Leituras recomendadas 110
Apontamentos a um panfleto
Prof. Br�ulio Porto Matos
Informa��o incompleta e mentira deslavada s�o duas fontes comuns de meias-verdades. De qualquer forma, meias-verdades devem ser recusadas mesmo quando enunciadas em uma pe�a predominantemente ret�rica. O Comunicado Andes-ADUnB, intitulado �� opini�o p�blica em geral e � comunidade universit�ria em particular�(06.08.2001), apresenta, em pouco menos de duas p�ginas, algumas informa��es prec�rias, inverdades e insinua��es perigosas que passo a considerar. Comecemos pelas inverdades. O documento diz que estamos sofrendo um: ��... arrocho salarial decorrente de sete anos de congelamento salarial, visto que a gratifica��o imposta pelo MEC, al�m de irris�ria e antiacad�mica, discrimina aposentados e docentes da carreira do ensino b�sico das IFES�. Primeiro, n�o � verdade que a nossa remunera��o permaneceu inalterada nesses �ltimos sete anos. Ao contr�rio, ela mais que dobrou nesse per�odo. Os dados do Gr�fico 1, extra�dos de meus pr�prios contra-cheques, ilustram claramente a evolu��o dos rendimentos de um Professor Adjunto 1 da UnB (doutorado) nesse per�odo. Para �regularizar� a curva dos �Rendimentos Brutos� distribu� a m�dia aritm�tica simples do 13� sal�rio e das f�rias ao longo dos doze meses subseq�entes (pareceu-me mais adequado usar esse procedimento do que o c�lculo de m�dias m�veis de ordem 12). Exclu� desse c�lculo as parcelas atrasadas do reajuste de 28% (MS 929-o STJ/DF 2605), posto que elas variam em fun��o do tempo de servi�o. Verifica-se, ent�o, que o rendimento bruto subiu da casa dos R$ 2.000,00 (dois mil reais) para a casa dos R$ 5.000,00 entre o in�cio de 1995 e meados de 2001. Um aumento, portanto, bastante superior ao que o movimento grevista ora reivindica: �75% a mais de qualidade no ensino!�, diz um cartaz afixado no corredor de minha faculdade, provavelmente por algu�m que considera a avalia��o do Prov�o ignominiosa �quantifica��o positivista� do saber. Poder-se-� argumentar: que o congelamento diz respeito ao �Vencimento B�sico� registrado no contra-cheque (correspondente a apenas 1/3 do valor do rendimento bruto atual); que a Constitui��o Federal define aumento salarial em termos dessa rubrica; e que a essa mesma rubrica pesa sobremodo na defini��o do valor das aposentadorias. Tudo isso � discut�vel (no lugar de reivindicar a incorpora��o permanente de todo rendimento �extra� ao vencimento do cargo efetivo, pode ser mais adequado fixar de maneira menos �fantasiosa� esse vencimento b�sico e criar um adicional de produtividade desonerado de desconto previdenci�rio, cabendo ao docente decidir se far� aplica��es em previd�ncia privada complementar). De qualquer forma, n�o � verdade que continuamos a receber o mesmo que receb�amos h� sete anos atr�s. Apresento tamb�m no Gr�fico 1 as curvas dos �Tributos� (Imposto de Renda e Previd�ncia Social), do �Aluguel/Condom�nio� e da �Gratifica��o de Est�mulo � Doc�ncia - GED�. Primeiro, porque fiquei curioso em saber em que medida o aperto fiscal do governo tem nos atingido. Nesse sentido, n�o se verifica um aumento muito acima do aumento salarial como se poderia esperar. Segundo, porque o apartamento funcional que muitos de n�s ocupa constitui um subs�dio indireto expressivo. No presente caso (apartamento de tr�s quartos em �rea nobre do Plano Piloto), estamos falando de um adicional de aproximadamente R$500,00 ao m�s no sal�rio. Em sete anos, portanto, teremos recebido algo em torno de R$42.000,00 de subs�dio-moradia. Terceiro, porque os dados da GED mostram que ela n�o � irris�ria, conforme afirma o Comunicado Andes/ADUnB. Como diria meu velho pai, �R$1.400,00 � dinheiro em qualquer lugar do mundo�. Al�m disso, n�o � verdade tamb�m que a GED seja �antiacad�mica�. Trata-se de um instrumento de avalia��o constru�do por colegas da pr�pria universidade onde trabalhamos, e, no caso da UnB, tem-se levado em conta indicadores bastante razo�veis (n�mero de turmas ministradas, n�mero de orienta��es, artigos e livros publicados, patentes registradas, etc...). Diria at� que o sentimento