O problema da verdade e a verdade do problema Seminário de Filosofia, 20 de maio de 1999 Olavo de Carvalho
I. O QUESTIONAMENTO RADICAL § 1. DA FRIVOLIDADE SATISFEITA Quid est veritas? Esta é a mais séria e a mais frívola das questões. Depende, evidentemente, da intenção de quem pergunta. Uns admitem que o sentido e o valor da vida humana dependem da existência de alguma verdade eminentemente certa e confiável, que possa servir de medida de aferição da validade de nossos pensamentos. Outros acham que a vida pode perfeitamente ir em frente sem verdade nenhuma e sem fundamento nenhum. Entre estes estava, decerto, o velho Pilatos. Ao exclamar — "Que é a verdade?" —, ele não estava fazendo propriamente uma pergunta, mas expressando, com um dar de ombros, sua pouca disposição de fazer a sério essa pergunta. A perspectiva de não existir nenhuma verdade, que levaria ao desespero aqueles que julgam que a vida precisa dela para se justificar, era para Pilatos um alívio e um consolo — a garantia de poder continuar vivendo sem preocupações. Alguns apostam na existência da verdade e cherchent en gémissant. Outros voltam-lhe as costas e lavam as mãos1. A fórmula verbal com que se exprimem é a mesma: Quid est veritas? Mas na diferença de suas nuanças reside toda a distância do trágico ao cômico. A escola frívola, ou cômica, é amplamente dominante hoje em dia, seja nas universidades, seja na cultura em geral. Mesmo aqueles que procuram crer numa verdade efetiva cercam-na de toda sorte de limites e obstáculos, por exemplo reduzindo-a ao tipo de verdade parcial e provisória que nos é dado por algumas ciências experimentais. Outros apegam-se à fé, dizendo que a verdade existe, mas está acima de nossa compreensão. Em qualquer debate sobre o problema da verdade, em nossos dias, o programa consiste quase que invariavelmente em desfiar de novo e de novo as observações que os filósofos, de Pirro a Richard Rorty, fizeram sobre os limites do conhecimento humano. Esses limites, vistos em conjunto, armam uma formidável montanha de obstáculos a qualquer pretensão de conhecer a verdade. E essa montanha é crescente, com um pico que se afasta mais e mais à medida que a escalamos. Por exemplo, desde as objeções simplórias da escola pirrônica contra a validade do conhecimento pelos sentidos até as construções enormemente complexas com que a psicanálise nega a prioridade da consciência ou Gramsci reduz toda verdade à expressão das ideologias que se sucedem através da História, muito evoluiu a máquina de injetar desânimo no buscador da verdade. Não é de espantar que muitos dos construtores dessa máquina, quando lhe acrescentam uma nova peça, em vez de lamentar o acréscimo da impotência humana tragam nos lábios um sorriso semelhante ao de Pilatos. A inexistência da verdade, ou a impossibilidade de conhecê-la, é para eles um reconforto. Veremos adiante quais são as razões mais profundas dessa estranha satisfação.
