Pref�cio a O Eixo do Mal Latino-Americano Prefácio ao livro O Eixo do Mal Latino-americano, de Heitor de Paola, a ser lançado pela É Realizações. Olavo de Carvalho
Se o jornal eletrônico MÃdia Sem Máscara não servisse para mais nada, só o ter revelado aos leitores brasileiros o analista polÃtico Heitor de Paola já bastaria para justificar sua existência e torná-la mesmo indispensável. O homem, de fato, não tem equivalente na �grande mÃdia� nem até onde posso enxergar nas cátedras universitárias, tal a amplitude do horizonte de informações com que lida em seus comentários e tal a claridade do olhar que ele lança sobre o vasto, complexo e móvel panorama da transição revolucionária latino-americana, reduzindo a seqüências causais coerentes a variedade dos fatos em que seus colegas digamos que o sejam não enxergam senão um caos fortuito ou a imagem projetada de seus próprios sonhos, desejos, preconceitos e temores. Na pequena e valente equipe de colaboradores da publicação, remunerados a leite de pato (sim, nós, os cães-de-guarda do capital, não temos capital nenhum, ao contrário dos pobres e oprimidos que nadam em dinheiro dos ministérios e das fundações estrangeiras), as felizes coincidências acabaram por produzir uma divisão de trabalho na qual ninguém tinha pensado de inÃcio: se os demais redatores sondam em profundidade certos aspectos especiais, ou investigam para trazer ao conhecimento do público fatos que a mÃdia comprometida ignora por malÃcia ou por inépcia genuÃna, no fim vem o Heitor de Paola e articula tudo em grandes esquematizações diagnósticas que resumem o sentido do jornal inteiro e das quais o jornal inteiro, por sua vez, fornece as provas detalhadas. É uma grande alegria para mim ter sido o pai de um órgão brasileiro de mÃdia que, malgrado todas as suas limitações que ninguém nega, permanece o único onde as notÃcias não desmentem as análises e as análises não saem voando para longe das notÃcias. Na verdade o jornal revelou Heitor de Paola ao próprio Heitor de Paula, roubando-o em parte aos clientes do seu consultório de médico e psicanalista e colocando-o diante do caso clÃnico mais dramático e desesperador que já passou pelo divã de um discÃpulo (não muito fiel) do Dr. Freud: um continente neurotizado por um intenso tiroteio cruzado de ações camufladas e mentiras ostensivas que ultrapassa imensuravelmente a capacidade de compreensão da inteligência popular e a engolfa num abismo de esperanças ilusórias, terrores sem objeto e ódios sem sentido. Neurose, dizia um outro ás da clÃnica psicológica, o meu falecido amigo Juan Alfredo César Müller, é uma mentira esquecida na qual você ainda acredita. Não é só uma figura de linguagem. É o resumo compacto de uma ordem causal que a observação clÃnica confirma todos os dias. O processo tem três etapas: mentir, ocultar a mentira de si próprio e, por fim, entregar-se à produção compulsiva de pretextos, fingimentos e racionalizações sem fim, os mais postiços e contraditórios, para poder continuar agindo com base naquilo que se nega e ao mesmo tempo defender-se desesperadamente da revelação dos motivos iniciais verdadeiros que determinaram o curso inteiro da mutação patológica. Aplicado ao estudo dos processos histórico-polÃticos, o conceito tem de ser ajustado para dar conta de várias seqüências neurotizantes simultâneas e sucessivas, que, ao entremesclar-se num caleidoscópio de falsificações, tornam a forma geral do processo totalmente invisÃvel à massa de suas vÃtimas, e ao mesmo tempo dão visibilidade hipnótica a aspectos isolados e inconexos, artificialmente dramatizados como �problemas urgentes�, fazendo com que do mero caos mental se passe à s ações arbitrárias e desesperadas que complicam o quadro da vida real até à alucinação completa. Diversamente do que acontece na neurose individual, onde o autor e a vÃtima da mentira são a mesma pessoa, as neuroses coletivas são produzidas desde fora, por grupos de estrategistas e engenheiros sociais que, ao menos num primeiro momento, imaginam poder controlá-las em proveito próprio, mas que em geral acabam sendo eles mesmos arrebatados pelo movimento de destruição que geraram: nunca houve grupo de lÃderes revolucionários que não acabasse sendo dizimado pela própria revolução. No meio desse turbilhão, alguns indivÃduos privilegiados conseguem manter-se à tona no mar de destroços e enxergar, mais ou menos, a direção do abismo para onde vai a corrente. Não por coincidência, esses observadores realistas são habitualmente recrutados entre aqueles que definitivamente não gostam do curso presente das coisas, mas que, por absoluta falta de vocação polÃtica, ou por estar em minoria infinitesimal sem possibilidade de interferir na situação, reagem para dentro, intelectualmente, e não produzem planos de ação, mas diagnósticos da realidade, sem os quais a simples intenção de agir já seria apenas uma contribuição a mais para a loucura geral. Heitor de Paola é um desses. Não é só a experiência clÃnica que o qualifica especialmente para a função. A inteligência analÃtica da qual ele dá algumas amostras notáveis neste livro deve algo à militância revolucionária de juventude que o torna a seus próprios olhos um pouco culpado por aquilo que na época não podia prever mas hoje é obrigado a ver. Tanto melhor. Only the wounded can heal , diz um provérbio inglês. |