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Apostilas do Semin�rio de Filosofia - 17

 

Humanismo e totalitarismo
Seminário de Filosofia, 23 de novembro de 1999

 

Ou h� uma realidade absoluta e eterna acess�vel ainda que parcialmente ao indiv�duo humano, ou n�o h�. Na primeira hip�tese, todo vislumbre dela que tenha sido experimentado, ainda que fugazmente, tem uma import�ncia universal objetiva como realiza��o das supremas possibilidades humanas, mesmo que essa experi�ncia tenha acontecido a um indiv�duo solit�rio e desconhecido, e mesmo que dela nada tenha se registrado para a "posteridade" e integrado no legado "cultural". Tal � o caso dos "santos an�nimos", como os wally'ullahi ("amigos de Deus") do islamismo, referidos, ao lado dos homens espirituais famosos e em escala de valor n�o inferior ao deles, por todas as tradi��es religiosas e sapienciais.

A Hist�ria da sabedoria, a�, n�o passa do registro de uns quantos exemplos not�veis, escolhidos ao sabor da acidentalidade que os tornou famosos. A fama e o conseq�ente registro hist�rico n�o significa nem que esses casos sejam os mais elevados no que diz respeito � qualidade e quantidade dos conhecimentos obtidos, nem que entre eles, tomados em conjunto na sua sucess�o hist�rica, exista a unidade identific�vel de um processo, de vez que, como Deus protege da notoriedade muitos dos que Lhe s�o pr�ximos, muitos elos decisivos dessa cadeia, se � que ela existe, t�m de permanecer desconhecidos da "cultura" humana e da hist�ria. Na B�blia, por exemplo, a figura misteriosa, evanescente e perfeitamente a-hist�rica de Melquisedec, da qual pouco se sabe al�m de que � o nome do fundador da ordem sacerdotal em que se insere o pr�prio Cristo, n�o � menos decisiva, espiritualmente, do que um personagem da relev�ncia p�blica e hist�rica de Mois�s.

A hist�ria, a�, n�o � sen�o o mostru�rio mais ou menos casual e fragment�rio de uma unidade transcendente, a qual s� se realiza numa meta-hist�ria que permanece acess�vel - paradoxalmente, para o gosto moderno - a indiv�duos sem import�ncia hist�rica nenhuma.

Praticamente todas as civiliza��es conhecidas assentaram-se nessa hip�tese.

Na outra hip�tese, n�o h� unidade transcendente alguma, nem meta-hist�ria, nem vislumbres esparsos dessa suprema realidade. S� resta ent�o duas alternativas: ou cada indiv�duo isolado se perde e se anula na sua subjetividade emp�rica fatalmente cega, ou os homens se re�nem para construir, pela redu��o de seus discursos individuais � unidade de uma doutrina ou ao menos de um di�logo racionalmente formul�vel, o �nico tipo de universalidade doravante poss�vel, a universalidade de uma linguagem v�lida para todos os membros da esp�cie.

Seria um exagero dizer, como Ren� Gu�non, que "a civiliza��o ocidental moderna" apostou maci�amente nesta segunda hip�tese, sendo o �nico exemplo conhecido disso. Pois, de um lado, dentro dessa mesma civiliza��o subsistem poderosos n�cleos de resist�ncia fortemente apegados � aposta na meta-hist�ria, n�cleos sem cuja presen�a a hist�ria moderna seria totalmente inconceb�vel (como o prova ali�s a pr�pria influ�ncia de Ren� Gu�non, que nem por discreta � menos decisiva, do que, se fosse preciso demonstr�-lo, seria exemplo bastante a prodigiosa expans�o do esoterismo isl�mico entre as elites dominantes europ�ias).

No entanto � fato que em nenhuma outra civiliza��o conhecida a pretens�o de suprimir a meta-hist�ria e de construir uma universalidade ao n�vel da pura hist�ria foi t�o destacada como no Ocidente moderno. Por isto, ainda que parcial, problem�tica e rodeada de resist�ncias que crescem em vez de diminuir, a mencionada aposta pode legitimamente ser encarada como o principal tra�o diferenciador dessa civiliza��o. Por sua elimina��o dos fatores sobre-humanos e sua �nfase no papel exclusivo da humanidade na cria��o do novo padr�o de universalidade, esse tra�o recebeu o nome de humanismo.

Entre as conseq��ncias que essa aposta atrai inevitavelmente, h� uma que tem passado despercebida �queles que a defendem. � que ela, para se manter, deve substituir ao mero dogmatismo autorit�rio das antigas tradi��es a nova forma de tirania muito mais abrangente e cerrada que, por n�o deixar nada da conduta humana mesmo �ntima e secreta escapar ao seu controle, se denominou, com muita propriedade, totalitarismo. As rela��es de implica��o rec�proca de humanismo e totalitarismo s�o o tabu em que se assenta, como sobre a conspira��o para ocultar um crime origin�rio, a parte mais p�blica e hegem�nica da cultura moderna.

