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Leituras recomendadas – 118

 

Paulo e Agostinho

José Nivaldo Cordeiro
1o de janeiro de 2002

 

Sei que ao me propor fazer coment�rios, ainda que breves, sobre a tem�tica religiosa, me expus ao debate, que desde j� digo que � bem vindo. Ao primeiro artigo dessa s�rie pude sentir o calor da argumenta��o em torno do tema, vindo de pessoas de diversos credos religiosos. Recebi muitos e-mails e me propus a responder a todos. Estou aberto ao debate franco.

Apenas, como advert�ncia, gostaria de citar aqui um trecho do Pr�logo do Hist�ria do Cristianismo, de Johnson, fazendo minhas as suas palavras:

"Afinal, o cristianismo, identificando verdade com f�, deve ensinar – e, adequadamente compreendido, de fato o faz – que qualquer interfer�ncia � verdade � imoral. Um crist�o com f� nada tem a temer dos fatos; um historiador crist�o que estabelece limites para o seu campo de investiga��o, em qualquer ponto que seja, est� admitindo os limites de sua f�. E, naturalmente, tamb�m destruindo a natureza da sua religi�o, qual seja uma revela��o progressiva da verdade. Por conseguinte, um crist�o, a meu ver, n�o deve ser impedido, nem no mais leve grau, de seguir o fio da verdade; com efeito, �, positivamente, fadado a segui-la. De fato, ele deve ser mais livre que o n�o-crist�o, comprometido por princ�pio com sua pr�pria rejei��o".

Os quase quatro s�culos que separam a a��o de Paulo de Tarso da a��o de Agostinho foi um per�odo rico para a expans�o da nova f� em todo o Imp�rio Romano. � como se o mundo todo estivesse pronto para receber a nova f� que pregava o Deus �nico; � como se o cristianismo tivesse sido moldado para suprir essa car�ncia.

Mas as leituras das verdades crist�s a ser feitas pelo novos crentes poderiam ser muito diversas, como de fato foram, na aus�ncia de um clero organizado e de uma igreja coercitiva. Era tudo que n�o queria Paulo; foi tudo que Agostinho construiu. Embora o segundo obviamente tivesse se apoiado no primeiro, decididamente a vis�o de ambos sobre a viv�ncia da f� diferia enormemente. Johnson n�o economiza elogios a Paulo e cr�ticas a Agostinho. Vejamos o trecho abaixo:

"� verdade que os crist�os dispunham, agora, de um corpo doutrin�rio homog�neo e extremamente viril: o evangelho paulino, ou kerygma. Ele tinha uma boa chance de sobreviver e difundir-se. Mas n�o havia organiza��o por traz de si. Paulo n�o acreditava em tal coisa. Acreditava no Esp�rito, operando por meio dele e de outros. Por que iria o homem regulamentar algo, quando o Esp�rito agiria em seu lugar? E � evidente que ele n�o queria um sistema fixo, com regras e proibi��es: ‘se voc�s forem guiados pelo Esp�rito, n�o est�o submetidos � lei’. A Igreja era uma invers�o da sociedade normal. Seus l�deres exerciam sua autoridade mediante dons de Esp�rito, n�o em virtude do of�cio. Os dois dons mais nobres eram a profecia e a prega��o... O controle clerical parecia dispens�vel e inadequado. O clima das igrejas paulinas foi reproduzido em outros lugares, em um movimento de r�pida dissemina��o" (p�gina 59).

A religi�o de Paulo era de uma total liberdade interior do indiv�duo, sem qualquer intermedia��o entre ele e Deus. A essa liberdade correspondia a escolha entre a salva��o e a dana��o eternas. � verdade que Paulo esperava a parusia ainda no seu tempo de vida e nisso ele se enganou. Mas insistiu sempre na vigil�ncia do homem de f�, para os sinais do Esp�rito e a harmonia entre a f� e a a��o no mundo. Seu cristianismo pressupunha, pois, esse individualismo radical, com a respectiva liberdade e responsabilidade de cada um.

Fruto dessa vis�o, os primeiros s�culos de vida cristianismo foram ricos na gera��o de diferentes seitas, muitas vezes antag�nicas, que professavam o novo credo a partir de Paulo. Algumas dessas seitas ficaram conhecidas como gn�sticas, e muitas vezes tinham uma vis�o errada e her�tica da verdade crist�. Muitas vezes os ingredientes crist�os eram misturados a id�ias nacionalistas de povos subjugados por Roma, alimentando focos de revolu��o pol�tica, algo bastante distante de Paulo e do pr�prio Cristo, mas muito perigoso para o conjunto de todos os crist�os. As persegui��es n�o tardaram a vir e o mart�rio dos muitos tamb�m.

O fato � que o cristianismo se disseminou rapidamente em todo o Imp�rio Romano e, quando se tornou a religi�o de Estado, j� podia ser considerada a religi�o de uma boa maioria. Foi um processo, por assim dizer, quase que natural a absor��o feita por Constantino do cristianismo como religi�o oficial do Imp�rio.

� nesse contexto que devemos entender a personalidade de Agostinho e justificar, em parte, a sua maneira de ser. Se as seitas gn�sticas n�o tivessem sido combatidas com rigor, � prov�vel que a hist�ria contada fosse outra, seja em termos de doutrina, seja em termos de persegui��o, seja em termos de consolida��o do cristianismo como religi�o de massa. Jonhson lamenta que muitos que foram acusados de her�ticos n�o o eram, na verdade. Seriam reformadores como Lutero e tudo que queriam era a viv�ncia crist� nos termos paulinos.

