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Apostilas do Semin�rio de Filosofia – 29

 

Que � o direito?

Olavo de Carvalho
Semin�rio de Filosofia, 22 de setembro de 1998.

 

Esta aula faz parte da s�rie Ser e Poder: Os Problemas Fundamentais da Filosofia Pol�tica, que, lecionada entre 1997 e 1998 no Rio e em S�o Paulo, foi transcrita das fitas gravadas e est� desde ent�o sendo preparada para publica��o em livro, aos trancos e barrancos, nos intervalos de uma carreira que, porca mis�ria!, n�o se assemelha em nada � imagem do pacato estudioso entre seus livros, imagem que � precisamente a daquilo que eu sonhava ser quando crescesse e ainda, aos 54 anos, continuo sonhando. Ser e Poder constitui-se de dois blocos de investiga��es complementares: o primeiro consagrado � elucida��o da ess�ncia e das formas do poder – a meu ver o conceito nuclear da filosofia pol�tica �; o segundo � aplica��o dos resultados do primeiro para a solu��o de v�rias quest�es derivadas, que tomam sempre a forma da pergunta filos�fica por excel�ncia: Quid est?, “Que �?” – “Que � o dinheiro?”, “Que � a pol�cia?”, “Que � um banco?”, “Que � o crime?”, ao longo das quais vou elucidando cada um dos conceitos que, de maneira assimbrosamente confusa e enganosa, se usam diariamente nas discuss�es pol�ticas em toda parte.

Alguns desses estudos ser�o estampados nesta homepage antes da publica��o em livro, que se anuncia para data incerta e n�o sabida.

A presente li��o, sem mencionar o fil�sofo John Rawls, mostra por que � invi�vel sua concep��o de que o sistema democr�tico pode ser constru�do inteirinho em cima do conceito de “igualdade”. Das an�lises aqui apresentadas, o leitor concluir� facilmente que a igualdade jur�dica, pol�tica ou social n�o pode ser concebida sen�o como a resultante acidental e aproximativa da atua��o das v�rias for�as que comp�em o “sistema”. Nem � preciso dizer que a reda��o deste cap�tulo � provis�ria e que, at� � publica��o em livro, dever� sofrer acr�scimos e corre��es.

Eu gostaria de que esse livro estivesse pronto faz tempo, pois creio que ele seria de grande utilidade para trazer um pouco de ordem e racionalidade �s discuss�es pol�ticas correntes, nas quais predominam cada vez mais o nonsense, a fantasia m�rbida e a linguagem dupla dos manipuladores e demagogos, prenunciando aquele completo obscurecimento das intelig�ncias que antecede as grandes crises revolucion�rias. Chamado a outras tarefas mais urgentes, de ordem jornal�stica e pedag�gica, que as condi��es pol�ticas do momento imp�em como deveres indeclin�veis, n�o abandonei este trabalho, mas tive de pass�-lo para a marcha lenta. Outro tanto aconteceu com Ser e Conhecer, cujos rascunhos j� alcan�am 700 p�ginas e aguardam, em estado de mix�rdia, que o autor tenha tempo de os corrigir. Alguns de meus amigos dizem que sacrificar assim a obra maior em favor de urg�ncias do dia � um pecado contra a santidade da voca��o. Mas o contr�rio seria um pecado contra a caridade. Afinal, como dizia Yeats, h� momentos em que o escritor tem de escolher entre buscar a perfei��o da vida ou a da obra: se escolha a da obra, faz um pacto com o diabo. Felizmente, h� tamb�m ocasi�es em que essa oposi��o dilacerante se resolve no acordo feliz de voca��o e circunst�ncia (para usar os termos de Juli�n Mar�as). Vivo na esperan�a de que uma dessas ocasi�es se apresente logo. – O. de C.

