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Apostilas do Semin�rio de Filosofia - 31

 

Fato concreto e depura��o abstrativa

Olavo de Carvalho
20 de fevereiro de 2002

 

Nenhum acontecimento, por m�nimo que seja, pode se produzir sem que um n�mero indefinido de acidentes fa�a convergir para o preciso momento e o preciso lugar em que ele se manifesta as inumer�veis linhas de causas e condi��es que sustentam sua manifesta��o.

O acontecimento assim considerado denomina-se fato concreto. Concreto vem de cum+crescior, designando o crescimento concomitante e convergente desses v�rios fatores causais.

Gra�as � superposi��o dos fatores acidentais, todo fato concreto pode ter, para seus atores e espectadores, uma multiplicidade de sentidos, que se organizam em v�rias articula��es hier�rquicas conforme o ponto de vista, defini do por sua vez por um determinado interesse cognitivo.

Os v�rios interesses cognitivos, por�m, podem ser por sua vez articulados hierarquicamente, segundo crit�rios de valor. O que tem valor para o personagem envolvido n�o � necessariamente o que tem valor para o cientista, etc. O ponto de vista d� busca do conhecimento verdadeiro e apod�ctico � somente um desses crit�rios, mas obviamente ele � o �nico que tem abrang�ncia e fundamento bastante para poder julgar os outros.

Nenhuma ci�ncia estuda fatos concretos. Toda ci�ncia pressup�e um ponto de vista e um recorte abstrativo preliminar. O fato concreto s� pode ser objeto de narrativa, devendo esta ser completa no que diz respeito aos detalhes sucessivos e simult�neos, mas plurissensa o bastante para evocar a multiplicidade das causas, acidentes e pontos de vista, que s� um posterior exame abstrativo tratar� de isolar e estudar um a um.

Uma das tarefas essenciais da filosofia � preparar o fato concreto para exame cient�fico, discernindo nele os v�rios pontos de vista poss�veis e julgando-os segundo sua maior ou menor validade em fun��o dos diversos interesses cognitivos. Sem essa depura��o, sugest�es mais ou menos impl�citas na narrativa se filtrar�o subrepticiamente para dentro enfoque cient�fico adotado, maculando a pureza de linhas do objeto abstrato e invalidando as conclus�es obtidas de seu estudo.

Toda narrativa de fato concreto � �po�tica�, no sentido de operar nele um primeiro recorte que n�o � definido por nenhum interesse cognitivo posterior mas segundo o pr�prio impacto imediato do acontecimento, considerado enquanto massa de informa��es e rea��es vivenciada como experi�ncia humana real.

Nenhum fato concreto seria estudado se n�o representasse tamb�m um problema, e nenhum problema chegaria a ser estudado cientificamente se n�o fosse tamb�m, de algum modo, um problema para a exist�ncia humana concreta. A discuss�o de um problema segundo o interesse cognitivo da exist�ncia humana concreta e imediata dos personagens mais ou menos diretamente envolvidos � discuss�o ret�rica, pois nela predomina o desejo de fazer prevalecer algum ponto de vista definido por interesses individuais das partes em disputa.

Quando algum interesse desse tipo logo prevalece sobre os demais, o fato cessa de ser problema para a comunidade envolvida, consolidando-se em torno dele uma cren�a coletiva considerada suficientemente adequada para o posicionamento pr�tico de todas as pessoas em torno do assunto. As cren�as, por sua vez, s�o tamb�m fatos concretos, podendo por isto mesmo tornar-se problemas, isto �, problemas �de segundo grau�, j� n�o diretamente comprometidos com a exist�ncia concreta, problemas para o fil�sofo.

