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Apostilas do Seminário de Filosofia - 26

 

Ser e Conhecer – IV

UniverCidade, Rio de Janeiro, 14 de Setembro de 2000

Aula gravada. Transcri��o de Alexandre Bastos

 

A id�ia que inspira esta s�rie de aulas � da total redu��o da gnoseologia � ontologia. Trata-se de eliminar o preliminar cr�tico, a cren�a de que primeiro � necess�rio criar uma teoria do conhecimento para depois, com base nela, chegar, se poss�vel, a uma ontologia.

Mas essa � apenas uma das id�ias, a outra � eliminar a dualidade do racional e do intuitivo, reduzindo tudo ao intuitivo. Se tivesse tido a oportunidade de expor isso ordenadamente nestas aulas, em vez de abordar as partes do assunto um tanto a esmo e ao sabor da ocasi�o, como o fiz, eu partiria do rastreamento hist�rico das origens da quest�o do conhecimento no mundo moderno, da origem do primado do sujeito. Primeiro, mostraria como o subjetivismo de origem cartesiana est� presente em todas as escolas, inclusive as mais antag�nicas a qualquer idealismo, pois at� escolas materialistas, como o marxismo, aceitam implicitamente a prioridade do sujeito: a diferen�a, no marximo, � que � um sujeito coletivo. Mostaria que todos esses tr�s s�culos decorridos desde Descartes est�o contaminados com o primado do sujeito.

Tendo verificado em seguida a total inviabilidade do projeto cartesiano, tamb�m colocar�amos entre par�nteses toda a quest�o da fenomenologia, que n�o � sen�o um meio de tentar realizar o projeto cartesiano com mais fundamento � o pr�prio Husserl, em seu livro Medita��es Cartesianas, diz inspirar-se em Descartes, e declara que s� quer aprofundar o cartesianismo at� um n�vel a que o pr�prio Descartes n�o chegou. � claro que nesse empreendimento chega Husserl a v�rias conclus�es que podemos aproveitar, mas eu gostaria at� de saltar essa preliminar fenomenol�gica, se poss�vel tamb�m neutralizando-a, pois ela ainda est� dentro da id�ia do "preliminar kantiano", e a minha id�ia � eliminar completamente os preliminares, mostrando que s�o projetos invi�veis. E, para isso, � necess�rio voltar ao j� exposto na aula "O problema da verdade e a verdade do problema": tantas vezes quantas seja formulada essa quest�o, tantas vezes sua investiga��o ser� bloqueada por contradi��es internas da formula��o mesma. Ent�o, � preciso retomar o pr�prio Descartes, e a� entra, propriamente, minha cr�tica do Descartes: a id�ia mesma de colocar entre parenteses o objeto do conhecimento, e ficar s� com o sujeito, tamb�m � imposs�vel: h� um curto-circuito desde o in�cio, e chega a ser espantoso que ningu�m tenha mexido nesse problema antes. Ora, sujeito e objeto s�o um modelo, uma distribui��o de pap�is, e ambos n�o s�o sen�o fun��es desempenhadas por determinados elementos, nenhum dos quais corresponde inteiramente � fun��o respectiva: n�o � conceb�vel nem o puro objeto nem o puro sujeito. Assim, segue-se que o que existem s�o situa��es onde um elemento desempenha tal papel, e o outro o outro papel � mas essa situa��o � que � o decisivo, pois tanto podemos cham�-la de conhecer como de existir, j� que n�o h� nenhum motivo para dizer que o aspecto cognitivo predomina sobre o aspecto exist�ncial, se existir �, simplesmente, transmitir e receber informa��es.