 

��������� Se o poder, como se viu na Primeira Aula, � possibilidade concreta de a��o, que pode ser o direito sen�o a garantia que algu�m, de fora, oferece ao exerc�cio de um poder? “Tenho o direito” de expressar minha opini�o quando algu�m me d� ou ao menos me promete as garantias necess�rias a que eu possa express�-la. Suprimir essas garantias � cercear o direito � livre express�o, o que mostra que a distin��o corrente entre direitos e garantias � apenas um formalismo elegante destinado a ilustrar o fato de que nem todo direito que se proclama � direito efetivo. Direito e garantia n�o s�o esp�cies realmente distintas, mas uma s� esp�cie acompanhada de dois acidentes: quando a garantia � ainda uma promessa, um compromisso, um dever assumido, ela se chama “direito”; passa a assumir o nome de garantia propriamente dita quando essa promessa se invista dos meios concretos de ser cumprida. A no��o de “direito” n�o tem nenhuma substancialidade exceto como promessa de garantia, a garantia nada significa se n�o � garantia de cumprir um compromisso anteriormente firmado. Por isso, o legislador que baixe uma lei que n�o tem meios de ser cumprida j� a revoga no ato mesmo de assin�-la: ad impossibilia nemo tenetur.

��������� O direito �, pois, uma esp�cie de garantia � de garantia do exerc�cio de um poder � e nada mais.

��������� No entanto, a rec�proca n�o � verdadeira: nem toda garantia � um direito. Suponham que eu abandone estes afazeres filos�ficos e me torne assaltante de bancos. Enquanto, armado de gazua, arrebento e esvazio o cofre, meu comparsa, equipado de metralhadora, me garantir� a possibilidade de faz�-lo, mantendo os guardas � dist�ncia: isto n�o far� dele um guardi�o de meus direitos.

��������� Para distinguir o direito das demais esp�cies de garantias, � preciso destacar nele mais estes dois caracteres: a reciprocidade e a socialidade. Uma garantia � um direito quando � rec�proca (no sentido jur�dico) e quando compromete, ao menos em princ�pio, toda uma sociedade, n�o apenas indiv�duos ou grupos isolados.

��������� A reciprocidade jur�dica, como j� explicou Miguel Reale ([1]) consiste em que ao direito de um corresponde uma obriga��o para outro. Veremos adiante o que � propriamente obriga��o. Por enquanto tome-se essa palavra no sentido corrente e considere-se a seguinte obviedade: s� cabe dizer que uma crian�a tem direito ao alimento se algu�m, ao mesmo tempo, tem a obriga��o de aliment�-la. Um direito s� existe quando existe e � claramente indicado o titular da obriga��o correspondente. Se este n�o existe ou � nebulosamente definido, o direito se torna uma garantia que ningu�m garante e � mero flatus vocis.

��������� Sendo o direito, enfim, a garantia do exerc�cio de um poder, e n�o podendo um poder ser garantido sen�o por outro poder mais forte, independente dele e a ele preexistente, o titular da obriga��o tem de possuir necessariamente algum poder que o titular do direito, por si, n�o possui. Mas como o exerc�cio do poder necess�rio a garantir o exerc�cio do direito alheio deve ser ele tamb�m um direito, este deve ser por sua vez garantido por outro poder, e assim por diante, o que resultaria num recuo ad infinitum e tornaria imposs�vel a vig�ncia de qualquer direito se a� n�o interviesse, precisamente, uma segunda e mais sutil acep��o da reciprocidade jur�dica, que pode enunciar-se assim: para que exista direito � necess�rio que, se n�o sempre, ao menos em certos casos, o titular de um direito seja tamb�m titular da obriga��o de garantir por sua vez a algu�m o exerc�cio do poder necess�rio a lhe garantir esse direito. Assim, por exemplo, a massa dos cidad�os tem o direito � prote��o policial somente na medida em que tenha tamb�m algumas obriga��es que garantam � autoridade policial o exerc�cio de suas fun��es, como por exemplo a obriga��o de pagar os impostos com que ser� sustentada a corpora��o dos policiais.