A consolida��o do c�non oficial e reconhecido por todos foi um processo de luta que demorou. Apareceram muitos escritos que foram recusados pela ortodoxia do Ocidente e do Oriente e nesse processo de depura��o muitos documentos religiosos importante foram perdidos para sempre. Mesmo alguns livros, como o Apocalipse de S�o Jo�o, hoje considerados inspirados, s� a muito custo foram introduzidos no c�non. Mas, uma vez que esse foi consolidado, serviu de guia para o conjunto da cristandade. Foi um grande bem para a pacifica��o da Igreja.

Johnson afirma: "A verdade � que , no decorrer das opera��es anticrist�s, em larga escala da segunda metade do s�culo III, o Estado foi for�ado a admitir que seu inimigo mudara e tornara-se um aliado em potencial. Na longa batalha pela supress�o da clivagem interna, pela codifica��o de sua doutrina e expans�o de suas fronteiras, o cristianismo havia se tornado, sob v�rios aspectos impressionantes, uma imagem do pr�prio imp�rio. Era cat�lico, universal, ecum�nico, ordenado, internacional, multirracial e cada vez mais legalista. Era administrado por uma classe profissional de eruditos que, sob determinados aspectos, faziam as vezes de burocratas, e seus bispos, como governadores imperiais, legados ou prefeitos, detinham amplos poderes discricion�rios para interpretar a lei... Afinal, o cristianismo tinha se tornado um fen�meno t�o secular como espiritual: era uma imensa for�a para a estabilidade, com suas pr�prias tradi��es, propriedades, interesses, e hierarquia. Diferente do juda�smo, n�o possu�a aspira��es nacionais incompat�veis com a seguran�a do imp�rio; pelo contr�rio, sua ideologia servia �s metas e necessidades do estado imperial" (p�ginas 93/94).

E mais � frente:

"No final do s�culo IV, de fato, a Igreja se tornara n�o apenas a religi�o predominante do imp�rio romano, tendendo ser considerada a oficial, como, na verdade, era a �nica" (p�gina 125).

E em que consistia a ortodoxia crist�, a corrente que acabou vingando na conquista do Imp�rio Romano e na supremacia sobre as demais correntes? O ponto crucial � a intermedia��o da f� entre o crente e Deus pelo clero, que passou a ser o �nico int�rprete das Escrituras. Era exatamente o oposto da vis�o paulina. Outro ponto importante que emergir� forte no per�odo da Reforma � a discuss�o se a salva��o se d� pela gra�a ou pelas obras.

� nesse contexto do triunfo da ortodoxia e na absor��o do imp�rio romano pelo cristianismo – e vice-versa – que devemos compreender a figura de Agostinho. Johnson � muito duro e antip�tico ao se referir a ele: "Agostinho foi o g�nio das trevas do cristianismo imperial, o ide�logo da alian�a entre Igreja e Estado e o gerador da mentalidade medieval. Depois de Paulo, que forneceu a teologia b�sica, ele fez mais para moldar o cristianismo que qualquer outro ser humano" (p�ginas 136/137). Mais � frente: "Em Cidade de Deus, Agostinho j� compara a vulner�vel cidadela mundana com o imperec�vel reino do cristianismo. O homem devia ter em vista o segundo; nada se deveria esperar na terra. Sua �ltima obra, inacabada, examinava a teodic�ia e todo o problema do mal. Era tolice supor, escreveu... que Deus fosse eq�itativo em sentido humano. Sua justi�a era t�o inescrut�vel como qualquer outro aspecto de sua natureza. As id�ias humanas de eq�idade eram como ‘orvalho no deserto’. O sofrimento humano, merecido ou n�o, s� ocorria porque Deus estava zangado. ‘Esta vida, para os mortais, � a ira de Deus. O mundo � o Inferno em pequena escala’... O homem, simplesmente, tem que aprender a aceitar o sofrimento e a injusti�a. Nada havia que pudesse fazer quanto a qualquer um desses... Agostinho via a ra�a humana como crian�as indefesas. Remetia-se constantemente � imagem do beb� sendo amamentado. A humanidade era profundamente dependente de Deus. A ra�a estava prostrada e n�o havia possibilidade de que se erguesse por seus pr�prios m�ritos. Esse era o pecado de orgulho – o pecado de Satan�s. A postura da humanidade devia ser de total humildade. Sua �nica esperan�a encontrava-se na gra�a de Deus. Agostinho faz a ponte, portanto, entre o mundo cl�ssico e a passividade desesperan�ada da Idade M�dia. A mentalidade por ele expressa tornar-se-ia a perspectiva preponderante do cristianismo e, como tal, dominaria a sociedade europ�ia por muitos s�culos.... At� que ponto o pessimismo manique�s ta de Agostinho foi respons�vel por esses tons sombrios do pensamento crist�o � dif�cil de avaliar; sem d�vida, se compararmos sua filosofia com a de Paulo, pode ver-se que Agostinho... foi o heresiarca – o maior de todos, em termos de influ�ncia... Adiara a constru��o da cidade perfeita para depois da parusia" (p�gina 147)

Aqui conv�m sublinhar a id�ia de Eric Voegelin de que o retardamento da parusia tenha colocado para os crist�o o desafio do governo desse mundo. As escrituras n�o traziam uma teologia civil, no seu dizer, de modo que seria necess�rio criar uma, sob pena dos crist�o n�o terem os meios para instituir uma ordem necess�ria. � nesse contexto que Agostinho e sua obra t�m que ser compreendidos. Ele legou � cristandade a teologia civil necess�ria, uma teoria e, portanto, os meios para governar a cidade dos homens.

Nesse sentido, a vis�o de Jonhson n�o � de todo justa, embora seja precisa em suas linha gerais.

Veremos no pr�ximo artigo que o debate renasce com todas as for�as no per�odo da Reforma.