Por enquanto, vamos deixar essas criaturas de lado e colocar, por nossa conta, a questão da verdade. Como não sabemos ainda se a verdade existe nem o que ela afirma, temos de apelar a uma definição formal provisória, que possibilite dar início à investigação sem nada prejulgar quanto ao seu desenlace. Essa definição provisória, para atender a esse requisito, tem de expressar o mero significado intencional do termo, tal como aparece mesmo na boca daqueles que negam a existência de qualquer verdade, de vez que para negar a existência de algo é preciso compreender o significado do termo que o designa. Digo, pois, que a verdade, aquela verdade que ainda não sabemos se existe ou não, aquela verdade cuja existência e consistência serão o objeto da nossa investigação como o foram de tantas investigações que nos precederam, é o fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos. Se dizemos, por exemplo, que o único fundamento da validade dos nossos juízos é sua utilidade, negamos a existência de um fundamento cognitivo, ou seja, negamos a existência da verdade mediante a negação de um dos elementos que compõem a sua definição. O mesmo acontece de dizemos que todos os juízos válidos têm fundamento na fé. Se afirmamos, porém, que não há juízos válidos de espécie alguma, então negamos a existência de qualquer fundamento, cognitivo ou não. Se afirmamos que os juízos só são válidos para determinado tempo e lugar, negamos que o fundamento seja permanente. Se afirmamos que os juízos só são válidos subjetivamente para aquele que os profere, negamos que o fundamento seja universal. Se dizemos que o fundamento da validade dos juízos é apenas lógico-formal, sem qualquer alcance sobre os objetos reais mencionados no juízo, negamos que esse fundamento tenha significado cognitivo. Todas essas negações da verdade pressupõem a definição da verdade como fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos. Do mesmo modo, se dissermos que existe a verdade, que ela é conhecível, que com base nela podemos construir um conjunto de conhecimentos válidos, nada teremos acrescentado ou retirado dessa definição, mas teremos apenas afirmado que o objeto nela definido existe. Nossa definição provisória, sendo portanto compatível com as duas correntes de opinião maximamente opostas que disputam em torno da questão, é um terreno superior e neutro desde o qual a investigação pode ser iniciada sem preconceitos e com toda a honestidade e rigor.
§ 3. É POSSÍVEL O QUESTIONAMENTO RADICAL DA VERDADE? Partimos, assim, de um consenso. O passo seguinte da investigação consiste em perguntar se a verdade, assim definida, pode ou não ser objeto de questionamento radical. Com a expressão questionamento radical quero dizer aquele tipo de questionamento que, admitindo ex hypothesi a inexistência do seu objeto, — como por exemplo tantas vezes se fez com a existência de Deus, das idéias inatas ou do mundo exterior — termina por concluir, seja em favor dessa mesma inexistência, seja da existência. O questionador radical de Deus, das idéias inatas ou do mundo exterior pode questioná-los porque se coloca, desde o início, fora do terreno divino, inatista ou mundano, ou seja, ele raciocina como se Deus ou as idéias inatas ou o mundo não existissem. Conforme o desenrolar de sua investigação, ele chegará ou à conclusão de que sua premissa é absurda, o que o levará portanto a admitir a existência daquilo cuja inexistência havia postulado, ou, inversamente, à conclusão de que a premissa se sustenta perfeitamente bem e de que aquilo que foi suposto inexistente realmente inexiste. O mais clássico exemplo de emprego desse método é o de Descartes. Ele pressupõe a inexistência do mundo exterior, dos dados dos sentidos, do seu próprio corpo, etc., etc., e continua raciocinando nessa linha até encontrar um limite — o cogito ergo sum — que o obriga a recuar e a admitir a existência de tudo quando havia inicialmente negado. O questionamento radical é o mais duro teste a que a filosofia pode submeter qualquer idéia ou ente que se pretenda existente. O que devemos perguntar, portanto, logo após termos obtido a definição formal da verdade, é se a verdade assim definida pode ser objeto de questionamento radical. A resposta, que a muitos talvez pareça surpreendente, é um taxativo não. A