econ�mico-financeira. N�s, os literatos, seremos sempre acusados de moleza nesse cap�tulo. O jeito � impedir a todo custo que essa imagem falaciosa ganhe terreno. A infla��o � de fato o mais cruel dos impostos: sempre atinge principalmente a pequena classe m�dia e as camadas populares, e a preocupa��o de domin�-la n�o � nenhum preconceito direitista ou conservador.

Na mesma carta advoga o reatamento das rela��es com Cuba, colocando-se � disposi��o para trabalhar discretamente nesse processo:

Outro gesto de grande charme para a esquerda: reatar rela��es com Cuba. 'Eles ficariam meio ano digerindo este pit�u, obrigados a achar que 'p�, esse Sarney at� que n�o � assim t�o rea�a...'

Cuba hoje n�o oferece maiores perigos na Am�rica do Sul. O guevarismo j� era. E o reatamento tem pelo menos tr�s vantagens para n�s:

a)      abriria um significativo potencial de exporta��es brasileiras;

b)      permitiria ao Brasil influir, em boa medida, na conduta internacional de Havana, como faz o M�xico, em sentido moderador e realista;

c)      evitaria que, no futuro, nosso reatamento se desse a reboque de uma reconcilia��o diplom�tica Cuba/USA, reconcilia��o essa, a m�dio prazo, t�o certa quanto o foi o reconhecimento de Pequim por Washington, na d�cada passada.

Em 1� de outubro de 1990, Merquior teve um encontro com o presidente Fernando Collor de Mello na passagem deste por Paris, a caminho de Praga. Voltariam a se encontrar na resid�ncia parisiense de Baby Monteiro de Carvalho, quando conversaram a s�s por quase uma hora. Nesta noite, Collor exp�s suas id�ias sobre um partido social-liberal e pediu a Merquior para desenvolver o tema. O paper que produziu, s� conhecido por uns poucos� com os quais discutia enquanto o elaborava, s�o, no original, 33 p�ginas datilografadas, nas quais estrutura uma "agenda social-liberal para o Brasil", abrangendo sete temas: a) o papel do Estado; b) democracia e direitos humanos; c) o modelo econ�mico; d) capacita��o tecnol�gica; e) ecologia; f) a revolu��o educacional; e g) desarmamento e posi��o internacional do Brasil. S� n�o desenvolveu os itens d e e, sugerindo, j� doente, que pedissem a Roberto Campos para faz�-lo.

Esses textos, pensados como programa de partido, escritos e ampliados a partir das intui��es e indica��es de Collor, foram depois publicados por este, provocando uma grande confus�o nos jornais, que o acusavam de plagiar Merquior. Em O Globo de 10 de janeiro de 1992, Roberto Campos, com sua natural lucidez, resumiu a quest�o: "Vejo na atitude de Collor um procedimento normal a qualquer presidente, que raramente escreve seus artigos e discursos. A figura do ghost-writer � uma institui��o mundial".

Nos �ltimos anos, sempre que Merquior vinha ao Brasil marc�vamos� visita ao escrit�rio do advogado Jorge Serpa,� para uma "ausculta��o" da situa��o pol�tica e econ�mica do pa�s. Merquior gostava das an�lises de conjuntura que Serpa sabia fazer, da maneira como via o Brasil em conson�ncia com o mundo l� fora. A conversa tamb�m passava por temas filos�ficos, pois Serpa � um orteguiano de carteirinha, al�m de conhecedor de filosofia antiga, em especial o Plat�o do Sofista. Curiosamente, sempre que sa�amos do escrit�rio do advogado, ent�o na Pra�a Pio X, Merquior pedia para irmos at� a igreja da Candel�ria. Postava-se a admirar o interior, fazendo coment�rios est�ticos, e nunca falava em religi�o ou f�. Mas penso que, no �ntimo, esses assuntos o acicatavam.

Foi tamb�m Jorge Serpa quem pavimentou o caminho de Jos� Guilherme Merquior� at� �s p�ginas de O Globo. Certo dia, depois de almo�armos na TV Globo, na hora da despedida, Roberto Marinho chamou Merquior a um canto da sala. Vi que ele balan�ava a cabe�a negativamente, naquele jeito que s� quem o conheceu poderia entender. E ria. Depois, no carro, contou-nos o di�logo. ---"Merquior, voc� tem alguma coisa contra O Globo?" � "N�o, Dr. Roberto, nada. Por qu�?" � "Porque nunca o vi escrevendo no Globo". Come�ava ali, naquela tarde, a coluna A vida das id�ias,� que estreou a 6 de dezembro de 1987 e s� terminou pouco antes de sua morte, com um� artigo intitulado "O sentido de 1990".

A convite de Collor, Merquior estava em� Bras�lia, a� 20 de fevereiro de 1990, para o almo�o em torno do escritor peruano Mario Vargas Llosa, ent�o candidato � presid�ncia do Peru, mas tendo ainda que enfrentar o segundo turno das elei��es. O almo�o, na casa do m�dico Eduardo Cardoso, teve tamb�m a presen�a do empres�rio Roberto Marinho. Dois dias antes Merquior me ligara de Londres, contando que estava fazendo as malas porque tinha recebido um telefonema de Marcos Coimbra informando que Collor� o convocava a� participar desse encontro. Os jornais logo come�aram a especular sobre suas possibilidades ministeriais.