Historicamente, as primeiras an�lises do fen�meno do conhecimento atacaram diretamente o ato de conhecimento sem perguntar se esse ato n�o seria esp�cie de algum g�nero. Na verdade, o conhecimento � esp�cie do g�nero rela��o � � uma rela��o entre dois entes. Se isso tivesse sido levado em conta, teria resolvido muitas quest�es relativas ao problema do conhecimento: todas e quaisquer rela��es que existem entre quaisquer seres s�o transmiss�es de informa��es, n�o h� uma sequer que seja outra coisa. Portanto, essa modalidade de rela��o chamada �conhecimento� � apenas uma modalidade, entre milhares de outras, de transmiss�o de informa��es (� claro que com suas caracter�sticas diferenciais espec�ficas). Agora, se o pr�prio existir � transmitir e receber informa��es, ent�o n�o existe um estudo do conhecimento que possa colocar o existir entre par�nteses, caso contr�rio ter�amos o caso de uma esp�cie que coloca entre parenteses o pr�prio g�nero ao qual pertence. Assim, s� � poss�vel estudar o conhecimento como modalidade da rela��o, ou seja, como algo que acontece �quilo que existe; ou, dito de outro modo, estud�-lo como maneira de existir. Mas essa n�o � uma maneira qualquer entre outras, e sim a maneira essencial � n�o � conceb�vel nenhuma, nenhuma forma de exist�ncia que n�o seja, em ess�ncia, recep��o e transmiss�o de informa��es. O tempo todo algo � transmitido e algo � recebido: se bloquearmos toda a entrada ou sa�da de informa��es n�o teremos mais um ente existente, mas apenas o conceito abstrato de uma esp�cie. Podemos conceber, por exemplo, uma figura geom�trica: Qual a modalidade de exist�ncia de uma figura geom�trica? Ora, ela s� existe idealmente como conceito de esp�cie: Que � um quadrado sen�o o conceito de quadrado? Ele n�o � outra coisa sen�o seu pr�prio conceito, ele possui mera exist�ncia ideal e l�gica, existe como possibilidade de rela��o matem�tica e s�. Ou seja, n�o existe de maneira alguma: ele faz parte do poss�vel, n�o do real. Isso n�o quer dizer que uma figura geom�trica n�o transmita informa��o; mas ela transmite sempre a mesma, a informa��o essencial. Que � que o quadrado nos transmite sen�o o conceito de quadrado? � essa a defini��o do inexistir real: o que existe apenas como possibilidade l�gica transmite uma �nica informa��o, que diz que o ente � aquilo que ele �. Quando lidamos com pura defini��es, no reino puramente l�gico, os entes n�o t�m sen�o exist�ncia puramente l�gica, e n�o nos passam outra informa��o sen�o o conte�do de seu pr�prio conceito. Mas existir realmente � transmitir algo mais que seu pr�prio conceito: � transmitir propriedades, acidentes etc. E por isso mesmo essa dimens�o acidental passa a ser essencial para a exist�ncia. A� temos a id�ia, esbo�ada no meu livreto sobre Arist�teles, do acidente metafisicamente necess�rio. Algumas aspectos das coisas s�o acidentais, mas, sem eles, esses entes n�o poderiam existir. Esses acidentes, portanto, s� s�o acidentais do ponto de vista l�gico: para a exist�ncia, s�o essenciais. A estatura do homem � acidental, perfeitamente, mas n�o � acidental, para a exist�ncia, que ele tenha estatura, pois n�o pode haver um homem sem uma precisa estatura.