verdade não pode ser objeto de questionamento radical. Nenhuma investigação sobre a verdade, por mais radical que se pretenda, pode dar por pressuposta a inexistência de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos e continuar a raciocinar de maneira consistente com essa premissa até chegar a algum resultado, positivo ou negativo. E não pode por uma razão muito simples: a afirmação da inexistência absoluta de qualquer fundamento cognitivo permanente e universal da validade dos juízos constituiria, ela própria, o fundamento cognitivo permanente e universal dos juízos subseqüentes feitos na mesma linha de investigação. A investigação estaria paralisada tão logo formulada. Examinemos brevemente algumas das estratégias clássicas de negação da verdade a que o questionador pudesse recorrer para escapar desse cul-de-sac. Tentemos, por exemplo, a estratégia pragmatista. Ela afirma que a validade dos juízos repousa na sua utilidade prática, que portanto o fundamento dessa validade não é cognitivo. Se disséssemos que a inexistência de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos não é ela própria um fundamento cognitivo universal e permanente, mas apenas um fundamento prático, das duas uma: ou esse fundamento prático teria de ser por sua vez universal e permanente, ou seria apenas parcial e provisório. Na primeira hipótese, teríamos dois problemas: de um lado, cairíamos no paradoxo de uma utilidade universal, ou seja, de algo que poderia utilmente servir a todos os fins práticos, mesmo os mais contraditórios. Seria o meio universal de todos os fins ou, mais claramente ainda, a panacéia universal. De outro lado, teríamos de perguntar se a crença nesta panacéia teria por sua vez um fundamento cognitivo ou se ela seria apenas uma utilidade prática, e assim por diante infinitamente. Na segunda hipótese — isto é, na hipótese de o questionador admitir que a afirmação da inexistência da verdade é apenas um fundamento parcial e provisório para a validade dos juízos subseqüentes —, então, evidentemente, restaria sempre, inabalável, a possibilidade de que fora do terreno assim delimitado pudessem subsistir outros fundamentos cognitivos universais e permanentes para validar uma infinidade de outros juízos, e a investigação poderia prosseguir indefinidamente, saltando de fundamento provisório a fundamento provisório, sem jamais poder chegar a fundamentar-se no seu próprio pressuposto, isto é, na radical inexistência da verdade. Tentemos uma segunda estratégia, a do relativismo subjetivista. Este proclama, com Protágoras, que "o homem é a medida de todas as coisas", o que se interpreta correntemente no sentido de que "cada cabeça, uma sentença", ou seja, de que o que é verdade é verdade apenas desde o ponto de vista daquele que a pensa, podendo ser falsidade desde o ponto de vista de todos os demais. Pode essa afirmação constituir a base de um questionamento radical da verdade, de tal modo que a negação da existência de qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos não se torne ela mesma o fundamento cognitivo universal e permanente em que se apóia a validade dos juízos subseqüentes na mesma linha de investigação? Dito de outro modo, e mais simples: pode o relativismo negar a existência de juízos válidos para todos os homens sem que essa negação se torne ela mesma um juízo válido para todos os homens? Para fazê-lo, ele teria de negar a universalidade dessa negação, o que resultaria em admitir a existência de algum ou de alguns ou de uma infinidade de juízos válidos para todos os homens. Assim o relativismo estaria ele próprio relativizado e acabaria se resumindo numa platitude sem qualquer significado filosófico, isto é, na afirmação de que alguns juízos não são válidos para todos os homens, o que implica a possibilidade de que outros juízos talvez o sejam. Não, o relativismo subjetivista não pode realizar um questionamento radical da verdade, tanto quanto não o podia o pragmatismo. Poderá fazê-lo, então, o historicismo? Este declara que toda verdade é apenas a expressão de uma cosmovisão temporalmente localizada e limitada. Os homens pensam isto ou aquilo não porque aquilo ou isto se imponha como verdade universalmente e permanentemente obrigatória, mas apenas porque se impõe num lugar e por um período