Viajei para Bras�lia no dia seguinte com Dr. Roberto e seu amigo �lvaro Dias de Toledo. No hangar, nos esperavam Merquior e Toninho Drummond, diretor da TV Globo na capital. Sugeri a Merquior que desse ao Dr. Roberto um quadro da situa��o, e deixamos os dois conversando por uns 20 minutos. Depois Toninho entrou num carro com Dr. Roberto e �lvaro, eu em outro, com Merquior, e rumamos para� a Q.I. 15 do Lago Sul, endere�o da bela mans�o� do amigo de Collor. Despedi-me de Merquior e fui, com Toninho e �lvaro, almo�ar na TV Globo.

Por volta das 15h30, Roberto Marinho chegou do almo�o. Descansou� meia hora no sof� da sala de Toninho, e logo ap�s seguimos para o aeroporto. No avi�o, perguntei: "O que o senhor achou do almo�o? Viu chances em rela��o � nomea��o de Merquior para o Minist�rio das Rela��es Exteriores?" E o Dr. Roberto: "N�o tive oportunidade de conversar sozinho com o Collor. Ali�s, tenho pouca intimidade com ele, apesar de conhec�-lo desde pequeno. Mas o Merquior foi prestigiad�ssimo no almo�o. A toda hora o presidente reportava-se a ele. Pediu-lhe,� inclusive, que fizesse o discurso de sauda��o a Vargas Llosa".

� noite Merquior� ligou para comentar os fatos do dia. Disse-me que o presidente dera a ele uma sala no Pal�cio para que� trabalhasse no discurso de posse (depois modificado na segunda parte por Gelson Fonseca).� Merquior ficou em Bras�lia at� a quinta-feira, e esteve no Senado, onde seu encontro com Fernando Henrique Cardoso causou frisson entre rep�rteres e fot�grafos. Contou-me depois, de Paris, que Collor o havia sondado para o Minist�rio da Cultura, mas, diplomaticamente, fizera ver ao presidente que a nomea��o lhe traria uma redu��o salarial dr�stica num momento em que os filhos J�lia e Pedro ainda se encontravam em idade escolar. Naturalmente teria aceitado o Minist�rio das Rela��es Exteriores, o coroamento da carreira no Itamaraty, mas nunca� lamentou, nem demonstrou rancores de qualquer ordem: n�o era do seu feitio. Retomou os� compromissos profissionais em Paris; para Collor escreveu ainda um discurso, lido na Rep�blica Tcheca como sauda��o a Vaclav Havel,� e� outro� para ser� dito em Portugal.

*****

Merquior era um� contendor verbal r�pido e certeiro, mas querer reduzi-lo apenas a polemista � um erro. A� propens�o ao debate de id�ias, que muitas vezes levou-o a rebater com dureza os advers�rios, foi usada pela m�dia com fins facilit�rios. Poucas� vezes� se procurou promover seriamente uma discuss�o profunda. Os advers�rios usaram sua veia pol�mica para desqualific�-lo como figura exponencial da direita: se o argumento de Merquior era forte � e n�o havia d�vidas de que era um erudito imbat�vel � ent�o a sa�da era atac�-lo noutro flanco.

Um caso sintom�tico ocorreu quando chamou a aten��o para a presen�a de v�rios par�grafos de Claude Lefort em livro de Marilena Chau�, sem as devidas aspas.�� Em vez de desculpar-se � afinal, Merquior nunca falara em pl�gio, e sim em "desaten��o", como disse, em julho de l989, na Folha de S. Paulo: "Repito pela en�sima vez que ao detectar a presen�a de frases de Lefort no texto de Marilena jamais me passou pela cabe�a� achar que ela o fazia com a inten��o de esconder o leite" � a fil�sofa paulista revidou batendo na velha tecla de direita versus esquerda. O fato � que se armou uma tempestade em S�o Paulo, com direito at� a abaixo-assinado e outras rea��es azedas contra ele.

Todos os que n�o conseguiam enfrent�-lo de forma minimamente razo�vel partiam para o agravo. Eduardo Mascarenhas, por exemplo, declarou que Merquior praticava "terrorismo bibliogr�fico", isso porque seus livros tinham muitas cita��es. Em nenhum f�rum intelectual s�rio este tipo de argumento funcionaria. Ent�o no auge da fama � por ter declarado que "jamais brochara" � Mascarenhas revelou, num programa de televis�o em que Merquior era o entrevistado, que se dera ao trabalho de contar quantos nomes havia no �ndice onom�stico de As id�ias e as formas. Logo depois come�aram os debates entre os dois no Jornal do Brasil sobre a validade cient�fica e epistemol�gica da psican�lise. O jornal n�o economizou espa�o. Merquior declarara, no Canal Livre, que "a psican�lise era uma doen�a do intelecto", e em "O avestruz terap�utico", artigo publicado no JB, em 31 de janeiro de 1982, completava:

Desconfio que a pr�xima edi��o do perspicaz Tratado geral dos chatos, de Guilherme Figueiredo, trar� um cap�tulo especialmente consagrado ao chato analisando, que, decretando 'todo mundo neur�tico', n�o descansa enquanto n�o vence a 'resist�ncia' (ou torra os pa�ses baixos) dos amigos e at� conhecidos, no ign�bil af� de prostr�-los no div�.