de que MEC est� nos empurrando a GED goela abaixo tende a ser mais forte entre aqueles que recusam qualquer avalia��o efetiva do desempenho docente. Mesmo que caiba aprimorar os sistemas de avalia��o em curso, fato � que muitos colegas se contentam em empurrar com a barriga a situa��o que Edmundo Campos Coelho identificou em seu A sinecura acad�mica (1988), um livrinho que desagradou tanto o �baixo clero�, quanto o �alto clero� das universidades p�blicas federais. Munido de poucos -mas expressivos- indicadores da baixa produtividade nas universidades federais, Coelho reclamou da hiper-politiza��o da vida universit�ria por parte dos docentes menos qualificados, e do relativo abandono da gradua��o por parte daqueles que, academicamente melhor preparados, deveriam assumir a lideran�a dessa institui��o. [1] � Acredito que a GED tem ajudado a corrigir algumas dessas distor��es. Tem-se dito que essa gratifica��o est� for�ando o professor a abandonar suas pesquisas para assegurar um aumento salarial mediante mais horas-aula. Cabe realmente investigar o tamanho desse preju�zo, mas desconfio que seja pequeno o n�mero de docentes que, havendo obtido financiamento para suas projetos, n�o encontra o devido respaldo de seus departamentos para desenvolv�-los. Naturalmente, n�o quero justificar aqui a centraliza��o da avalia��o institucional nas m�os de uma tecnocracia acad�mica federal tendencialmente arrogante, mas devemos reconhecer que, em geral, as iniciativas efetivas das universidades nessa �rea foram muito t�midas at� bem pouco tempo. [2] O Comunicado Andes/ADUnB veicula tamb�m uma informa��o incompleta acerca do or�amento das universidades federais, informa��o essa que conta apenas uma parte dessa hist�ria. Diz-nos ele: �Estudo do IPEA (CORBUCCI, P.R � Indica��es sobre o Or�amento das IFES, Texto para discuss�o n� 752, RJ:IPEA, agosto de 2000) atesta a violenta redu��o das verbas de manuten��o e desenvolvimento das IFES. O gasto total das 39 universidades federais aparentemente se manteve relativamente inalterado no per�odo ap�s 1995. Mas se os valores forem desagregados, o quadro � outro: os gastos com �despesas de capital` (recurso destinado � bibliotecas, insumos, melhoria de instala��es etc.) despencou 80% de j� irris�rios R$173 milh�es em 1995 para R$31 milh�es em 1998.� Pois bem, os dados que o texto do IPEA apresenta v�o muito al�m da rubrica �Despesas de Capital� e o pr�prio autor da pesquisa, Paulo Roberto Corbucci, extrai conclus�es divergentes das ila��es catastr�ficas feitas pela Andes/ADUnB. A Tabela 1 apresenta alguns dados extra�dos do referido estudo. Verifica-se que o �Gasto Total� n�o se manteve �aparentemente� inalterado no per�odo. Ele subiu 7,7% no conjunto das institui��es e 42,3% na UnB entre 1995 e 1998. As �Despesas de Capital�, �nica rubrica a que o Comunicado Andes/ADUnB faz refer�ncia, realmente ca�ram �81,9% no conjunto das institui��es e subiram apenas 2,4% na UnB. Contudo, essa rubrica, ainda que muito importante, correspondia a 3,19% do �Gasto Total� do conjunto das institui��es em 1995 (1,57% no caso da UnB). Ademais, o comunicado omite a seguinte observa��o complementar feita pelo pr�prio pesquisador do IPEA no referido texto: �A tend�ncia assumida em rela��o aos investimentos em capital pode conduzir a infer�ncias sobre o poss�vel sucateamento do aparato tecnol�gico das universidades, na medida em que mesmo a sua simples manuten��o em funcionamento requer a reposi��o de pe�as e componentes, quando n�o sua completa substitui��o. Entretanto, a realidade tem mostrado que v�rias institui��es universit�rias t�m buscado mecanismos alternativos de financiamento dessas e de outras de suas demandas, por meio de funda��es de apoio � pesquisa.� (p.18) Ora, contrariamente � observa��o positiva feita pelo pesquisador do IPEA, o Comunicado Andes/ADUnB refere-se a essas funda��es nos seguintes termos: �Funda��es privadas foram constitu�das nas IFES, redefinindo-as como institui��es de venda de servi�os, em detrimento de seu car�ter de institui��o fomentadora de pesquisa orientada pelas quest�es l�gicas internas do campo cient�fico e pelas necessidades sociais.