limitados. Ao proclamar esses limites, pode o historicismo impedir que a afirmação desses limites se torne ela própria o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos? Para tanto, seria necessário admitir que pode haver algum fundamento que negue essa afirmação; mas, se esse fundamento existe, então existe alguma verdade cuja validade é ilimitada no tempo e no espaço, alguma verdade cuja validade escapa ao condicionamento histórico — e o historicismo estaria reduzido à miserável constatação de que alguns fundamentos de validade são condicionados historicamente, outros não, sem poder sequer aplicar esta distinção aos casos concretos sem afirmar no mesmo ato a invalidade do princípio historicista tomado como regra universal2. Pouparei ao leitor a enumeração de todos os subterfúgios possíveis e sua detalhada impugnação. Ele mesmo pode realizá-los, a título de exercício, se assim o desejar. Sugiro mesmo que o faça. E tantas vezes quantas venha a fazê-lo terminará sempre voltando ao mesmo ponto: não é possível negar a existência de um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, sob qualquer pretexto que seja, sem que essa negação, junto com o seu respectivo pretexto, tenha de se afirmar ela própria como o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, paralisando assim a negação seguinte pela qual deveria prosseguir, se pudesse, a investigação. A verdade tal como a definimos não pode, em suma, ser objeto de questionamento radical. Nem o pode a possibilidade de conhecê-la. Negado que seja possível conhecer qualquer fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, ou esta impossibilidade mesma se tornaria tal fundamento, afirmando no mesmo ato sua própria falta de qualquer fundamento, ou então, para não assumir esse papel vexaminoso, teria de se limitar a afirmar que alguns juízos não têm fundamento e outros provavelmente têm, afirmação que está ao alcance de qualquer garoto de escola. Não podendo atingir o alvo colimado, o inimigo da verdade está portanto condenado a roê-la pelas beiradas, eternamente, sem jamais chegar ao centro vital daquilo que desejaria destruir. Ele ora negará uma verdade, ora outra, ora sob um pretexto, ora sob outro, variando as estratégias e as direções do ataque, mas não poderá nunca se livrar do seu destino: cada negação de uma verdade será a afirmação de outra, e tanto aquela negação quanto esta afirmação resultarão sempre na afirmação da verdade como tal, isto é, da existência efetiva de algum fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos. Isso explica, ao mesmo tempo, a proliferação contínua, ilimitada e irrefreável das negações da verdade, e a sua completa impossibilidade de varrer da face da Terra a crença na existência da verdade, a crença na possibilidade de conhecer a verdade, a crença na posse atual e plena de alguma verdade capaz de dar fundamento universal e permanente à validade dos juízos. Por isso o número e a variedade dos ataques à verdade, de Pirro a Richard Rorty, superam amplamente o número e variedade das defesas que se apresentam formalmente como tais: é que eles próprios, ainda que a contragosto de seus autores, acabam sempre constituindo defesas e louvores da verdade, não só poupando trabalho ao apologista, mas vivificando eles próprios aquilo que desejariam sepultar e honrando aquilo que desejariam humilhar. Essa é também a razão por que o principiante, impressionado pela variedade e contínua retomada dos ataques à verdade que se observa na história da filosofia — em velocidade notavelmente crescente nos dias de hoje —, adere logo ao ceticismo para não se sentir membro de uma minoria isolada e enfraquecida, mas, prosseguindo seus estudos e superando a primeira impressão fundada apenas na quantidade aparente, não consegue manter essa posição e acaba percebendo que a força não reside no número dos que negam, por mais impressionante que pareça, e sim na qualidade dos happy few que serenamente afirmam a verdade.