No in�cio dos 80, o debate com os psicanalistas mobilizou a imprensa. Os artigos de Merquior no JB, onde colaborava, dividiram a opini�o dos intelectuais especialistas na mat�ria. O psicanalista Mascarenhas respondia pela categoria. Na �poca,� dizia-se que seus textos, antes de publicados, eram lidos por colegas teoricamente mais preparados. Coincid�ncia ou n�o, o fato � que lan�ou depois v�rios livros e jamais recolheu, em nenhum deles, o material que assinou durante a pol�mica. Ele encarnava a classe ferida, da qual um dos gurus era H�lio Pellegrino. Este veio a publicar um artigo na Folha de S. Paulo (13.02.82) sob o t�tulo: "Comigo n�o, viol�o!", onde procurava desacreditar Merquior enfatizando tratar-se de "funcion�rio de governo anti-democr�tico". Como n�o apresentou nenhuma refuta��o te�rica relevante, levou Merquior a dizer: "Trata-se de um pensador sem id�ias e um autor sem livros".� No artigo-resposta, publicado no mesmo jornal� no dia l7 e intitulado "Escapismo e agress�o", Merquior contra-atacava:

As cr�ticas que venho dirigindo � psican�lise certamente possuem uma quota de s�tira, irresistivelmente provocada pela pr�pria beatice que costumam exibir os c�rculos devotos de Freud. No entanto, desde o in�cio, isto �, desde junho de 1980, quando foi lan�ado o livro O fantasma rom�ntico, todos os textos em que procurei questionar a validez cient�fica, terap�utica e cultural da psican�lise exp�em v�rios argumentos e v�rias refer�ncias a pesquisas emp�ricas, uns e outras inteiramente independentes, em si mesmos, do tom de s�tira ou ironia presente nesses escritos.

Merquior n�o conhecia H�lio pessoalmente. Nessa mesma �poca, fomos a uma galeria de arte em Ipanema, e, mal chegamos, noto pelo vidro o H�lio Pellegrino. Nisso, algu�m vem falar comigo, e Merquior entra antes que pudesse preveni-lo de que H�lio estava l�. Fico acompanhando de fora o que se passa no interior, e da� a pouco o vejo em meio a um grupo onde se encontrava o psicanalista. Conversa longa, cheia de risos. Em seguida ele vai para� outra roda. Quando consigo me deslindar,� parto a seu encontro, e me� pergunta: "Quem � aquele camarada simp�tico?" Era H�lio Pellegrino.� Merquior riu muito ao saber.

Uma de suas maiores qualidades residia em saber apreciar o contendor inteligente. As discuss�es com Leandro Konder � de quem se tornara amigo antes dos 20 anos, quando se conheceram nas sess�es de cinema do MAM e logo passaram a trocar id�ias em torno da obra do marxista h�ngaro Georg Luk�cs � e com Carlos Nelson Coutinho, outro companheiro pelo qual tinha enorme afei��o,� contabilizava-as entre seus prazeres intelectuais. Respeitava cr�ticas agudas, como a de Rubem Barbosa Filho a O marxismo ocidental, em julho de l987, na revista Presen�a. E seu primeiro livro, Raz�o do poema, ainda hoje considerado um feito por t�-lo publicado aos 25 anos, teve apresenta��o de Leandro Konder. Mas, ao contr�rio de Leandro e Carlos Nelson, houve tamb�m os que preferiram, para desviar a aten��o, tach�-lo, simplesmente, de reacion�rio e intelectual org�nico da ditadura.

Entre os muitos com quem polemizou estava o soci�logo Francisco de Oliveira,� que Merquior considerava 'filosoficamente incompetente',� desafiando-o para um debate p�blico. O soci�logo recusou, mas se comprometeu a publicar qualquer ensaio que o desafiante enviasse aos Cadernos Cebrap, de que era diretor. Antes havia dito que s� lera um livro do seu advers�rio. Em declara��o � Folha de S. Paulo Merquior atacava: "Enquanto n�o acontece o debate eu tenho duas tarefas para ele � ler alguns dos meus livros e realizar com categorias marxistas uma an�lise das reformas econ�micas gorbatchovianas". Para Oliveira, o marxismo estava em plena vitalidade, enquanto para Merquior eram vis�veis os sintomas de exaust�o.

Polemizou tamb�m com M�rio Vieira de Mello, nos Cadernos RioArte, sobre temas gregos; com Carlos Nelson Coutinho sobre a democracia no interior do marxismo; com Jos� Artur Gianotti; com o embaixador Meira Pena sobre o pensamento de Jung, e com muitos outros. Acusado por figuras como Carlos Henrique Escobar de "empregadinho da ditadura militar, servil servidor de um providencial cabide de empregos para intelectuais org�nicos", reagiu qualificando o advers�rio de "intelectual pigmeu e leviano".