��������� � reciprocidade do primeiro tipo chamarei direta; � do segundo, indireta. A reciprocidade jur�dica direta existe somente entre os titulares tomados dois a dois: dois indiv�duos, dois grupos, duas empresas, um comprador e um vendedor, pai e filho, etc. A reciprocidade indireta, pela sua pr�pria natureza, s� se realiza atrav�s da complexa rede de obriga��es e direitos que constitui a totalidade do sistema jur�dico vigente numa dada sociedade. Isto constitui precisamente o segundo car�ter espec�fico do direito, que � a sua socialidade: n�o h� direito fora do sistema jur�dico em que se expressa a totalidade das garantias e obriga��es vigentes numa dada sociedade. N�o h� direito isolado, solto no ar, fora da sustenta��o do sistema. ([2])

��������� A reciprocidade direta equivale estruturalmente a uma simples propor��o matem�tica: a/b = x/y, quer dizer: a tem o direito b na exata medida em que x tenha a obriga��o y. A f�rmula da reciprocidade direta � portanto a perfeita equival�ncia, ou igualdade quantitativa, de um direito e de uma obriga��o, sem sobras nem faltas: os filhos sob a guarda da m�e divorciada t�m direito a uma pens�o aliment�cia de x reais na medida exata em que o pai divorciado tem a obriga��o de lhes pagar a mesm�ssima quantia, nem mais nem menos. Nos casos em que o direito em quest�o n�o possa ser expresso quantitativamente, o problema do juiz � o problema da justi�a � ser� encontrar a mais perfeita equival�ncia poss�vel entre valores qualitativos. Mas, seja pelo c�lculo exato das quantidades, seja pelo equil�brio ideal das qualidades, a reciprocidade direta se resume sempre e somente na equival�ncia, ou seja, na id�ia de igualdade quantitativa e de nivelamento das diferen�as.

��������� Nada disso ocorre ou pode ocorrer na reciprocidade indireta, onde s� por uma rar�ssima exce��o o direito garantido pode equivaler, quantitativamente, � obriga��o que o titular desse direito tem para com a autoridade que o garante. S� para dar um exemplo estridente: se, dos impostos totais que o Estado recolhe de um cidad�o, digamos, mil reais num ano, somente a d�cima parte � cem reais � vai para a manuten��o dos servi�o p�blico de assist�ncia m�dica, isto n�o quer dizer que esse cidad�o deva ter direito a somente cem reais de assist�ncia m�dica por ano.

��������� Se a reciprocidade direta consiste em equival�ncia e nivelamento, a indireta, ao contr�rio, consiste precisamente em diferen�as e desn�veis que n�o podem ser compensados um a um e que, � medida que se sobe de plano a plano na ordem da complexidade e abrang�ncia das rela��es sociais, v�o aumentando conforme as quantidades cada vez maiores de poder necess�rias a dar garantias aos direitos de grupos cada vez maiores de pessoas, de modo que s� se pode reencontrar algum tipo de unidade, equival�ncia ou propor��o no n�vel �ltimo, isto �, no n�vel do sistema total, da vida jur�dica de toda a sociedade.

��������� � evidente, tamb�m, que a reciprocidade direta, abrangendo seus titulares dois a dois, n�o existe fora da indireta, ou seja, fora do sistema. A reciprocidade direta � direito abstrato ou potencial, que s� se adquire exist�ncia concreta na vida do sistema total. Por outro lado, a rede das reciprocidades indiretas de nada valeria se n�o pudesse assegurar entre os membros da sociedade o predom�nio do direito nas suas rela��es de reciprocidade direta, isto �, o reino da equival�ncia.

��������� A�, por�m, surge um problema.

��������� Como garantia � exerc�cio efetivo do poder do homem poderoso para assegurar a um menos poderoso a possibilidade de exerc�cio do poder que lhe cabe, n�o apenas o sistema jur�dico total � hier�rquico em si, no sentido l�gico de um sistema dedutivo que desce das normas fundamentais �s normas derivadas (na acep��o de Kelsen), mas, como pr�tica e realidade ele s� existe enquanto aspecto e express�o do sistema total de poderes, sendo portanto duplamente hier�rquico.