II. A VERDADE NÃO É UMA PROPRIEDADE DOS JUÍZOS § 1. VERDADE E VERIDICIDADE A impossibilidade do questionamento radical, que constatamos no capítulo anterior, leva à conclusão de que a verdade só pode ser atacada em partes, mas que cada negação da parte reafirma a validade do todo. Dito de outro modo: o que se pode questionar são verdades. "A" verdade não pode ser questionada e de fato nunca o foi, exceto em palavras, isto é, mediante um fingimento de negação que resulta em última instância ser uma afirmação. Mas isso leva-nos um passo adiante na investigação. Uma tradição venerável, iniciada por Aristóteles, afirma que a verdade está nos juízos, que ela é uma propriedade dos juízos. Alguns juízos "possuem" a verdade, outros não. Chamamos, aos primeiros, juízos verdadeiros, aos segundos, juízos falsos. O conjunto dos juízos verdadeiros é portanto um subconjunto do conjunto dos juízos possíveis. Os juízos possíveis, por sua vez, são um subconjunto do conjunto dos atos cognitivos humanos, estes são um subconjunto do conjunto dos atos mentais, estes um subconjunto do conjunto dos atos humanos, e assim por diante. O território da verdade é, assim, uma pequena área recortada dentro do vasto mundo de pensamentos, atos e seres. Será isso realmente possível? Como poderia a verdade ser ao mesmo tempo o fundamento da validade de todos os juízos e uma propriedade de alguns deles em particular? Não há nisto uma gritante contradição ou, ao menos, um problema? Para equacioná-lo e resolvê-lo é preciso convencionar aqui uma distinção entre verdade e veridicidade. Verdade é o fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos. Veridicidade é uma qualidade que se observa em alguns juízos, segundo a qual sua validade tem um fundamento cognitivo universal e permanente. Uma vez compreendido isto, salta aos olhos que a verdade é uma condição fundante da veridicidade, e não ao contrário. Se não existisse um fundamento cognitivo universal e permanente da validade dos juízos, nenhum juízo poderia ter um fundamento cognitivo universal e permanente. Se, porém, um juízo em particular possui esse fundamento, nada no mundo pode determinar que somente ele o possua, isto é, que a existência do fundamento dependa da existência desse juízo em particular. Já esse juízo em particular não poderia existir e ser verídico se não existisse verdade alguma. A verdade é, pois, anterior, logicamente, à veridicidade e constitui o seu fundamento. Mas, sendo fundamento da veridicidade, a verdade é também fundamento da inveridicidade, porque os juízos falsos só são falsos na medida em que possam ser impugnados veridicamente, seja pela sua simples negação — verídica ela própria —, seja pela afirmação do juízo verídico contrário. Sendo o fundamento não só da veridicidade dos juízos verdadeiros, mas também da inveridicidade dos juízos falsos, se a veridicidade só está presente nos juízos verdadeiros, e não pode estar presente nos juízos falsos, a verdade, por sua vez, tem de estar presente em ambos, como fundamento da veracidade dos primeiros e da inveridicidade dos segundos. O território da verdade, pois, não é idêntico ao conjunto dos juízos verdadeiros possíveis, mas abrange este e o dos possíveis juízos falsos.
A verdade, fundamento de todos os juízos, tem de ser necessariamente um juízo? Somente um juízo pode ser fundamento de um juízo? A resposta é sim e não. Sim, se por fundamento entendemos, restritiva e convencionalmente, a premissa em que se funda a prova do juízo. Mas a premissa afirma algo a respeito de algo, e este algo, por sua vez, não é juízo e sim objeto dele. Digo, por exemplo, que as tartarugas têm cascas. Fundamento esse juízo nas definições de tartaruga e de casca, que são juízos, mas fundamento estas definições na observação — que não é juízo — de tartarugas e cascas, que também não são juízos. Não deve esta observação ser também verdadeira, captando traços verdadeiramente presentes em objetos verdadeiros? Ou apelarei ao subterfúgio de que a observação tem de ser somente exata, não se aplicando a ela o conceito de "verdadeiro"? Mas quê quer dizer "exato", no caso, senão aquilo que nada me informa além ou aquém do que foi verdadeiramente observado naquilo que um objeto verdadeiramente mostrava? E, ademais, trata-se de uma exatidão autêntica ou apenas de um simulacro dela? Não há escapatória: ou há verdade na observação mesma, ou ela não pode ser exata, nem correta, nem adequada, nem suficiente, nem ter qualquer outra qualidade que a recomende exceto se essa qualidade for, por seu lado, verdadeira. Assim, o fundamento da veridicidade de um juízo não está somente na