Portanto, com esse enfoque, todos os problemas metaf�sicos e gnoseol�gicos acabam por tomar outra face, mediante essa simples observa��o de que as quest�es fundamentais levantadas sobre esses assuntos n�o s�o abordadas e de que, sem elas, todas as teorias do conhecimento s�o projetos simplesmente invi�veis. Todos s�o assim, todos prometeram o que n�o podem fazer: o projeto cartesiano da fundamenta��o do conhecimento objetivo a partir do sujeito n�o vai dar em nada; o projeto kantiano da cr�tica da raz�o tampouco: o que se cria � um curto-circuito que n�o permite fazer progredir o conhecimento. Como conseq��ncia, como n�o h� progresso, n�o h� possibilidade de acumula��o de conhecimentos, essa impossibilidade passou a ser vista, por fil�sofos da tradi��o kantiana, como um dos tra�os essenciais da filosofia. Eu mesmo j� vi introdu��es � filosofia que diziam o seguinte: existem conhecimentos que progridem, como a ci�ncia, e outros que n�o progridem, como a filosofia. � o caso de dizer que filosofia n�o � conhecimento de maneira alguma, como dizia Jean Piaget: filosofia, para ele, n�o � conhecimento, � uma coordena��o de valores. Mas, como se pode coordenar algum conhecimento se a pr�pria regra coordenante n�o � conhecimento? � o mesmo que ter uma regra do jogo sem nenhum conhecimento do jogo. Ora, se a filosofia n�o � conhecimento ela n�o � absolutamente nada. Wittgenstein dizia: filosofia n�o � conhecimento, mas uma atividade. Certo, mas atividade de qu�? De conhecer, naturalmente. Isso tudo s�o subterf�gios: ou a filosofia � uma ci�ncia, ou n�o � nada. E se � uma ci�ncia, tem de ser poss�vel colocar as quest�es, investig�-las e chegar a alguma solu��o. Mas desde Descartes e Kant todas as quest�es filos�ficas n�o t�m mais solu��o � todo o ciclo moderno � abortado pela sucessiva formula��o de projetos imposs�veis. Que � o projeto de Nietzche? � a transvalora��o de todos os valores. Eu digo: pode parar, isso n�o � poss�vel, pois, se voc� derrubar todos os valores, no fim sobra voc�, e voc� passa a ser o valor. Mas voc� n�o tem mais fundamento do que os valores que derrubou, voc� tamb�m � apenas fingimento e auto-engano, voc� � um pobret�o sofredor que se faz de Anticristo para se consolar da sua mis�ria. Ent�o, tudo come�a com uma proposta muito arrojada e termina mal: � assim com o projeto cartesiano, com o kantiano, com o marxista, com o de Nietzche. O projeto de Wittgenstein, por exemplo, termina mal duas vezes: o primeiro projeto, o da linguagem absolutamente desprovida de ambiguidades, desprovida de qualquer elemento intuitivo, n�o d� em nada e ent�o Wittgenstein passa para o segundo projeto, o da cr�tica da linguagem comum. Ora, s� h� uma forma de fazer a cr�tica da linguagem: a partir de algo que n�o � linguagem, como os dados dos sentidos, por exemplo. Ora, n�o � poss�vel uma linguagem absolutamente coerente, em todos os passos, pois, se assim o fosse, dispensaria os fatos: ou seja, seria totalmente coerente na medida em que n�o falasse de coisa nenhuma. E de fato � a� onde chega Wittgenstein: por um lado temos uma linguagem totalmente coerente e formalizada, mas sem conte�do algum; por outro lado h� um conte�do an�rquico, atom�stico, sem qualquer elo interior, que ele chama de �fatos�. � claro que isso � um projeto abortado.

No fundo toda essa aparente mod�stia metodol�gica da filosofia moderna � todas come�am com autocr�ticas da capa

humana � termina numa pretens�o desmedida: pois seus projetos ultrapassam a capacidade humana.� Mais ainda: todos esses projetos n�o se justificam. Por que fazer a cr�tica da raz�o pura? Por que fundamentar o conhecimento no sujeito? Por que transvalorar todos os valores? Por que transformar o mundo em vez de tentar conhec�-lo. N�o h� raz�o suficiente para nada disso.

Quando digo que determinados projetos filos�ficos s�o invi�veis, � porque levantam perguntas sem sentido. Por exemplo, fundamentar o conhecimento objetivo a partir do sujeito considerado isoladamente � uma impossibilidade: se alegam ter abstra�do todas as coisas, e ter apenas sobrado o sujeito, como produzir o objeto a partir do sujeito? Descartes vai buscar um mediador em Deus, mas, se � necess�rio apelar a Deus, � porque � necess�rio um milagre: a filosofia de Descartes � t�o invi�vel que, para realiz�-la, � preciso um milagre.

