Apostilas do Semin�rio de Filosofia - 16
Conhecimento e presen�a
Se denominarmos "conhecimento" apenas o conjunto de dados e rela��es que um homem carrega consigo e tem � sua pronta disposi��o num dado momento da sua exist�ncia, o conhecimento ser� n�o apenas drasticamente limitado, mas informe e flutuante. Por isto inclu�mos nessa no��o o conjunto mais amplo das informa��es registradas e disseminadas no seu meio social, sem as quais ele pouco poderia fazer por seus pr�prios recursos. Mas esse conjunto de registros, por sua vez, subentende a exist�ncia do meio f�sico, isto �, n�o somente dos materiais onde se imprimem esses registros, mas tamb�m do mundo de "objetos" a que eles se referem e com os quais se relacionam de algum modo. A no��o de "conhecimento" como conte�do da mem�ria e da consci�ncia humanas torna-se totalmente invi�vel se n�o admitirmos que o conhecimento, sob a forma de registro, existe tamb�m fora delas. Mais ainda, n�o podemos admitir que existam somente os registros feitos pelo homem, j� que todo material que possa servir de t�bua onde se inscrevam esses registros s� pode se prestar a esse papel precisamente porque, na sua natureza e na sua forma intr�nseca, ele traz os seus registros pr�prios, adequados a esse fim: n�o se escreve na �gua nem se produz uma nota musical soprando sobre uma rocha compacta. Registro � todo tra�o que especifica e singulariza um ente qualquer. Todo ente traz em si uma multid�o de registros, alguns inerentes � forma da sua esp�cie, como por exemplo a composi��o qu�mica e mineral�gica de uma pedra ou a fisiologia de um gato, outros decorrentes de sua intera��o com o ambiente em torno como por exemplo as marcas da eros�o na pedra ou o estado de sa�de do gato considerado num momento qualquer da sua exist�ncia individual. Entre estes �ltimos, destacam-se os registros que nele foram impressos pelos seres humanos com a finalidade de torn�-lo um suporte f�sico dos atos de reconhecimento e mem�ria. A pedra esculpida traz em si os dados de sua composi��o f�sico-qu�mica e mineral�gica, aos quais se superp�em as marcas da eros�o e os sinais do trabalho do escultor. Ao contemplar a escultura, o espectador presta aten��o consciente apenas �s qualidades est�ticas da forma esculpida e � apar�ncia vis�vel imediata da pedra que lhes serve de suporte, geralmente sem atentar para a composi��o �ntima, f�sica, qu�mica e mineral�gica, a qual, no entanto, determina a aptid�o da pedra para servir de suporte �s qualidades que lhe s�o subseq�entemente superpostas, seja pela natureza, seja pelo escultor. At� que ponto essas qualidades �ntimas da pedra s�o "indiferentes" ao efeito est�tico obtido? A resposta depende unicamente da amplitude da concep��o do escultor, que tanto pode ter desejado imprimir uma forma significativa a um material qualquer, pronto a fazer o mesmo sobre um outro material se este estivesse � sua disposi��o, mas pode tamb�m ter desejado estabelecer uma ponte entre as qualidades da pr�pria pedra e as da forma impressa. Quem leia o famoso par�grafo de Goethe sobre o granito ter� uma id�ia de quanto uma pedra, por si, pode sugerir determinadas qualidades esculturais e arquitet�nicas. � s� por uma comodidade pr�tica que estabelecemos um limite entre as qualidades da forma intencional e as do pr�prio suporte, fisicamente considerado. Tudo s�o registros, e a amplitude maior ou menor do nosso horizonte de aten��o s� modifica a vis�o que temos de um determinado ente, e n�o o conjunto objetivo dos registros que est�o nele. Cada um de n�s, enquanto existente, traz em si uma multid�o de registros, aos quais se acrescentam os resultantes da intera��o com o meio e os auto-adquiridos (h�bitos, por exemplo, ou a hist�ria dos nossos atos volunt�rios). Nessa multid�o, onde come�a o puro "conhecer" e onde termina o puro "ser"? Basta formularmos esta pergunta para nos darmos conta, de chofre, de que essa fronteira n�o existe. O puro "ser" s� pode ser definido como o registro que est� presente mas � desconhecido. Mas um tra�o meu qualquer que me seja desconhecido n�o o � mais, nem menos, do que um livro que esteja na minha biblioteca h� anos sem que eu o tenha lido. Quando digo portanto que o livro "� conhecimento" e o tra�o desconhecido do meu ser � "pura exist�ncia", � apenas porque os registros