veridicidade dos juízos que lhe servem de premissas, mas também — no caso dos juízos concernentes a objetos de experiência — na verdade dos dados de onde extraí essas premissas e na verdade do que deles sei por experiência. Ademais, se o fundamento dos juízos tivesse de ser ele próprio sempre um juízo, o fundamento primeiro de todos os juízos seria ele próprio um juízo destituído de qualquer fundamento. Aristóteles, levado a este beco sem saída, afirmou que o conhecimento dos primeiros princípios é imediato e intuitivo. Mas com isto quis dizer apenas que esses princípios não tinham prova, não que fossem desprovidos de fundamentos. O princípio de identidade, por exemplo, assim expresso no juízo A = A, não tem atrás de si nenhum juízo que possa servir de premissa à sua demonstração, mas tem um fundamento objetivo na identidade ontológica de cada ser consigo próprio, a qual não é juízo. Ora, o que pode ser conhecido intuitivamente é esta identidade ontológica, e não o juízo A = A que apenas o manifesta. A intuição do primeiro princípio lógico não se dá sob a forma de um juízo, mas de uma evidência imediata que, por si, não é juízo. Não pode haver juízo sem signos que transformem essa evidência imediata num verbum mentis, num assentimento consciente, que, sem ser ainda uma proposição, uma afirmação em palavras, já não é mais a pura e simples intuição e sim um reflexo mental dela e, portanto, um ato cognitivo derivado e segundo, não primeiro. Desse modo, se o território das premissas lógicas tem início nos juízos que afirmam os primeiros princípios, esse território nem de longe abrange todo o campo dos fundamentos cognitivos, que se estende, ao contrário, para dentro do domínio da percepção intuitiva, seja dos objetos de experiência, seja dos primeiros princípios. Com isso, fica evidente a falsidade da imagem na qual a verdade é uma pequena zona recortada na vastidão do território dos juízos possíveis. Os juízos todos, verdadeiros e falsos, é que são um modesto recorte no imenso território da verdade.
§ 1. A VERDADE COMO DOMÍNIO Com isso, somos levados a compreender que a verdade, sendo o critério de validade dos juízos, não pode nem ser uma propriedade imanente dos próprios juízos, nem ser algo de totalmente externo aos juízos que, de fora, os julgasse; pois este julgamento seria por sua vez juízo. Se digo que a galinha botou um ovo, onde pode estar a verdade deste juízo? No próprio juízo, independentemente da galinha, ou na galinha, independentemente do juízo? A absurdidade da primeira hipótese levou Spinoza a proclamar a inanidade dos juízos de experiência, que nunca são válidos ou inválidos em si mesmos e sempre dependem de algo externo: um juízo verdadeiro, para ele, teria de ser verdadeiro em si, independentemente do que quer que fosse, como por exemplo a = a independe do que seja a e de qualquer outra verificação externa. Mas a identidade de a com a também não está só no juízo que a afirma, e sim na consistência de a, seja ele o que for. Não há juízo puramente lógico, que possa ser verdadeiro ou falso em si e sem referência a algo que é aquilo do qual o juízo fala. Mesmo um juízo que falasse apenas de si mesmo desdobra-se no juízo que afirma e no juízo do qual algo se afirma, e este certamente não é aquele. Dizer que um juízo é verdadeiro em si mesmo não pode significar total alheamento do mundo, que está suposto na possibilidade mesma de se enunciar um juízo. A fuga para o domínio da identidade formal não resolve absolutamente o problema. Diremos então, com uma velha tradição, que a verdade está na relação entre juízo e coisa? Ora, esta relação é por sua vez afirmada num juízo, que por sua vez deve ter uma relação com seu objeto (a relação afirmada), e assim por diante infinitamente. A outra hipótese, de que a verdade do juízo a galinha botou um ovo está na galinha independentemente do juízo, nos levaria a dificuldades igualmente intransponíveis. Resultaria em dizer que a verdade do juízo independe de que esse juízo seja emitido, ou seja, que uma vez que a galinha tenha botado um ovo o juízo que o afirma é verdadeiro ainda que, como juízo, não exista. Edmund Husserl subscreveria isso sem pestanejar: a verdade do juízo é uma questão de lógica pura, que nada tem a ver com a questão meramente empírica de um determinado