� �No caso da UnB, existem hoje in�meras fontes novas de capta��o de recursos. O CESPE, a FASUBRA, o CEAM, o DEX, a FINATEC, a Escola de Empreendedores (e at� Consultorias Juniores criadas por alunos talentosos) t�m conseguido captar um volume muito grande de recursos no �mercado do conhecimento�, mercado esse altamente concorrencial, dado que nele atuam �analistas simb�licos� de todo tipo. N�o vejo como a universidade possa se beneficiar de uma postura puramente defensiva em rela��o a essas novas formas de inser��o institucional. Naturalmente, os colegas de esquerda v�em com maus olhos o mercado. Tendem a achar os colegas que est�o prestando consultorias uns �ca�a-n�queis�. Contudo, isso me parece incorreto e injusto. Incorreto, porque esses bens e servi�os costumam ser bem pagos (as bolsas oferecidas pelas ag�ncias de fomento � pesquisa, por exemplo,
giram em torno de R$3.000,00); injusto porque dever�amos admirar o �esp�rito de empreendimento� e entend�-lo como parte das �necessidades sociais� do pa�s. Al�m disso, dados obtidos atrav�s de �pesquisas institucionais� podem ser muito valiosos para a ci�ncia (informa��es sobre efici�ncia empresarial, comportamento eleitoral, viol�ncia nas escolas, e tantas outras, envolvem custos elevados e demandam o consentimento dos pesquisados). � certo que o �Gasto Operacional com Pessoal� (excluindo-se os disp�ndios com Inativos e Pensionistas e os pagamentos de senten�as judiciais trabalhistas) sofreu um aumento de apenas 3,6% no conjunto das institui��es e uma redu��o de �4,8% no caso da UnB (�nica rubrica em que a situa��o desta universidade apresentou uma involu��o e uma performance inferior ao conjunto das institui��es!). E, de fato, essa relativa estagna��o/redu��o do �Gasto Operacional com Pessoal� das universidades tem rela��o com a redu��o do quadro docente promovida pelas restri��es impostas pelo Governo � realiza��o de concursos p�blicos para as vagas abertas pelas aposentadorias. Ocorre que esse tipo de restri��o or�ament�ria acabou for�ando as universidades a melhorarem seus indicadores de produtividade, conforme atestam os dados da Tabela 2, elaborada a partir de informa��es fornecidas por Corbucci. A matr�cula na gradua��o expandiu 11,2% no conjunto das institui��es e 14,4% na UnB. Tamb�m em rela��o � p�s-gradua��o stricto sensu (mestrado e doutorado) e � publica��o de trabalhos cient�ficos houve consider�vel melhora nos indicadores no per�odo considerado. Da� o pesquisador do IPEA concluir seu estudo dizendo que: �A maior parte dos resultados deste estudo indica que as universidades federais t�m demonstrado aumento de efici�ncia e efic�cia, apesar de seus gastos operacionais terem sido comprimidos e, paralelamente, ter-se ampliado a matr�cula e os quadros profissionais formados, ao mesmo tempo em que cresceu a sua produ��o cient�fica. Assim, o objetivo principal do presente estudo foi oferecer algumas evid�ncias emp�ricas para o debate acerca da universidade p�blica no Brasil, e contribuir para a desideologiza��o dos discursos, tanto daqueles de teor mais apolog�tico, quanto os que visam � deslegitima��o do ensino superior p�blico (p.63)�. Al�m de inverdades e informa��es incompletas, o Comunicado Andes/ADUnB cont�m tamb�m pelo menos tr�s insinua��es perigosas. A primeira delas: ��... as medidas governamentais que objetivam viabilizar um super�vit or�ament�rio de 3,5% do PIB, conforme acordo com o FMI, para o pagamento da d�vida p�blica, inviabilizar�o o funcionamento digno das institui��es Federais de Ensino. � responsabilidade da comunidade universit�ria exigir um basta a essas medidas.� O que quer dizer isso? Que a sobreviv�ncia da universidade est� condicionada a um calote das d�vidas interna e externa brasileiras? Ser� que os colegas acreditam mesmo que a fuga de capitais do pa�s ir� melhorar o or�amento das universidades p�blicas? A segunda insinua��o � feita na conclus�o de uma cr�tica ao Ministro da Educa��o, professor Paulo Renato, que elogiou a terceiriza��o coreana� das� universidades: �O Sr. Ministro parece esquecer que 99% das patentes pertencem a corpora��es multinacionais dos pa�ses do G-7 e que os custos da propriedade intelectual inviabilizam o acesso da popula��o a direitos essenciais como os medicamentos, insumos agr�colas, etc...