Respondendo ao cr�tico liter�rio Wilson Martins, que comentara em dois artigos, publicados em junho de l984 no JB, o� livro O elixir do apocalipse (1983), num texto a que chamou "O martinete", ironizou:

Minha famigerada erudi��o, j� cansei de insinuar, mal passa de uma ilus�o de �tica. Na maioria das vezes em que � indigitada, ela parece refletir apenas a ignor�ncia dos que a acusam. Ser� minha culpa se, em nosso meio intelectual, volta e meia ainda se valoriza mais a saca��o do que a fundamenta��o, o palpite do que o argumento, a alegre usurpa��o de id�ias alheias do que o cuidado em identificar tradi��es de pesquisa e linhagens de pensamento?

Todas essas tomadas de posi��o eram atitudes cr�ticas, n�o pessoais. Fez quest�o de convidar Marilena Chau� a dar confer�ncia no M�xico � e ela n�o aceitou. Certa vez referiu-se a Caetano Veloso como "um pseudo-intelectual de miolo mole". E fundamentava a opini�o: "...n�o compartilho dessa vis�o pateta do Brasil de que os grandes astros da m�sica popular s�o intelectuais". Conversando com Caetano, h� tempos, dele ouvi que, depois desse epis�dio, certa noite em S�o Paulo pediu a seu assistente para limitar a aflu�ncia� ao� camarim ap�s o show,� porque� um compromisso o obrigava a� sair t�o logo finalizasse a apresenta��o. Soube depois que Merquior� l� estivera, mas fora barrado pelo assessor, que n�o fazia a menor id�ia de quem ele era. Caetano achou gra�a da desinforma��o de seu empregado, confessou que gostaria de ter recebido o ensa�sta, e repetiu, divertido, a� express�o "miolo mole", afirmando que Merquior estava certo. Creio que a conversa entre� os dois teria sido cordial�ssima.

*****

Testemunhei in�meras rea��es hostis a Merquior, em geral de pessoas que n�o o conheciam pessoalmente. Darcy Ribeiro, por exemplo, durante muito tempo s� se referia a ele com ironias. "E o seu amigo de direita?", me perguntava.� Ou ainda: "Como vai o protegido de Roberto Campos?" Nos seus cacoetes de homem de esquerda, costumava falar de supostas comiss�es recebidas pelo economista e diplomata e depositadas em� nome de pessoas �ntimas dele, como Merquior. Nas reuni�es das manh�s de quinta-feira em seu gabinete, chamadas de "Culturinha'' � quando acumulava os cargos de vice-governador e secret�rio de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, no governo Brizola � vez por outra fazia coment�rios maledicentes sobre� Merquior e sua obra � que intu�a mas n�o tinha lido. Surpreendi-me quando, um dia, Darcy me chamou com ar aliciante, dizendo: "Z� Mario, voc� tem falado com� seu amigo reacion�rio?" Sabendo a quem se referia, respondi: "Falo sempre". E ele: "Preciso de uma ajuda. � o seguinte: o Brizola quer erigir um monumento a Zumbi dos Palmares. Vamos ter que abrir concurso, o que � um desastre, porque pela lei somos obrigados a aceitar a escultura ganhadora, e� acho a escultura que se faz hoje no Brasil� uma merda. A mais bela estatu�ria negra que j� vi est� no Museu Brit�nico, que possui uma magn�fica cole��o de est�tuas do Benim, na Nig�ria. Como ningu�m sabe a cara que tinha Zumbi, minha id�ia � p�r no monumento desenhado pelo Oscar (Niemeyer)� a c�pia de uma dessas est�tuas, mas para isso preciso de uma reprodu��o em gesso de uma delas. Fale, por favor, com seu amigo em meu nome, e diga que estou pedindo a ajuda dele".

Telefonei imediatamente para Merquior, que se prontificou a colaborar. Nem imaginava a confus�o burocr�tica em que se metera. No Museu, ao explicar o que desejava, lhe informaram que se tratava de patrim�nio nacional da Nig�ria, e era necess�rio pedir autoriza��o. Ansioso, a toda hora Darcy perguntava pelo assunto. At� que Merquior desembarca no Brasil trazendo a desejada c�pia, e me procura na vice-governadoria � exatamente numa quinta-feira, dia em que o staff cultural de Darcy se reunia numa sala ao lado do seu gabinete. E chega quando os membros desse conselho come�am a sair e se deparam com ele no corredor trazendo uma caixa debaixo do bra�o. Muitos ficam surpresos ao v�-lo, mas logo Darcy aparece e grita: "Merquior, que prazer v�-lo!" E dirigindo-se aos outros: "Bem, pessoal, me despe�o de voc�s,� porque tenho muito o que conversar com o Merquior e o Z� Mario". Em seguida nos arrasta para seu gabinete, e o final da hist�ria est� na Avenida Presidente Vargas, no monumento a Zumbi dos Palmares: aquela cabe�a � a c�pia t�o desejada por Darcy e conseguida por Merquior...