juízo ser afirmado um dia por alguém. A confusão entre a esfera da verdade dos juízos e a esfera da produção psicológica deles fez de fato muito mal à filosofia, e Husserl desfez essa confusão definitivamente. Mas se a galinha botou um ovo e ninguém afirmou nada a respeito, a verdade no caso não está no juízo e sim no fato. O juízo que não foi emitido ainda não pode ser verdadeiro ou falso, pode apenas ter as condições para sê-lo; se é verdade que a galinha botou um ovo, o juízo que o afirma será verdadeiro se formulado, ao passo que a verdade do fato já está dada com o aparecimento do ovo. Mas, se a verdade do juízo a galinha botou um ovo não está nem no juízo independentemente da galinha, nem na galinha independentemente do juízo, nem na relação entre galinha e juízo, onde raios pode ela estar? Ora, acabamos de ver que, independentemente dos juízos que os afirmam, os objetos intencionados nos juízos também podem ser verdadeiros ou falsos, independentemente dos juízos que venham a ser emitidos a respeito. A galinha botou um ovo opõe-se a a galinha não botou um ovo, independentemente de que alguém o diga ou não diga. Existe contradição e identidade no real, independentemente e antes de que um juízo afirme ou negue o que quer que seja a respeito dele. Ou, o que dá na mesma: a verdade existe na realidade e não só nos juízos, ou então não poderia existir nos juízos de maneira alguma. Há verdade no fato de que a galinha botou um ovo, há verdade no juízo que o afirma e há verdade, ainda, na relação entre juízo e fato bem como no juízo que afirma a relação entre juízo e fato: a verdade não pode então estar no fato, nem no juízo nem na relação, mas tem de estar nos três. Mais ainda, se está nos três, tem de estar também em algo mais, a não ser que admitamos que um único fato, o juízo que o afirma e a relação que os une possam, juntos, ser verdadeiros na hipótese de tudo o mais ser falso. Mas este "tudo o mais", que não está contido nem no fato nem no juízo nem na relação, inclui necessariamente a própria existência de fatos, bem como os princípios lógicos subentendidos no juízo e na relação. Se não há fatos nem princípios lógicos, inutilmente as galinhas botarão ovos no domínio do não-fato e inutilmente se buscará uma relação entre fato e juízo no domínio do ilogismo. Logo, a verdade de um só fato, de um só juízo e de sua relação subentende a existência da verdade como domínio que transcende e abrange a um tempo fatos, juízos e relações. Procurar a verdade no fato, no juízo ou na relação é como procurar o espaço nos corpos, nas suas medidas e na distância de um a outro; assim como o espaço não está nos corpos, nem nas medidas nem nas distâncias, mas corpos, medidas e distâncias estão no espaço, assim também a verdade não está no fato, nem no juízo, nem na relação, mas todos estão na verdade ou não estão em parte alguma, e mesmo este "não estar", se algo significa e não é apenas um flatus vocis, tem de estar na verdade. A verdade não é uma propriedade dos fatos, dos juízos ou das relações: ela é o domínio dentro do qual se dão fatos, juízos e relações.
A tentação kantiana é aqui praticamente incontornável. Condição de possibilidade de fatos, juízos e relações, a verdade é efetivamente uma condição a priori. Mas condição a priori da existência dessas três coisas ou apenas do seu conhecimento? Resolve-se este problema de maneira simples e brutal: se dizemos que a verdade é uma forma a priori do conhecimento e pretendemos que isto seja verdadeiro, então o conhecimento tem de estar na verdade e não a verdade no conhecimento, pois o a priori não poderia ser imanente àquilo que ele próprio determina. Para ser condição a priori do conhecimento, a verdade tem de ser necessariamente condição a priori de algo mais, que por sua vez não é conhecimento e sim objeto dele. O conhecimento, como os fatos, juízos e relações, está dentro do domínio da verdade, e isto independentemente de considerarmos o conhecimento tão-somente no seu conteúdo eidético ou como fato: a verdade do conhecido, a verdade do cognoscente e a verdade do conhecer são aspectos da verdade, e não a verdade aspecto de um deles. Não há enfim escapatória kantiana. Ou o conhecimento está na verdade ou não está em parte alguma.
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