Seja em torno das cren�as, seja dos fatos mesmos, pode acumular-se uma massa� de opini�es ao menos aparentemente incompat�veis, derivadas do exame do fato desde interesses cognitivos diversos e n�o articulados uns com os outros. Quando a acumula��o dessa massa atinge o ponto cr�tico, isto �, quando as diversas cren�as se tornaram fatos e a acumula��o desses fatos toma a forma de um conflito geral, a necessidade de articular racionalmente os diversos pontos de vista (e respectivos interesses cognitivos), para transcend�-los num ponto de vista abrangente capaz de dar conta de todos e arbitr�-los, este � precisamente o momento da entrada em cena do fil�sofo.

O fil�sofo procede ao exame dial�tico da massa de opini�es, mas n�o o faz com prop�sito puramente dial�tico (impugnar racionalmente esta ou aquela opini�o), mas com o prop�sito de fazer dela, meduante sucessivas depura��es dial�ticas das cren�as envolvidas, um objeto poss�vel de demonstra��o cient�fica.

Assim, evidentemente, o estudo cient�fico de qualquer fato passa necessariamente pelas etapas dos quatro discursos de Arist�teles, seja na mente de um s� investigador que as percorra todas, seja ao longo de uma �tradi��o� de discuss�es que come�a com as narrativas e, mediante sucessivas depura��es e estreitamentos dos pontos de vista considerados, termina em conclus�es cient�ficas com pretens�es de validade demonstrativa.�����������

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A filosofia -- unidade do conhecimento na unidade da consci�ncia e vice-versa -- n�o poderia, portanto, surgir como ambi��o e projeto antes da �descoberta do esp�rito� assinalada por Bruno Snell (dependente por sua vez da dissolu��o de um universo mitopo�tico na prolifera��o dos discursos ret�ricos). Esta grande ascens�o a um ponto de vista superior, definido por um interesse cognitivo superior -- o interesse do indiv�duo humano considerado enquanto capaz de conhecimento universalmente v�lido -- , foi evidentemente um �salto civilizacional�, abrindo � humanidade europ�ia novas possibilidades n�o s� de concep��o e cogni��o, mas de organiza��o social e pol�tica fundada no reconhecimento da (potencial) autonomia cognitiva do indiv�duo maduro em face da opini�o socialmente vigente.

Muitos sofrimentos e perplexidades registrados na Hist�ria ocidental desde ent�o derivam de um s� problema: todos os indiv�duos humanos s�o virtualmente capazes de autonomia cognitiva, n�o sendo poss�vel determinar de antem�o quais realizar�o ou n�o essa possibilidade; de outro lado, � incontest�vel que pouqu�ssimos a realizam (e seu n�mero n�o parece crescer proporcionalmente, tanto quanto se esperava, com a expans�o do acesso aos meios de ensino). Intermin�veis discuss�es de princ�pios e conflitos de facto em torno do �governo dos s�bios�, do �governo dos poucos�, do �governo dos muitos� ou do �governo do povo pelo povo para o povo� derivam dessa contradi��o origin�ria, aparentemente insol�vel. As castas n�o s�o mais que a distin��o de tipos humanos conforme sua participa��o maior ou menor na realiza��o dessa possibilidade. A n�o ser na remot�ssima e ut�pica possibilidade de saber de antem�o quais indiv�duos se tornar�o s�bios (hip�tese que nem mesmo o rigid�ssimo sistema hindu de legitima��o oficial das castas ousou subscrever integralmente), a distribui��o de facto das castas numa dada sociedade pode ser considerada, sem erro, um dado emp�rico bruto, que pode ser descrito mas n�o �explicado� causalmente. Por isto ela � a base extra-social, ou pr�-social, de toda ci�ncia social. Por baixo de qualquer sistema pol�tico ou estrutura social de classes, h� sempre um sistema de castas, reconhecido ou n�o. As v�rias possibilidades de articula��o entre o sistema de castas existente de facto e o sistema de classes e poderes legitimamente constitu�do s�o a base de toda tipologia das estruturas sociais que se pretenda cientificamente v�lida, isto �, fundada em fatores �ltimos que transcendem a explica��o sociol�gica.