�Depois disso, sempre que ele vinha ao Brasil almo��vamos com Darcy, muitas vezes em seu apartamento, na esquina de Bol�var com Avenida Atl�ntica. E mudou� a maneira do antrop�logo se referir a Merquior. Darcy passou a dizer: "Esse camarada � realmente muito inteligente". E conversavam, conversavam muito. Quando da inaugura��o do Memorial da Am�rica Latina, em mar�o de l989, Merquior o ajudou nos contatos com os convidados mexicanos. E veio a S�o Paulo a convite de Darcy, o comandante do evento, que hospedou� os convidados � dele e do governo de S�o Paulo � no Macksoud Plaza. Darcy tamb�m convidou Merquior a escrever na Revista do Brasil, ent�o sob sua� tutela. A camaradagem adensou-se ainda mais quando descobriu que Merquior escrevera sobre Rondon. Fez quest�o de incluir o artigo no n�mero 1 da revista Carta, que editava no Senado, e redigiu a nota: "Veja aqui o Merquior, jovem fil�sofo, avaliando Rondon, o maior dos humanistas brasileiros".

Ainda em mar�o de 89 acompanhei Merquior numa visita a Antonio Carlos Magalh�es, internado no Incor, que nos recebeu de pijama curto, sereno, �s v�speras de submeter-se a delicada cirurgia no cora��o. � noite fomos jantar com Celso Lafer e sua mulher Mary, e o encontro no Fasano revelou-se uma del�cia, nem tanto pela comida mas pelas saborosas hist�rias que ouvi de ambas as partes.�

*****

A biblioteca de Merquior construiu-se em fun��o de suas urg�ncias intelectuais. Nos primeiros anos predominou o interesse por temas liter�rios. Quando se mudou para Paris,� doou � UnB cerca de mil livros, afora os que deixou no Rio, na casa de sua m�e,� na rua S� Ferreira, e no escrit�rio do pai. Numa passagem pelo Rio, abriu v�rias caixas de livros: separou alguns, me deu outros e doou o resto para a institui��o onde o pai trabalhava. Havia de tudo nessas caixas, desde a obra inteira de Buckminster Fuller, que leu em virtude do ent�o entusiasmo de Marc�lio Moreira pelo autor, at� uma inusitada M�thaphysique du strip-tease, de um tal Denys Chevalier, que me ofertou, �s gargalhadas, dizendo tratar-se de "leitura fundamental".

Chegando a� Paris, intensifica a compra� de livros de sociologia e antropologia. � o per�odo de seu curso com Claude L�vi-Strauss, de quem se tornaria amigo, como se pode depreender das in�meras cartas trocadas (e da nota de pesar que enviou a Hilda, logo ap�s a morte do ex-aluno, confessando que "admirava em Merquior um dos esp�ritos mais vivos e mais bem informados de nosso tempo"). J� em Londres, acentua-se na biblioteca a presen�a de t�tulos de cunho liberal, obras de Weber e Rousseau, que foram usadas para a reda��o da tese de doutorado na London School of Economics.

Merquior contribuiu para a divulga��o pioneira no Brasil da Escola de Frankfurt. Seu Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, publicado pela Tempo Brasileiro de Eduardo Portella � e� ao qual� viria depois a se referir� como livro excessivamente heideggeriano � � ainda hoje uma refer�ncia central ao tema. Dos pensadores tratados neste volume, permaneceu o entusiasmo pelo heterodoxo Walter Benjamin. Na revista de Portella� publicou� muitos ensaios, al�m da entrevista que, junto com S�rgio Paulo Rouanet, fez com o pensador franc�s Michel Foucault, cuja obra examinaria criticamente depois, em livro publicado originalmente na Inglaterra e logo traduzido para v�rias l�nguas (inclusive o turco). H� nos ensaios de O fantasma rom�ntico um certo enfrentamento cr�tico �s posi��es defendidas por Octavio Paz. Eles ir�o, no entanto, estreitar rela��es no M�xico, em fun��o do ide�rio liberal que Merquior mais e mais defendia.

Jos� Guilherme Merquior dividiu sua obra em duas categorias: 1) cr�tica; 2) est�tica, cultura, pol�tica. No primeiro grupo se encontram Raz�o do poemaEnsaios de cr�tica e est�tica (1965); A ast�cia da m�mese � Ensaios sobre l�rica (1972); Formalismo e tradi��o moderna � O problema da arte na crise da cultura (1974); O estruturalismo dos pobres e outras quest�es (1975); Verso, universo em Drummond (1975); De Anchieta a Euclides: breve hist�ria da literatura brasileira I (1977); O fantasma rom�ntico e outros ensaios (1980); As id�ias e as formas (1981); O elixir do apocalipse (1983); De Praga a Paris (1986). No segundo grupo: Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin � Ensaio cr�tico sobre a escola neo-hegeliana de Frankfurt (1969); Saudades do carnaval � Introdu��o � crise da cultura (1972); A est�tica de L�vi-Strauss (1977); O v�u e a m�scara: ensaios de cultura e ideologia (1979); Rousseau e Weber: dois estudos de teoria da legitimidade (1980); A natureza do processo (1984); O argumento liberal (1985); Michel Foucault ou O niilismo de c�tedra (1985); O marxismo ocidental (1987); Liberalismo antigo e moderno (1990). Isso para n�o falar dos textos in�ditos no Brasil, que ser�o reunidos sob o t�tulo O outro Ocidente; os artigos em O Globo, a serem publicados com o nome da coluna, A vida das id�ias; e os dispersos em revistas e jornais e que n�o incluiu em livro.