Esses projetos filos�ficos s�o todos abortivos por sua excessiva pretens�o. O fil�sofo cai nessa pretens�o ao tentar achar o fundamento absoluto de um objeto cuja presen�a ele suprime na mesma hora. Qual a possibilidade de conhecer um objeto que n�o est� l�? Nesse sentido, toda a filosofia moderna � louca, a come�ar por Descartes. Ela cai na famosa defini��o de Borges: metaf�sica � um cego, num quarto escuro, procurando um gato preto... que n�o est� l�.

Vejam que mesmo o projeto de Popper � invi�vel: ao dizer que as teorias ci�ntificas v�lidas s�o aquelas que ainda n�o foram impugnadas, ele concede a toda teoria cient�fica uma esp�cie de licen�a para o erro infinito. Se n�o temos um m�todo positivo de afirma��o da verdade, ent�o n�o h� nenhuma possibilidade de, de antem�o, impugnar outras possibilidades de contesta��o que possam surgir. Assim, qualquer teoria est� aberta a uma cr�tica infinita, e entramos no reino da total inseguran�a, onde conhecer e n�o-conhecer passam a ser a mesma coisa. Assim, pelo m�todo popperiano, ca�mos no total irracionalismo, no convencionalismo cient�fico, onde o �nico recurso que nos sobre � o apelo � autoridade cient�fica� � �tem de ser assim porque o consenso diz que �. Tamb�m � evidente que, n�o havendo confirma��o positiva da verdade, � puro eufemismo dizer que na passagem de uma teoria impugnada a outra ainda n�o impugnada h� um �progresso�. N�o existe �progresso� ao longo de uma linha infinita, onde a id�ia mesma de movimento � anulada por hip�tese. Ou h� um padr�o de perfei��o, ainda que meramente ideal, ou ent�o � imposs�vel distinguir processo, retrocesso e estagna��o.