Dois fatores contribuem para manter intocado esse tabu. De um lado, o prest�gio mesmo, quase m�gico, da palavra "humanismo". Originariamente designando apenas a aposta na autonomia da humanidade em rela��o a todo sobre-humano, o termo humanismo, tardiamente, veio a ser usado para designar, na ret�rica e na propaganda pol�tica, a defesa dos seres humanos contra as tiranias desumanas, obscurecendo assim aos olhos da multid�o o fato historicamente ineg�vel de que nenhuma das grandes tiranias modernas se assentou na devo��o ao supra-humano, mas, ao contr�rio, todas elas nasceram da ades�o professa ao humanismo, da aposta no universal hist�rico.

De outro lado, toda a hist�ria moderna se desenrola ao fio das lutas entre duas fac��es dos construtores do universal hist�rico: os adeptos da doutrina universalmente v�lida e os adeptos do di�logo em aberto (por exemplo, os marxistas e os liberais; ou os nazistas e os socialdemocratas). Como cabe aos primeiros representar a op��o totalit�ria ostensiva, a peri�dica vantagem a favor dos segundos e a hegemonia que desfrutam ao longo do tempo d�o a impress�o de que o ciclo moderno vai na dire��o da vit�ria sobre o totalitarismo e de que portanto este n�o pertence � natureza mesma desse ciclo e s� pode ser explicado como "res�duo" de eras passadas. Assim, a inven��o tipicamente moderna do totalitarismo vai sendo cada vez mais atribu�da a �pocas que o desconheceram por completo e que n�o poderiam sequer imagin�-lo, ao mesmo tempo que o totalitarismo mais expansivo pode perpassar de cabo a rabo todo o ciclo moderno sem jamais ser percebido como fen�meno caracteristicamente dele e s� dele, que � o que de fato ele �. Embora s� a modernidade tenha conhecido regimes totalit�rios, a imagem dela permanece limpa de todo cont�gio com a horrenda figura do totalitarismo na medida mesma em que as �pocas que n�o o conheceram s�o sacrificadas como bodes expiat�rios no altar da auto-lisonja moderna.

No entanto, a perpetuidade ao menos c�clica do totalitarismo - e da luta contra ele por parte dos adeptos do di�logo - na �poca moderna, bem como a aus�ncia de ambos esses fen�menos em outras �pocas, sugere, por si, mais que a conveni�ncia, a imperiosa obrigatoriedade l�gica e moral de n�o caracterizar a �poca moderna por um desses tra�os apenas - e muito menos pelo mais bonito deles tomado isoladamente - e sim pela coexist�ncia de ambos. � errado, pois, associar o tempo do humanismo apenas com a defesa da liberdade e do di�logo, pois o totalitarismo est� presente nele com a mesma const�ncia da ideologia dialogal e o singulariza tanto quanto ela. O totalitarismo n�o � a sombra de �pocas passadas que obscurece as luzes da civiliza��o humanista: � a sombra da pr�pria civiliza��o humanista, com que ela obscurece injustamente a nossa vis�o das �pocas passadas.

Por�m, h� mais quatro itens que devem ser levados em considera��o nesse exame impiedoso da era moderna. Primeiro, se o totalitarismo est� associado ao humanismo ao menos tanto quanto o est� a ideologia dialogal, a revela��o desse fato suprimiria no mesmo instante boa parte do prest�gio dessa ideologia que, n�o podendo subsistir sem a sombra que por contraste a faz parecer luminosa, se dissiparia instantaneamente na hip�tese de aus�ncia dele. Eis a� por que a queda do Muro de Berlim n�o inaugurou no mundo a anunciada era de liberdade, mas um estado cr�nico de interven��o policial.

Em segundo lugar, se o totalitarismo n�o pode ser separado da �poca humanista e se esta s� consegue afirmar sua superioridade sobre as �pocas passadas projetando sobre elas a sua pr�pria sombra de modo a faz�-las parecer totalit�rias, cabe perguntar se tamb�m esta proje��o e esta mentira hist�rica n�o est�o na pr�pria natureza da era humanista e se esta poderia subsistir um s� instante se tal mentira fosse universalmente revelada como tal.

Em terceiro lugar, � preciso perguntar-nos, com toda a firmeza requerida para isso, se a ideologia dialogal, com todos os seus encantos, � efetivamente algo mais do que pura ideologia, no sentido depreciativo de Ideenkleid, "vestido de id�ias" com que o humanismo encobre sua face totalit�ria, e se, considerada na densa realidade concreta de sua cumplicidade cong�nita com o totalitarismo, essa ideologia n�o se desfaria em miser�vel p� de palavras.

Em quarto e �ltimo lugar, restaria examinar se o pr�prio di�logo, nas condi��es concretas em que se exerce e n�o no seu mero conceito abstrato idealizado, n�o consegue se instalar e manter apenas por meios discretamente totalit�rios, pronto a convert�-los em totalitarismo ostensivo ao menor sinal de perigo para os fundamentos da sua exist�ncia, isto �, ao menor sinal de desmascaramento do pacto humanista entre totalitarismo e di�logo.

Se as doutrinas da liberdade pol�tica, da democracia e do di�logo n�o puderem subsistir a esse exame, � porque n�o t�m subst�ncia nenhuma fora desse pacto.

 

(continua)

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