H� ainda a organizar as pol�micas, as entrevistas e a correspond�ncia, rica e variada,� que, muitas vezes, ele xerocava antes de enviar. Neste caso est�o as cartas que mandou a Gilberto Freyre, a primeira delas escrita em Bonn, entre 28 de julho e 3 de agosto de 1972, da qual destaco dois trechos:

Prezado mestre Gilberto Freyre,

Tive a honra e o prazer de conhec�-lo pessoalmente em Paris, h� uns 3 ou 4 anos, na embaixada do Brasil (...). N�o creio que o senhor se lembre do que me disse ent�o sobre o seu projeto de livro dedicado aos cemit�rios pernambucanos(projeto que me deixou curios�ssimo, ansioso pela possibilidade de comparar sua prosa necropolitana com os poemas tumulares de Drummond, Jo�o Cabral e Murilo Mendes, meus poetas de cabeceira entre os nossos modernos).

Fa�o, desde 60, uma cr�tica liter�ria que procura enriquecer-se no contato com a filosofia e as ci�ncias humanas. (...) perten�o a uma gera��o impregnada de hostilidade em rela��o a Gilberto Freyre. Embora desconcertado por, ou contr�rio a, mais de um ju�zo seu, n�o compartilho esse sentimento, a meu ver preconceituoso. Sou relativamente imune seja �s restri��es 'cient�ficas' a seu m�todo sociol�gico, em geral feitas por gente surda ao verdadeiro exame de consci�ncia que a sociologia se vem saudavelmente entregando (basta ver, no mundo alem�o, a cr�tica ao pseudo-objetivismo sociol�gico, desde um Freyer at�, hoje, um Habermas), seja nos sarcasmos dos que se enraivecem ante a 'impossibilidade' de ajustar as an�lises s�cio-culturais de obras como Casa-grande & senzala ao figuro 'progressista'.

Nessa longa carta, in�cio de uma firme amizade, Merquior aproveita para cobrar recente declara��o do soci�logo pernambucano:

(...) discrepo da sua porretada em L�vi-Strauss. O senhor sabe muit�ssimo bem que n�o se trata de nenhum 'mediocr�o'. Conhe�o bem a obra dele, fui seu aluno no Coll�ge de France durante quatro anos. Tristes tropiques � um texto saboros�ssimo, de riqueza montaigniana, mas n�o �, como o senhor n�o ignora, uma coisa central na obra cient�fica de L.S. O que a� se diz sobre um certo Brasil (especialmente paulista) n�o �, afinal, t�o injusto quanto o senhor sugere. Ningu�m melhor do que o senhor tem condi��es, entre n�s, para aquilatar a riqueza de perspectivas de livros como Anthropologie structurale e La pens�e sauvage; livros, sobretudo o �ltimo, plenos de �reas de converg�ncia com a anal�tica anti-idealista (anti-idealista sem metaf�sica "materialista", � claro; anti-idealista no sentido em que toda aut�ntica sociologia do conhecimento o �) e anti-etnocentrista de Gilberto Freyre. E L.S. n�o "desemburrou" no Brasil � desemburrou nos Estados Unidos, em contato com Jacobson, etc. Ali�s, mesmo que ele tivesse sido realmente injusto com o Brasil, e da�? n�o dever�amos n�s � e Gilberto Freyre a fortiori � aplicar nossa indulgente toler�ncia brasileira ao caso? Toler�ncia que se desdobraria em objetividade de ju�zo, permitindo o reconhecimento do valor da obra de intelectuais menos amigos do Brasil.

Uma antologia de textos de Merquior deveria incluir as p�ginas sobre Machado de Assis contidas em De Anchieta a Euclides; o ensaio sobre Gilberto Freyre em As id�ias e as formas; "A interpreta��o estil�stica da pintura cl�ssica" em Formalismo e tradi��o moderna; os cap�tulos finais de Saudades do Carnaval; "Malraux contra Gide", em O estruturalismo dos pobres e outras quest�es; "O modernismo e tr�s de seus poetas", em O elixir do apocalipse; "Guerra ao homo oeconomicus" e "Linhas do ensa�smo de interpreta��o nacional na Am�rica Latina", em O argumento liberal; a se��o "Psicanaliteratura", em O fantasma rom�ntico; "O vampiro ventr�loquo", "Na casa grande dos oitenta" e "A volta do poema", em As id�ias e as formas, isso para n�o falar de seus in�meros ensaios publicados em revista estrangeiras, como "O logoc�dio ocidental", "Vico, Joyce e a ideologia do alto Modernismo", "Em defesa de Bobbio", e outros muitos in�ditos no Brasil.

*****

Em 1980, Merquior voltou a residir em Bras�lia, depois de uma temporada em Montevid�u um pouco tormentosa � at� porque sua biblioteca tardou meses a ali chegar � mas que tamb�m lhe deu o clima prop�cio para aprofundar o conhecimento da hist�ria pol�tica e ideol�gica latino-americana,� ao escrever o �ltimo livro, Liberalismo � Antigo e moderno, principalmente na parte em que trata de Sarmiento e Alberti.