�. O que quer dizer isso? Que as universidades devem apoiar o desrespeito aos direitos de propriedade intelectual? Disse-me um amigo que a �nica refer�ncia feita por Hitler ao Brasil, durante os jantares que oferecia aos seus oficiais, foi essa: �At� o Brasil, que at� hoje nunca produziu uma inven��o digna de nota, se arroga o direito de suspender a lei de prote��o �s patentes e usar nossas inven��es!�� Obviamente, Hitler foi duplamente injusto com Santos Dumont (que morreu de desgosto por ver seu invento usurpado pelos militaristas). � impressionante verificar, contudo, a aten��o conferida por um pa�s industrialmente avan�ado ao problema das patentes mesmo sob um regime �nacional-socialista� e chefiado por um maluco genocida. Nesse sentido, talvez caiba avisarmos ao Ministro Jos� Serra, que tantos aliados vem fazendo contra o pagamento de royalties aos laborat�rios que criaram a vacina contra a AIDs, que os pa�ses cientificamente desenvolvidos tamb�m possuem Constitui��es e est�o muito mais determinados do que n�s a fazer valer � enforcemment � o direito de propriedade. Para se ter uma id�ia da precariedade do direito de propriedade intelectual no Brasil, confira-se a batalha ingente do brasileiro N�lio Jos� Nicolai para obter a patente dessa extraordin�ria inven��o sua, o BINA, um dispositivo presente hoje em milh�es de telefones celulares mundo afora. [3] A terceira insinua��o: �A liberaliza��o do �mercado educacional` fez com que o crescimento do setor privado fosse n�o apenas, acentuado social.� O que quer dizer isso? Que o estado deve dizer
quem pode e quem n�o pode abrir uma escola e o que deve ser ensinado nela? Ora, at� Marx, que n�o podemos tomar como exemplo de sujeito tolerante,� tinha ojeriza da interven��o estatal no curr�culo escolar. [4] Definitivamente, a exist�ncia de escolas privadas constitui uma importante garantia da liberdade de express�o! Por fim, uma palavra ainda sobre essa frase-s�ntese do Comunicado Andes/ADUnB: �...sal�rios incompat�veis com a dignidade e a responsabilidade da profiss�o docente.� �Como se sabe, � muito dif�cil determinar o �sal�rio justo� no setor p�blico, especialmente no caso dos �bens p�blicos� (definidos pela impossibilidade de limitar o seu uso �queles que pagam por eles). Sabe-se tamb�m que, embora a educa��o n�o seja um �bem p�blico� nesse sentido estrito, gera externalidades positivas que justificam a atua��o estatal nessa �rea. No caso do ensino superior brasileiro, em particular, um fator adicional limita a �equaliza��o� dos sal�rios docentes entre o setores p�blico e privado: a forte concentra��o da pesquisa nas institui��es p�blicas, atividade que envolve custos elevados e demanda um� regime de trabalho diferenciado (incompat�vel, por exemplo, com regime �horista� praticado por quase todas universidades particulares). Essas especificidades acabam, ent�o, alimentando nossa imagina��o sobre qual deveria ser o �sal�rio digno� do professor universit�rio: um valor indexado aos super�vits fiscais obtidos pelo governo (no melhor estilo da Segunda Lei de Parkison)?; ou um valor equiparado � remunera��o dos colegas do Primeiro Mundo? Ou... N�o tenho compet�ncia para propor uma boa solu��o para o nosso sistema de remunera��o, um regime de vencimentos e incentivos que evite a evas�o de talentos de nosso pa�s e encurte nosso caminho para os Pr�mios Nobel. Mas decidi escrever esses apontamentos por estar convencido ao menos disso: que n�o � correto dar a entender � �opini�o p�blica em geral� que recebemos o mesmo sal�rio h� sete anos;� que n�o que estamos recebendo �um sal�rio de fome� (parece-me at� ofensivo aos pobres dizer isso); que � vergonhoso fazer greve recebendo o contra-cheque em casa; e que, afinal, a dignidade humana n�o promana do sal�rio.
Notas
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