Apostilas do Semin�rio de Filosofia - 27
Ser e Conhecer - Introdu��o geral �- � 1. Formula��o do problema Aula do Semin�rio de Filosofia, S�o Paulo, 10 de mar�o de 2001
Toda a tradi��o moderna em filosofia toma como fundamento e ponto de partida o reconhecimento dos limites da consci�ncia cognitiva individual. � verdade que ela come�a com a tentativa cartesiana de romper esses limites pela afirma��o da certeza absoluta que o eu pensante tem de si mesmo enquanto pensante. Mas tamb�m � verdade que essa afirma��o permanece subordinada ao reconhecimento daqueles limites, e isto sob tr�s aspectos: (1) eles s�o o dado inicial do qual ela ser� apenas a conclus�o parcial que n�o chega a impugnar a validade da d�vida baseada neles; (2) o cogito que se afirma tem a impot�ncia cong�nita do eu solipsista, que n�o pode escapar de seus pr�prios limites sen�o pelo apelo a "Deus" - um Deus que, n�o tendo a� nenhuma fun��o org�nica, n�o sendo nem mesmo o fundamento do eu como o era no cogito agostiniano, entra no sistema como puro agregado externo e expediente l�gico in extremis, para salvar a� constru��o vacilante; (3) impotente para lan�ar uma ponte para o mundo exterior, o cogito cartesiano n�o o � menos para lan��-la entre ele pr�prio enquanto pensante e... enquanto existente. Quando P�guy, num texto c�lebre, festeja Descartes como "ce chevalier qui partit d'un si bon pas", ele expressa da maneira mais eloq�ente o fato de que a tradi��o moderna valorizou em Descartes antes o seu ponto de partida (a d�vida) do que o seu ponto de chegada (a certeza do cogito). Mas isto � o mesmo que celebrar o fracasso do empreendimento cartesiano, louvando apenas as inten��es que o inspiraram e que ele terminou por frustrar. Certeza vazia, incapaz de fundar a ci�ncia, o cogito cartesiano deixou menos marcas na origem da tradi��o moderna do que as deixou o m�todo mesmo da d�vida, a id�ia de repor tudo em quest�o e, como se diria depois, "raciocinar sem pressupostos".� Essa id�ia, que pervade todo o ciclo moderno em filosofia, expressa, no m�nimo, o sentimento dos limites da consci�ncia individual, sentimento que constitui assim o terreno psicol�gico sobre o qual floresce o pensamento moderno. A variedade de suas express�es n�o deve nos fazer perder de vista a unidade desse sentimento b�sico. � preciso enxerg�-lo n�o s� nas suas manifesta��es diretas e patentes, como tamb�m nas indiretas e esquivas: n�o s� no ceticismo de Hume ou na cr�tica kantiana, mas tamb�m nas tentativas de transferir para a al�ada de algum outro sujeito - seja ele o Esp�rito objetivo, a volont� g�nerale, o Volkgeist, a consci�ncia de classe, o Id, o inconsciente coletivo, as estruturas da linguagem, o consenso da comunidade cient�fica, o g�nio da esp�cie - a responsabilidade pela garantia da veracidade e efic�cia do conhecimento. A simples enumera��o casual de algumas dessas tentativas j� evidencia que a afirma��o dos limites ou da impot�ncia cognitiva da consci�ncia individual, quando n�o � princ�pio claramente afirmado, � pressuposto impl�cito; e, quando n�o ocupa o centro do sistema, circunscreve e delimita o seu horizonte. Por tr�s da variedade e discord�ncia das escolas, delineia-se assim um fundo de unanimidade - a unidade negativa daquilo que, para simplificar (e por outros motivos que se tornar�o claros mais adiante), denominarei nega��o da consci�ncia. O que � curioso nesse fen�meno n�o � apenas a sua generalidade, sua quase onipresen�a no panorama heterog�neo do pensamento moderno; � que essa quase onipresen�a tenha sido apenas displicentemente reconhecida, como se se tratasse de obviedade sem maior import�ncia, indigna de atrair qualquer curiosidade especial ou de suscitar ao menos a pergunta: Por que? Sim, tudo aquilo que embora reconhecido n�o se afirma de maneira clara e expl�cita continua oculto entre n�voas, protegido de todo olhar iluminante capaz de ressaltar o que nele h� de estranho, de portentoso, de supremamente incomum e problem�tico. De repente, a pergunta que n�o se fez pode se revelar como a mais relevante de todas. E a pergunta, no caso, �: como foi poss�vel que toda uma tradi��o filos�fica de quatro s�culos, digamos mesmo toda uma civiliza��o, tomasse como fundamento �bvio e inquestion�vel do conhecimento as limita��es e defici�ncias do poder cognitivo da consci�ncia individual, e raciocinasse sempre a partir delas, sem que, precisamente, essas limita��es mesmas� viessem jamais a ser questionadas e sem que jamais � nega��o se opusesse qualquer tentativa de afirma��o? Como foi poss�vel que uma pretens�o cognitiva tivesse tantos impugnadores, sem que houvesse defensores? Pois mesmo aqueles que, nesse per�odo, afirmam resolutamente o poder do conhecimento, como Spinoza ou Hegel, celebram apenas a virtude cognitiva da raz�o, considerada de maneira universal e abstrata, e n�o da consci�ncia individual concreta, cujos limites e cuja fragilidade eram assim implicitamente afirmados na medida mesma e no momento mesmo em que, enaltecendo "a raz�o", se dava por pressuposto que era mediante sua absor��o nela e sua convers�o despersonalizante em faculdade abstrata que a consci�ncia individual concreta poderia ter a esperan�a de conhecer o que quer que fosse. Ora, se cada um desses fil�sofos era apenas indiv�duo humano concreto, sem poder alegar-se a priori detentor de meios de conhecimento superiores aos da individualidade humana, a pergunta �: desde onde eles impugnam a efic�cia desses meios, os �nicos de que disp�em? Se o fil�sofo moderno n�o pudesse colocar-se, de algum modo, numa posi��o superior � da sua mera individualidade emp�rica, sua nega��o do poder cognitivo desta �ltima equivaleria apenas � autoparalisa��o de uma consci�ncia individual e � imediata desmobiliza��o de todo esfor�o filos�fico. Em vez disso, vemos o movimento filos�fico alimentar-se dessa nega��o, progredir gra�as a ela, revigorar-se nela. � nega��o da consci�ncia individual parece corresponder, ipso facto, a afirma��o de um poder cognitivo supra-individual que o fil�sofo incorpora e personifica a partir do instante mesmo da nega��o e por m�rito dela. Que poder seria esse? Quais as suas possibilidades e limites? Que t�tulos justificam a pretens�o filos�fica de represent�-lo? E, sobretudo: seria ele efetivamente uma inst�ncia superior � consci�ncia individual ou apenas a parte superior da pr�pria consci�ncia individual, separada das partes inferiores e hipostasiada como entidade independente?
|