Na capital brasileira trabalhou ent�o com Francisco Rezek na assessoria de Leit�o de Abreu e voltou a dar aulas na UnB, onde praticou uma consultoria informal, ajudando com seus contatos a trazer ao Brasil grandes nomes do pensamento internacional no momento de maior efervesc�ncia da editora dessa universidade, ent�o sob a dire��o do tamb�m diplomata Carlos Henrique Cardim.

Logo come�aram a falar que� era "o intelectual da ditadura", respons�vel pela reda��o de discursos. Curioso que nunca tenham imputado a mesma acusa��o ao mineiro Rezek, que com ele trabalhava. Nessa �poca, Merquior me contou que, numa reuni�o no pal�cio com vistas a impedir a constru��o do Memorial JK, desenhado por Niemeyer, fizera apenas um coment�rio aos advers�rios do projeto: "Acaba de sair em Londres uma obra importante, Makers of Modern Culture, onde s� foram inclu�dos dois brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e Oscar Niemeyer. Pe�o considerarem o fato". O memorial acabou sendo erguido. N�o necessariamente por artes de sua ret�rica, mas o epis�dio diz bem da liberdade de opini�o e senso do relevante que impregnavam os aspectos mais corriqueiros de sua vida.

*****

V�-lo trabalhando era interessant�ssimo: fazia de in�cio, na sua letra mi�da inconfund�vel, um pequeno roteiro, que com os anos foi ficando cada vez mais reduzido e taquigr�fico. N�o usava fichas ou computador, mas, quando se punha a escrever, o texto ia saindo pronto, limpo, sin�nimo de uma organiza��o mental impressionante. Os originais de O liberalismo � Antigo e moderno, por exemplo, que me mostrou no M�xico, pareciam psicografados. Escritos em ingl�s, � m�o, como tudo o que produziu, n�o tinham rasuras, vacila��es ou emendas.

Estudioso de tempo integral, Merquior sempre ironizou a sua "t�o propalada erudi��o". A certeza de que o conhecimento � infinito o fez, obsessivamente, tomar contato com tudo o que considerava relevante em v�rias l�nguas, atrav�s de in�meros jornais e revistas especializadas, que devorava com apetite. Entrar com ele numa livraria (e fiz isso dezenas de vezes no Brasil e no exterior) era uma experi�ncia intelectual indescrit�vel. Conhecia tudo. At� o dia de sua morte permaneceu l�cido, com a vivacidade e o humor que fizeram dele n�o s� o amigo ideal, mas o ensa�sta elegante, o inexced�vel cr�tico de poesia, e o polemista implac�vel, sempre disposto, por�m, a aplaudir o advers�rio inteligente. At� o fim acalentou projetos, entre os quais o de um longo ensaio sobre o modernismo.

Sobre a �ltima confer�ncia, em Paris, o embaixador Rubens Ricupero � a quem Merquior dedicou, junto com Celso Lafer, o ensaio "Em defesa de Vico contra seus admiradores" �� anotou em seu di�rio:

Perto do fim, mobilizou as for�as restantes para o que seria sua �ltima palavra: a palestra de abertura do ciclo 'O Brasil no Limiar do S�culo 21', organizado por Ignacy Sachs. Foi em 17 de dezembro de 1990. Tomei o trem para ir escut�-lo em Paris e voltei a Genebra na mesma noite. Minha impress�o ficou registrada nesse escrito da �poca: '...tive quase um choque f�sico ao rev�-lo. Estava devastado pela doen�a; sua cor, seu olhar, seus tra�os faciais, sua extrema fragilidade e magreza pareciam de algu�m que tivesse retornado da casa dos mortos. No entanto, quando come�ou a falar, sem texto escrito, sem notas, num franc�s l�mpido como �gua da fonte, o audit�rio se desligou do drama a que assistia. Durante quase uma hora, acompanhamos como a hist�ria do Brasil se renovava sob os nossos olhos por meio da sucess�o e do entrechoque dos diversos projetos que os brasileiros sonharam para o pa�s desde a independ�ncia. Terminada a palestra, foi a vez de H�lio Jaguaribe falar. Exausto com o esfor�o descomunal, Jos� Guilherme cruzou os bra�os sobre a mesa e neles repousou a cabe�a, no gesto de um menino debru�ado sobre a carteira da sala de aula'.

Merquior lutou contra o irracionalismo na cultura, os ataques � raz�o hist�rica, os formalismos na arte, sempre procurando inserir o Brasil em suas reflex�es. Os ensaios que produziu nos �ltimos anos deixam claro a preocupa��o que o moveu no sentido de entender as peculiaridades da pol�tica e da crise institucional brasileira. Acompanhava com interesse o que estavam produzindo intelectuais como Wanderley Guilherme dos Santos, H�lio Jaguaribe, F�bio Wanderley Reis e Jos� Murilo de Carvalho. Foi um solid�rio companheiro intelectual, procurando ajudar como podia: �s vezes a editar um livro, como fez com o primeiro de Evaldo Cabral de Mello; outras, empenhando-se com seu caracter�stico entusiasmo em fazer chegar � Academia figuras nobres como Evaristo de Moraes Filho, a quem dedicou o �ltimo ensaio; revendo e sugerindo acr�scimos a Afonso Arinos � que o chamava de "meu filho" e o beijava no rosto � quando o memorialista finalizava o livro Amor a Roma. Vi-o tamb�m procurando ajudar Eduardo Portella a se instalar em Paris, para onde seguira como diretor da Unesco; mostrando-se atencioso com John Gledson quando este come�ou a se interessar por Machado de Assis; e empenhando-se, junto a colegas acad�micos, para trazer Pedro Nava aos quadros da ABL em 1983. E paro aqui porque gestos dessa natureza eram a t�nica de sua personalidade.