que constam do livro foram postos l� por um ser humano, o qual a fortiori os conhecia, ao passo que os registros desconhecidos do meu corpo nunca foram ao menos assim me parece conhecidos por ningu�m. Mas esta distin��o � bem ilus�ria, ao menos quando tomada ao p� da letra. No livro h� decerto muitas qualidades objetivamente presentes que podem ter escapado a todos os seus leitores e mesmo ao pr�prio autor. Elas ser�o ent�o "conhecimento" ou "puro ser"? No primeiro caso, terei de admitir um "conhecimento desconhecido", no segundo terei de negar que os registros escritos sejam conhecimento. Por outro lado, at� que ponto posso declarar que o tra�o desconhecido presente no meu corpo n�o � de modo algum conhecimento? Qualquer que seja a informa��o contida nesse "x", ela n�o pode ser absolutamente contradit�ria com o meu corpo considerado enquanto sistema e organismo, pois � parte dele e se integra, de algum modo, no seu funcionamento, sendo portanto um complemento "inconsciente" das partes dele que operam "conscientemente". Esse "x", portanto, al�m de estar bem integrado num sistema do qual amplas parcelas s�o conhecidas, est� a� � minha disposi��o para ser conhecido de um momento para outro, assim como o livro que, na estante, espera que eu o leia. O corpo � registro, o livro � registro, os entes todos � minha volta s�o registros: transitam incessantemente do ser ao conhecer, do conhecer ao ser, de tal modo que a distin��o destes dois momentos � antes ocasional e funcional do que outra coisa. Por isto mesmo a sensa��o tem sido o pons asinorum de todas as teorias do conhecimento, que, n�o sendo teorias do ser e sim do conhecer apenas, t�m de encontrar um momento, uma passagem, um salto onde o ser se transmute em conhecer, e realmente jamais conseguem faz�-lo, pela simples raz�o de que esse salto � apenas uma mudan�a de ponto de vista e o ser n�o poderia transmutar-se em conhecer se j� n�o fosse, em si e por si, o conhecer, apenas visto pelo avesso: nada poderia ser objeto de conhecimento se n�o contivesse registros, e nada pode conter registro sem ser, j�, conhecimento "em pot�ncia". Mas que esta pot�ncia passe ao ato num momento determinado, desde o ponto de vista de um determinado sujeito cognoscente, n�o quer dizer que este seja o �nico ou o primeiro a efetiv�-la: o registro que me � desconhecido e que agora se torna conhecido j� pode ter sido transmitido a milhares de outros entes humanos ou n�o que entraram em contato com o portador desse registro ontem ou um milh�o de anos atr�s. N�o, o "puro ser" n�o existe: todo ser � conhecido, pois algo de seus registros foi transmitido a outros seres. H�, portanto, uma forma de conhecer que consiste, simplesmente, em ser. � ser portador de registros e, de algum modo, receptor deles (s� n�o sendo receptor o ente imposs�vel que em nada se relacionasse consigo mesmo e fosse constitu�do de pura auto-aus�ncia1). A essa forma de conhecer que consiste em ser, denomino, sumariamente, presen�a. A presen�a � o fundamento de todas as demais modalidades de conhecimento. Todas as pr�ticas de concentra��o, medita��o, recolhimento, etc., criadas pelos homens espirituais de todas as �pocas t�m como finalidade primeira alcan�ar e conservar o senso da presen�a. O senso da presen�a � a plena assun��o de um ente por si mesmo, na totalidade dos seus registros e na sua modalidade espec�fica e particular de exist�ncia. Pe�o a fineza de n�o confundir o senso da presen�a com algum tipo de "conhecimento inconsciente", "instinto", "mist�rio indiz�vel" e coisas tais, j� que as distin��es entre consciente e inconsciente, instintivo e aprendido, diz�vel e indiz�vel, etc., s� se aplicam a formas derivadas e secund�rias de conhecimento, que constituem o orbe daquilo que a rigor se denomina "a mente". As distin��es internas do mental n�o se aplicam ao senso da presen�a pela simples raz�o de que este abrange o mental como um conjunto de registros entre outros conjuntos de registros que comp�em a nossa presen�a. O senso da presen�a � o ponto de interse��o onde todos esses pares de opostos se reúnem e de onde partem para constituir as v�rias modalidades do conhecimento mental. Ele n�o poderia, portanto, caber nas categorias que estas determinam.
27/09/99
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