Mas, existe algo em comum entre todos esses projetos, que os condene � inviabilidade desde o come�o? Existe, sim: � a proposta de que o projeto filos�fico tenha de engolir o mundo, e n�o ser apenas uma parte dele: no fundo o que todos querem � encontrar a fundamenta��o filos�fica do mundo, mas se a primeira coisa que fazem � suprimir o mundo, como ser� poss�vel fundament�-lo? � poss�vel, certamente, fundamentar o mundo, mas para isso, em primeiro lugar, � preciso aceitar o mundo. � preciso reconhecer que a filosofia � apenas uma das muitas coisas que o homem faz no mundo, que a filosofia � uma resposta a uma situa��o que j� est� dada, e que ela s� responde �s perguntas que foram colocadas naquele momento e naquele lugar. Ou seja, ela pode remeter a uma ordem de conhecimentos e princ�pios universais, mas nunca vai expressar aqueles princ�pios na totalidade� � a fun��o da filosofia n�o pode ser essa. Isso n�o quer dizer, no entanto, que a filosofia tenha de se contentar com o parcial e fragment�rio. Quer dizer apenas que ela tem de ter a consci�ncia de participar do todo em vez da pretens�o de �abarc�-lo�. A consci�ncia de participa��o � uma forma de conhecimento t�o exata quanto a ut�pica vis�o desde fora, com a vantagem de ser vi�vel. Se a fun��o da filosofia � uma fun��o reflexiva e cr�tica, de certo modo, o trabalho dela � remeter a certos princ�pios que j� s�o conhecidos por participa��o: podem ser dif�ceis de exprimir, podem variar na express�o de tempos em tempos, mas a filosofia n�o tem de se preocupar com dar-lhes uma formula��o uniforme e universalmente aceita precisamente porque o trabalho dela n�o � abarc�-los dentro de si, mas lembr�-los, tornar poss�vel a sua reconquista na consci�ncia de homens reais que em seguida ter�o todo o direito de os formular como desejem. A filosofia � uma corre��o de trajeto: ela n�o vai tra�ar o trajeto, pois este j� est� dado: esse trajeto � o mundo. Quando a mente humana come�a a fantasias muito, e sair da realidade, a escapar da consci�ncia viva dos princ�pios, a filosofia corrigem a rota, e isto � tudo. A filosofia n�o visa a dizer qual o sistema do mundo, pois o sistema do mundo j� existe e est� no pr�prio mundo. Se n�o partirmos disso, nunca iremos encontr�-lo: o mundo � sistema, e o c�digo do sistema est� no pr�prio mundo. N�s, como participantes dessa realidade, temos esse c�digo em n�s, e o conhecemos na medida do papel que nesse todo desempenhamos: n�o mais que isso. Assim,� todos os c�digos que comp�em uma tartaruga est�o na tartaruga, sen�o ela n�o poderia ser tartaruga. Todos os c�digos que comp�em cada ente est�o refletidos em todos os demais entes, mas refletidos de maneira inversa:� por exemplo, na tartaruga est�o refletidos todos os c�digos que a diferenciam de um gato � se faltar um s�, a tartaruga estar� imperfeita, ser� indistinta de um gato. Se tomarmos dois entes, todas as diferen�as que os separam est�o registradas nos dois -- n�o podem estar registradas num s� --, mas de maneiras diferentes e multiplamente complementares. Ent�o, o sistema do mundo est� refletido no mundo e em n�s tamb�m: de maneira direita na nossa constitui��o enquanto homens, de maneira indireta na nossa diferen�a em rela��o a todos os demais homens e a todos os demais seres e coisas, inclusive o todo universal. Essa lei imanente, que tem de existir absolutamente, � o que chamamos sabedoria. � a sabedoria que est� no pr�prio ser, na realidade mesma, e que pode estar presente tamb�m no homem segundo uma modalidade especificamente humana. E o que � filosofia? � o amor � sabedoria. � a reconquista de um conhecimento desse sistema universal, que est� dado o tempo todo, e que conhecemos reduzidamente mas suficientemente. Ent�o, � um conhecer que � um ser. O ser humano tem em si todas as determina��es que o fazem humano, que o fazem ser fulano ou ciclano individualmente e que o fazem existir, ser real num universo real. N�o � poss�vel que ele abarque em toda sua mente subjetiva todos elementos dessa constitui��o, pois, se abarcasse, n�o abarcaria n�o s� conceitualmente mas existencialmente: seria necess�rio produzir um novo homem que contivesse o primeiro, o que n�o � poss�vel.� Portanto aquilo que voc� tem em voc� como ser, quando rebate no plano do seu conhecer subjetivo, rebate de maneira reduzida. Mas, em compensa��o, voc� conhece a constitui��o de muitos outros seres. Esse conhecimento, n�o � necess�rio registr�-lo porque o pr�prio real � o registro deles, e essa realidade, de certo modo, n�o � opaca, � transl�cida: voc� pode sempre voltar � leitura dos mesmos registros. N�o � necess�rio saber tudo, pois o universo sabe tudo e ele est� permanentemente � nossa disposi��o. Ele � a nossa mem�ria, a nossa biblioteca, o nosso saber. Ele, e n�o o nosso c�rebro. E qual o papel da filosofia? � restaurar no ser humano a confian�a e a capacidade da leitura dos registros no ser: no momento em que o ser deixa de ser opaco para algu�m, est� cumprida ali a fun��o da filosofia. Agora, � necess�rio fazer a transcri��o do ser? Ora, se � transcri��o � parcial, ela n�o � o pr�prio ser. E � feita apenas para responder apenas �s perguntas determinadas que algu�m fez. Assim, a fun��o da filosofia n�o � fazer a doutrina universal, mas remeter-nos � pr�pria realidade, que j� � a sua pr�pria doutrina, a doutrina do ser que transluz no corpo do pr�prio ser. A fun��o da filosofia � corretiva e, por isso, a maior parte da atividade filos�fica � reflexiva e cr�tica. Nesse sentido � que n�o acredito em �progresso infinito do conhecimento�, mas sim em conhecimento infinito. O ser que se d� a conhecer � infinito e se d� a conhecer infinitamente. O real � infinito, � intelig�vel, e � intelig�vel infinitamente: no momento em que compreendemos isso, estamos curados: terminou a miss�o da filosofia, e, ent�o come�a a sabedoria: Que � sabedoria? � o conhecimento, e, se o �, n�o pode ser uma doutrina, mas a pr�pria modalidade da nossa exist�ncia. Onde est� a sabedoria? Est� no homem s�bio, n�o no que ele disse, pois o que ele disse pode n�o ser compreens�vel para todos. H� sabedoria nos prov�rbios de Salom�o? Sim, mas apenas se a compreendermos, caso contr�rio n�o h� nenhuma: o que h�, isso sim, � o testemunho da sabedoria. E onde est� a sabedoria de Salom�o? Est� em Salom�o, e, se a compreendermos, ela j� n�o ser� mais sabedoria de Salom�o, e sim nossa. Da� podemos entender que a finalidade da filosofia � fazer s�bios: � despertar a possibilidade da sabedoria, que n�o � sen�o a inteligibilidade direta do real. Existem obst�culos para atingi-la: obst�culos de ordem moral, fisiol�gica, cultural. Esses �ltimos obst�culos, criados pela pr�pria atividade de busca do conhecimento, s�o os que a filosofia pode remover.� Por isso, se a sociedade n�o chegar ao ponto de criar confus�o na esfera cultural, n�o h� necessidade de filosofia.