O pensamento maduro de Merquior forjou-se principalmente no conv�vio de intelectuais como Raymond Aron, seu mestre e amigo, figura cativante, de gestos s�brios, fala mansa e olhar injetado de ironia, com quem passamos, no come�o da d�cada de 80, um dia inesquec�vel no Rio; Ernst Gellner, o antrop�logo e te�rico do nacionalismo, cuja refuta��o epistemol�gica da psican�lise tanto fasc�nio exerceu sobre ele; Perry Anderson, o te�rico do Estado absolutista e editor da New Left, com quem gostava de debater as quest�es te�ricas do marxismo; o sagaz cr�tico liter�rio Harry Levin;� o erudito historiador Arnaldo Momigliano, que o iluminou no enfrentamento cr�tico � obra de Foucault; Leszek Kolakovski, autor de uma hist�ria intelectual do marxismo que lia e recomendava; Lucio Coletti, agudo analista das contradi��es da dial�tica; e Norberto Bobbio, por suas reflex�es sobre a democracia e o liberalismo.

Alguns o supunham um pedante, figura sem humor, incapaz de se alegrar com as trivialidades da vida mundana. Nada disso. Gostava de comer bem, de viajar, de ouvir boa m�sica, de admirar bons quadros, n�o passava sem o perfume Armani, e, embora n�o ligasse para bebida, fazia quest�o de tomar caipirinha sempre que vinha ao Brasil. Embora n�o pudesse ficar muito tempo ao sol devido � pele branca, certa vez, distra�do, mergulhou de �culos e acabou por perd�-los no mar de Copacabana.

Tinha fascina��o por detalhes: numa adapta��o cinematogr�fica da obra de Proust, chamou minha aten��o para as costas da bel�ssima Ornella Muti. Gostava de contar e ouvir piadas de toda natureza, inclusive er�ticas, e divertia-se em compor dedicat�rias usando nomes famosos. Numa biografia de Alma Mahler escreveu: "Ao jovem e distinto brasileiro, Dr. Jos� Mario Pereira Filho, pedindo-lhe indulg�ncia para com todas as corn�feras figuras que povoaram a vida de Alma, com a perene admira��o e as cordiais sauda��es do Jos� Pereira da Gra�a Aranha, Aix-les-Bains, janeiro de 1889".

Era capaz de comprar um livro mesmo que apenas um trecho o interessasse, e tinha mem�ria prodigiosa. Uma vez, de f�rias no Rio, me ligou perguntando se possu�a uma obra de Pierre Manent sobre o liberalismo, porque precisava confirmar uma cita��o. Apanhei o livro na estante e Merquior disse: "Veja no cap�tulo tal... Diz mais ou menos assim?" E o ouvi citar, sem tirar nem p�r, um par�grafo inteiro. Admirava os aforismos de Lichtenberg, a obra de Musil, Canetti e Borges � com quem passou uma tarde em Buenos Aires, em 1980, e de quem ganhou um livro de H. A. Wolfson sobre Spinoza� que h� anos perseguia. N�o perdia encena��es do diretor italiano Giorgio Strehler, e se tornou amigo de Gl�uber Rocha, a quem� considerava, "com a lucidez da sua loucura, o melhor sism�grafo� da� turma� de 60". Nos �ltimos tempos quase n�o lia romance, mas leu e gostou de Viva o povo brasileiro!, de Jo�o Ubaldo Ribeiro.

Encerro este depoimento sobre Jos� Guilherme Merquior � o intelectual, o esteta, o pensador, o cr�tico, o polemista extraordin�rios, mas tamb�m o fraternal amigo � narrando mais uma cena reveladora de sua� personalidade singular. Em Boston, com Hilda, para nova consulta sobre a sa�de, aproveitou para marcar uma visita � editora Twayne, que finalizava� a edi��o de Liberalism � Old and New. No encontro com o m�dico, ouviu com resigna��o o diagn�stico de que tinha pouco tempo de vida. Hilda, sempre cuidadosa, sugeriu que fossem para o hotel, mas ele n�o quis: dali mesmo, apoiando-se na companheira de toda a vida, rumou para a editora, onde o aguardavam.� Comportou-se l� como se nada de errado estivesse acontecendo. Com a cordialidade habitual, verificou os detalhes sobre a publica��o, fez sugest�es quanto � capa do livro que tanta alegria lhe dera escrever � e, sabia agora,� jamais veria impresso � e despediu-se sem deixar a menor suspeita de que em breve partiria para uma outra esfera do tempo...

 

Rio de Janeiro, 11-20 de fevereiro de 2001