��������� Hierarquia � subordina��o do m�ltiplo ao uno. Enquanto realidade agente, imbricada no sistema total de poderes, o sistema jur�dico � unifica��o hier�rquica de m�ltiplos estratos de obriga��es e garantias, umas subordinadas �s outras conforme sua maior ou menor import�ncia para o funcionamento do sistema como um todo. Nesse sentido, a regra m�xima do sistema � a sua pr�pria soberania: n�o h� direito acima do sistema total de direitos e garantias, ou, em outras palavras, nenhum direito isolado ou nenhum grupo de direitos isolados pode prevalecer sobre o sistema total que os garante a todos.

��������� Mas, se a rede de reciprocidades indiretas que constitui o sistema total � governada pelo princ�pio de subordina��o e unidade vertical, e se cada direito garantido pela reciprocidade direta � regido pelo princ�pio de equival�ncia ou nivelamento, a contradi��o entre o direito como sistema total e o direito como norma das rela��es de reciprocidade direta s� poder� ser eliminada numa sociedade que logre produzir a perfeita identidade entre a hierarquia vertical de poder e a igualdade entre os indiv�duos. Isso �, no entanto, imposs�vel n�o apenas na pr�tica, mas at� mesmo em teoria, de vez que, o direito sendo a possibilidade do exerc�cio de um poder, a perfeita igualdade de direitos exigiria uma distribui��o igualit�ria das possibilidades de exerc�cio do poder, o que contradiz a id�ia mesma da estrutura hier�rquica necess�ria � manuten��o do sistema e das garantias.

��������� Donde se conclui que o princ�pio da igualdade perante a lei, se tomado em sentido literal, plano e atom�stico, considerando apenas os indiv�duos como entidades numericamente distintas e qualitativamente id�nticas, contradiz a id�ia mesma de lei como obrigatoriedade concreta de respeitar os direitos.

��������� Nenhuma sociedade existente escapou dessa contradi��o, nem lhe escapar� qualquer sociedade que porventura venha a existir.

��������� A contradi��o entre o direito como sistema e o direito como norma das rela��es entre indiv�duos n�o tem solu��o l�gica, nem deve ter, porque ela � constitutiva da pr�pria vida social, onde cada indiv�duo � ao mesmo tempo totalidade e parte em dois diferentes planos, sem poder reduzi-los a um s�, o que implicaria a perfeita e imposs�vel identidade da sua individualidade corporal com o seu lugar e fun��o na sociedade, ou, em outras palavras, a identidade final de natureza e sociedade. A justi�a como ideal social consiste portanto apenas em reduzir essa contradi��o ao m�nimo toler�vel, e n�o em buscar extirp�-la. N�o � totalmente exato dizer que a justi�a humana � imperfeita, pois n�o h� imperfei��o em uma coisa ser o que �, e a justi�a humana tem a perfei��o do arranjo provis�rio e da arte, indefinidamente vari�vel e jamais esgotada, e n�o a da norma ideal eterna que ela, de algum modo imita e na qual se inspira. Toda tentativa de aproximar a justi�a humana da perfei��o ideal tem resultado e resultar� necessariamente, seja em demolir o sistema de garantias em nome da igualdade abstrata, seja em suprimir as garantias em nome da preserva��o do sistema, seja numa altern�ncia dessas desses dois males.

��������� Entre outras conclus�es pr�ticas que se pode turar disso est� a seguinte: a vida da democracia n�o depende da realiza��o m�xima da justi�a em sentido abstrato, mas do equil�brio din�mico e tensional entre o ideal de justi�a e as exig�ncias concretas do sistema que torna poss�vel buscar a justi�a.

 

Notas

 


[1] Li��es Preliminares de Direito.

[2] Que n�o se entenda isto, por favor, como uma proclama��o em prol da exclusiva exist�ncia do direito positivo, com exclus�o portanto da hip�tese do direito natural. A quest�o direito positivo x direito natural nada tem a ver com o t�pico em discuss�o aqui, e na verdade a id�ia de direito natural s� � poss�vel caso a natureza mesma seja enfocada como um sistema jur�dico � o que basta para mostrar que a prioridade do sistema sobre cada direito isolado vale mesmo na hip�tese do direito natural.