N�o se pode transmitir a sabedoria porque a sabedoria � o real, n�o o que pensamos ou dizemos a respeito dele. Ca�mos hoje numa s�rie de ambiguidades por estarmos acostumados a entender sabedoria como conte�do de consci�ncia, n�o como algo que est� no ser, no real. Onde est� a ci�ncia da mineralogia? Est� nos livros de mineralogia? N�o: ela est� nos minerais. Se assim n�o fosse, ela n�o poderia estar tamb�m nos livros de mineralogia. Os livros s�o apenas registros que criam um intermedi�rio humano entre n�s e o mineral, de modo que n�o � necess�rio recapitular todas as observa��es anteriores para chegarmos at� o mineral. Se ao estudarmos um tratado de mineralogia conhecermos apenas o que nele est� escrito, sem refer�ncia aos minerais enquanto coisas reais, ent�o n�o sabemos nada.

O real propriamente dito � registro infinito de conhecimento, essencialmente translucidez, acidentemente obscuridade, pelo jogo dos reflexos devido a uma ocasional posi��o improp�cia que assumimos para enfoc�-lo � a� � necess�rio mudar de posi��o. Ora, mas se tomarmos todas as poss�veis dificuldades de foco, e, com elas, tentarmos formar um sistema, formaremos o mundo das sombras, o sistema da ignor�ncia. � a isso que a filosofia acad�mica francesa tem se dedicado nos �ltimos trinta anos. Ora, � necess�rio eliminar essa id�ia de que conhecimento s� existe na mente humana, e entendermos que conhecimento � uma rela��o ativa existente entre o ente e o restante do real, o qual � conhecimento, ainda que sob a forma potencial. Tome a pr�pria id�ia de observa��o: para entender a vida dos tigres, n�s os observamos. Ora, se nenhum conhecimento sobre tigres transparecesse na conduta dos tigres, de que adiantaria observ�-los? Se o conhecimento existisse apenas na mente humana, ao observarmos o tigre n�o conhecer�amos o tigre, mas apenas a n�s mesmos, a nossos pensamentos -- e cair�amos no curto-circuito kantiano: estamos observando apenas fen�menos que n�o s�o sen�o projetados por nossa forma cognitiva, portanto n�o estamos vendo um tigre, mas estamos vendo a n�s mesmos e chamando de tigres os nossos esquemas l�gicos e formas de percep��o. Muito bem, mas a� o tigre come o fil�sofo kantiano, e que � que havemos de dizer? Que foram as formas a priori que comeram? Ora, o tigre que nos ataca � o mesmo que antes conhec�amos; ou seja, o objeto que conhecemos � o mesmo com que nos relacionamos fisicamente e praticamente.

Conhecimento e ato de conhecer s�o certamente distintos. O real � registro infinto de conhecimentos. Existe, entretanto, o ato de conhecimento, que apenas ocorre nos atos individuais concretos. E mesmo assim, quando estes ocorrem, ocorre duplamente, n�o apenas no sujeito: os escol�sticos dizem que ao conhecermos algo, esse objeto n�o � alterado pelo fato de n�s o conhecermos. Mas isso n�o � totalmente exato: aquilo que conhecemos est� transmitindo informa��o a seu respeito naquele mesmo momento, e ser conhecido por um outro � alterar-se, sim. N�o � alterar-se internamente, mas alterar sua rela��o com o mundo em torno.

Imagine o primeiro homem que descobriu o diamante. Naquele mesmo instante n�o apenas o homem transformou-se, mas tamb�m transformou a rela��o do diamante com o homem, ou seja, da� por diante tudo foi diferente n�o s� para os homens mas tamb�m para os diamantes. Tornar-se conhecido � ser alterado, n�o internamente, � claro, mas relacionalmente. Foi porque os diamantes se tornaram conhecido que os homens come�aram a escavar para procurar diamantes. No m�nimo, cada coisa conhecida abre uma nova possibilidade de a��o sobre ela: a partir daquele momento, ela pode sofrer um tipo de a��o que antes n�o podia. Dizer que o objeto n�o foi alterado em nada � o mesmo que dizer que, para o objeto, ser conhecido ou n�o ser � o mesmo: ora, mas n�o me � poss�vel comer um frango se nunca o conheci. Ser conhecido abre, para o objeto, a possibilidade de uma nova paix�o, de sofre um novo tipo de a��o �- isso muda o destino dele, o lugar dele na ordem c�smica. � uma mudan�a objetiva.

Se entendermos que o real � registro de conhecimento, poderemos compreender o porqu� do s�mbolismo do �grande livro da natureza�: o que � ele sen�o o s�mbolo da inteligibilidade do real? E o homem tem, dentre os seres do mundo f�sico, o privil�gio de poder conhecer teoricamente todas as rela��es entre todos os seres que estejam a seu alcance. Isto �, o homem � o local onde esta inteligibilidade da natureza se realiza sob a forma de linguagem, mas n�o podemos esquecer que esta � apenas uma rela��o entre milhares de outras poss�veis.

Por isso a filosofia tem sempre de ser sist�mica, tem de ter um centro e n�o pode ser arbitr�ria, mas n�o pode ser �sistem�tica�. Sist�mico � aquilo que tem um centro e se desenvolve de forma mais ou menos org�nica a partir desse centro, sistem�tico � aquilo que procura conscientemente abranger e conter nos seus pr�prios limites o todo. � perda de tempo tentar uma filosofia sistem�tica: � o mesmo que tentar recriar o universo. Mas ela tem de ser sist�mica no sentido em que se refere ao sistema do universo, n�o perde de vista a sistematicidade do pr�prio real. Ela n�o � um amontoado de observa��es an�rquicas, mas tampouco se constitui da constru��o sistem�tica de um todo abrangente. Quando desenhamos uma �rvore, tentamos desenh�-la de todos os �ngulos poss�veis? N�o, o que tentamos fazer � um retrato parcial referido ao todo e ao sistema, um retrato parcial que esboce, signifique ou aponte para essa totalidade -- quanto mais simples for o desenho e quanto mais claramente apontar para o centro do sistema, melhor. Ent�o, a finalidade da filosofia � devolver o indiv�duo a esta posi��o de observador central, na qual o conte�do sapiencial da pr�pria realidade se mostra para ele. E quando ela se mostra? Quando ele quer: o universo responde quando perguntamos. Se for poss�vel recuperar essa posi��o, est� realizada a fun��o da filosofia. A� come�a a sabedoria propriamente dita.